sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Agostinho Neto (Angola)

Poetas da Língua Portuguesa (1)


Da Negação à Afirmação


A Renúncia Impossível


Negação




Não creio em mim
Não existo
Não quero eu não quero ser

Quero destruí-me
- Atirar-me de pontes elevadas
e deixar-me despedaçar
sobre as pedras duras das calçadas

Pulverizar o meu ser
desaparecer
não deixar sequer traço de passagem
pelo mundo.


Quero matar-me
e deixar que o não-eu
se aposse de mim.


Mais do que um simples suicídio
quero que esta minha morte
Seja uma verdadeira novidade histórica
um desaparecimento total
até mesmo nos cérebros
daqueles que me odeiam
até mesmo no tempo
e se processe a História
e o mundo continue
como se eu nunca tivesse existido
como se nenhuma obra tivesse produzido
como se nada tivesse influenciado na vida
como se em vez de valor negativo
eu fosse Zero.


Quero ascender, subir
elevar-me até atingir o Zero
e desaparecer.
Deixai-me desaparecer!



Mas antes vou gritar
com toda a força dos meus pulmões
para que o mundo oiça:



- Fui eu quem renunciou à Vida!
Podeis a continuar a ocupar o meu lugar
vós os que mo roubastes



Aí tendes o mundo todo para vós
para mim nada quero
nem riqueza nem pobreza
nem alegria nem tristeza
nem vida nem morte
nada.



Não sou. Não existo. Nunca fui.
Renuncio-me
Atingi o Zero



E agora,
Vivei, cantai, chorai
casai-vos, matai-vos, embriagai-vos
dai sêmolas aos pobres.
Nada me pode interessar
que eu não sou
Atingi o Zero!



Não contem comigo
para vos servir às refeições
nem para cavar os diamantes
que vossas mulheres irão ostentar em salões
nem para cuidar das vossas plantações
de café e algodão
não contem com operários
para amamentar os vossos filhos sifilíticos
não contem com operários
de segunda categoria
para fazer o trabalho de que vos orgulhais
nem com soldados inconscientes
para gritar com o estômago vazio
vivas ao nosso trabalho de civilização
nem com lacaios
para vos tirarem os sapatos
de madrugada
quando regressardes de orgias nocturnas
nem com pretos medrosos
para vos oferecer vacas
e vender molho a tostão
nem com corpos de mulheres
para vos alimentar de prazeres
nos ócios da vossa abundância imoral.


Não contem comigo
Renuncio-me.
Eu atingi o Zero

Não existo. Nunca existi.
Não quero vida nem morte
Nada!

Podeis agora queimar
os letreiros medrosos
que às portas dos bars, hotéis e recintos públicos
gritam o vosso egoísmo
nas frases: “SÓ PARA BRANCOS” ou “ONLY TO COLOURED MEN”
Negros aqui .Brancos acolá.


Podeis acabar
com os miseráveis bairros de negros
que vos atrapalham a vaidade
Vivei satisfeitos sem “colour lines”
sem terdes que dizer aos fregueses negros
que os hotéis estão abarrotados
que não há mais mesas nos restaurantes.
Banhai-vos descansados
nas vossas praias e piscinas
que nunca houve negros no mundo
que sujassem as águas
ou os vossos nojentos preconceitos
com a sua escura presença.


podeis transformar em toureiros
ou em magarefes
os membros da Ku-klux-klan
para que matem a sua fome sanguinária
nas feridas dos touros que descem à arena.
Não há negros para linchar!



Porque hesitais agora!
Ao menos tendes oportunidade
para proclamardes democracias
com sinceridade



Podeis inventar uma nova História.
Inclusivamente podeis atribuir-vos a criação do mundo.
Tudo foi feito por vós
Ah!
que satisfação eu sinto
por ver-vos alegres no vosso orgulho
e loucos na vossa mania de superioridade.



Nunca houve negros!
A África foi construída só por vós
A América foi colonizada só por vós
A Europa não conhece civilizações africanas
Nunca um negros beijou uma branca
nem um negro foi linchado
nunca mataram pretos a golpes de cavalomarinho
para lhes possuírem as mulheres
nunca extorquiram propriedades a pretos
não tendes, nunca tivestes filhos com sangue negro
ó racistas de desbragada lubricidade
Fartai-vos agora dentro da moral.


Que satisfação eu sinto
por não terdes que falsear os padrões morais
para salvaguardar
o prestigio, a superioridade e o estômago
dos vossos filhos.




Ah!
O meu suicídio é uma novidade histórica
é um sádico prazer
de ver-vos bem instalados no vosso mundo
sem necessidade de jogos falsos.


Eu elevado até o Zero
eu transformado no Nada-historico
Eu no inicio dos Tempos
eu-Nada a confundir-me com vós-Tudo
sou o verdadeiro Cristo da Humanidade!


Não há nas ruas de Luanda
Negros descalços e sujos
a pôr nódoas nas vossas falsidades de colonização
em Lourenço Marques
em Nova York, em Leopoldville
em Cape-Town
gritam pelas ruas
a foguetear alegria nos ares:



-Não há negros nas ruas!
Nunca houve.
Não há negros preguiçosos
a deixar os campos por cultivar
e renitentes à escravização
já não há negros para roubar.
Toda a riqueza representa agora o suor do rosto
e o suor do rosto é a poesia da vida.




Não existe música negra
Nunca houve batuques nas florestas do Congo
Quem falou em spirituals?

Vá de enchem os salões
de Debussy Struss Korsakoff.
Já não há selvagens na terra.
Viva a civilização dos homens superiores
sem manchas negróides
a perturbar-lhe a estética!



Nunca houve descobrimentos
a África foi criada com o mundo.



O que é a colonização?
O que são massacres de negros?
O que são os esbulhos de popriedade?
Coisas que ninguém conhece.



A história está errada
Nunca houve escravatura
nunca houve domínio de minorias
orgulhosas da sua força


Acabai com as cruzadas religiosas
A fé está espalhada por todo mundo
sobre a terra só há cristãos
vós sois todos cristãos.




Não há infiéis por converter
Escusai de imaginar mais infidelidades religiosas
para justificar
Repugnantes actos de barbarismo.

Não necessitais enviar mais missionários
a África
nem aos bairros de negros
Nunca houve feitiços
nem concepções religiosas diferentes
nunca houve religiosos a auxiliar a ocupação militar.


Acabai tudo, tudo
e vós sois todos irmãos.
Podeis continuar com os vossos sistemas
socialistas ou capitalista
que isso não me interessa.
Explorai o proletariado
ou dai-lhe de comer
isso é convosco.

Continuai com os vossos sistemas políticos
ditaduras democracias.
Matai-vos uns aos outros
lutai pela glória
lutai pelo poder
criai minorias fortes
que protejam os seus comp…
apadrinhai os afilhados dos vossos amigos
criai mais castas
aburguesai as ideias
e tudo sem a complicação
de verdes intrusos
imiscuir-se na vossa querida
e defendida civilização
dos homens privilegiados.

Homens irmãos
dai-vos as mãos
gritai a vossa alegria de serdes sós
SÓS!
únicos habitantes da Terra.


Eu atingi o Zero!


Isto s implica extraordinariamente
a vossa ética.
Ao menos não percais agora
a ocasião de serdes honestos.



Se houver terramotos
Calamidades, cheias ou epidemias
ou terras a defender da invasão das águas
ou motores parados nas lamas a de selvas africanas
raios partam!
já não tereis de chamar-me
para acudir ás vossas desgraças
para reparar os vossos desastres
ou para carregar com a culpa das vossas incúrias.
Ide para o diabo!

Eu não existo
Palavra de honra que nunca existi.
Atingi o Zero
o Nada.
Abençoada a Hora
do meu super-suicidio
para vós
homens que construís sistemas morais
para enquadrar imoralidades

O sol brilha só para vós
a lua reflecte luz só para vós
nunca houve esclavagistas
nem massacres
Nem ocupações da África.

Como até a história
se transforma num Tratado Moral
sem necessidade de arranjos apressados!


Não existem os pretos dos cais e do caminho de
ferro.
Nos locais de trabalho nunca se ouviram cantos
dolentes
só há chiadeira do guindastes.
Nunca pisaram os caminhos do mato
carregados com quilos às costas
são os motores que se queimam sob as cargas

Ó pretos submissos humildes ou tímidos
Sem lugar nas cidades
ou nos escaninhos da honestidade
ou nos recantos da força
com a alma poisada no sinal menos,
polígamos declarados
dançarinos de batuques sensuais
sabei que subistes todos de valor
Atingistes o Zero
sois Nada
e salvastes o Homem.




Acabou-se o ódio de raças
e o trabalho de civilização
e a náusea de ver meninos negros
sentados na escola
ao lado dos meninos de olhos azuis
e as extorsões e compulsões
e as palmatoadas e torturas
para obrigar inocentes a confessar crimes
e os medos de revolta
e as complicadas demarches politicas
para iludir as almas simples.


Acabaram-se as complicações sociais!



Atingi o zero
Cheguei à hora do inicio do mundo
E resolvi não existir.

Cheguei ao Zero-Espaço
ao nada-tempo
ao Eu coincidente com vós-Tudo.


E o que é mais importante
Salvei o mundo.






Afirmação





Ah!


Faça-se luz no meu espírito
LUZ!


Calem–se as frases loucas
Desta renúncia impossível.



Eu–todos nunca me enganei
nunca coincidirei com o nada
não me deitarei nunca debaixo dos comboios



Não fui eu quem falou
da salvação do mundo
à custa da minha existência
da transformação do valor negativo em Zero
por meio do castigo ao inocente
em super – suicídio novidade histórica



Quem falou não fui eu
foi a minha loucura.



O meu lugar está marcado
no campo da luta
para conquista da vida perdida



Eu sou. Existo
As minha mãos colocaram pedras
nos alicerces do mundo
Tenho direito ao meu pedaço de pão



Sou um valor positivo
da humanidade
e não abdico,
nunca abdicarei!



Seguirei com os homens livres
O meu caminho
para a liberdade e para a Vida.

Perdoem–me os cinco minutos de loucura
que vivi.




1949
Original dactilografado. Arquivado fls.204 a 209/210ª215

Do poema”Afirmação”, in Michel Laban , “Mário Pinto de Andrade – um intelectual na
política”, Da negação à Afirmação”,pp.87 – 99, Edições Colibri.



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