Parábolas de uma Professora
xícara vazia
baitasar e paulo e marko
quase termino meu terceiro cigarro. relaxo a cabeceira. tento afastar lembranças amontoadas num abscesso de espirais que sobem, flutuam e somem. sei que atiro em mim mesma, rendo-me com outra tragada. não tenho a conta exata, mas a tosse avisa que devo parar. não paro até terminá-lo ou terminar, estou tentando só viver o hoje. vem dando certo. não quero garantias. não tenho garantias
entro no abrigo
estou sozinha. quisera eu que pudesse assim, só fechar os olhos. mas é quando fecho os olhos que menos posso tudo e mais posso não desaparecer. faz-me tua presença em tudo. a reunião não inicia. devo estar com os cabelos perfumados com a fragrância marcante do fumeiro. foda-se. conheci um homem muito humilde, com uma vida muito sofrida, mas de uma simplicidade inigualável, que gostava de martelar coisas de madeira. um dia o fiz muito feliz, seus olhos brilhavam num sorriso incontrolável e largo. havia lhe dado algumas gramas de pregos, algum dia, talvez, eu precise me contentar com alguns pequeninos goles de ar
Ano que vem quero continuar com o mesmo nível. Já pensou, perder todo o esforço que fiz preparando minhas aulas?
fernanda maura, toda escola tem pelo menos uma fernanda maura, professora conhecida pelas quedas de braço que se dispõe enfrentar para manter seu status de mais antiga na escola, modus operandi que lhe permite fazer as suas escolhas de níveis e turmas para o ano seguinte, quanto mais antiga mais imunidades. são os anticorpos que nos permitem fazer do mesmo jeito o que sempre foi feito do mesmo jeito
Maura, você não cansa de repetir os mesmos conteúdos, ano após ano?
o samuel propõe um diálogo direto sobre variar coisas em nossas vidas, em todas as vidas. eu gostaria de variar esta mania de ficar sozinha com bocados espalhados. os domingos mormacentos, a escola morna e as paisagens embaciadas me arrastam
Samuel, anos de experiência me ensinaram que cada turma é diferente da outra, assim precisam ter os mesmos conteúdos
responde com um olhar de terna dor por seu colega, ele ainda não chegou onde ela já esteve e preferiu sair. acredita que se salvou. eu o vejo virar-se e partir para as calendas gregas. desistiu, tudo se parece com um domingo, Si alguna vez me suicido, será en domingo. Es el día más desalentador, el más insulso. Quisiera quedarme en la cama hasta tarde, por lo menos hasta las nueve o las diez, pero a las seis y media me despierto solo y ya no puedo pegar los ojos. A veces pienso qué haré cuando toda mi vida sea domingo, tenho tantas leituras em mim, tantas labaredas que preciso amornar. sentada em alguma praça de algum lugar morno decorado com fórmicas verdes
Já abriram as inscrições para o remanejo?
Pensando em sair, Botto?
Ofélia, vai depender da biometria da Mônica.
responde lacônico e cansado. época de remanejo oportuniza solicitar transferência de escola, mudar, pôr-se em outro lugar, outros professores e professoras, outro alunado, maneiras diferentes de encontrar respostas e perguntar. uma chance de salvar um pouco do que ainda resta dos sonhos ou uma oportunidade de fugir desesperadamente, na esperança de descobrir um outro lugar, um outro aluno, um outro sonho, um outro jantar, uma outra vida, outras formigas. esses domingos mornos me perseguem
Gurias e guris, estou em novo momento, outro concurso e outra nomeação, voltei. Não consegui ficar quieta em casa olhando paredes e fotografias amareladas. Não consegui abandoná-las sozinhas nesta batalha. Pensei comigo mesma, Vou ajudar. E me alistei. Vim engrossar a tropa das mocinhas. Decidi trazer minha experiência de alguns anos atrás. Na escola em que me aposentei, a primeira vez, recebemos gratuitamente cadernos pedagógicos, envolvidas que estávamos com um projeto de melhoria da qualidade de ensino. Gente, num desses cadernos encontrei uma parábola oriental que me fez compreender a missão de todo professor. Esta parábola me acendeu uma luz, olhava no espelho e repetia, Jacobina, sua maluca, você descobriu como lidar e aquietar essas crianças inquietas, que acham que sabem tudo. Querem ouvir a parábola destes últimos dez anos da minha vida?
esta é a doidela jacobina, aposentada, fala baixinho, miudinho, no ano passado terminou seu estágio probatório, é da língua portuguesa. vive se queixando das dores nas pernas, varizes mal-cuidadas e escadas demais para subir e descer no front. eu acho que é um problema de peso, mas não opino nem pio, também tenho minhas dores
Claro, Jacobina.
Obrigado, Acemira. Bem... lá vai, pessoal. O título desta parábola oriental é: “A xícara transbordante”, ei-la: “Certa vez, um mestre oriental recebeu uma visita que queria saber algo sobre o ‘Conhecimento’. Mas, em vez de ouvir, o visitante só falava sobre as suas próprias idéias, ouvindo-o o mestre oriental resolveu servir um chá, encheu a xícara do visitante até transbordar e continuou a derramar o chá, finalmente, o visitante não se conteve e exclamou, Não vês que a xícara está cheia, Sim, respondeu o mestre parando de derramar, És como esta xícara, estás cheio de tuas próprias idéias, e terminou perguntando, Como queres que te mostre o ‘Conhecimento’, se não me trazes uma ‘xícara’ vazia”. Gurias, lindo, não é? Sempre que lhes lembro da historinha da xícara transbordante, é um santo remédio com os alunos muito agitados ou faladores. Faz muito tempo que não mando ninguém para a Direção.
meus deus, qual o papel do professor, pergunto-me aos gritos. ensino aprendendo. mostro caminhos caminhando. não caminho só, mas junto tudo, todos e a mim mesma pelo caminho. não posso ficar alheia aos diversos processos e inúmeras mudanças sociais do cotidiano, mudanças individuais minhas, deles e delas, mudanças nossas. precisamos desenvolver nossa consciência política junto com a nossa consciência do cotidiano, perceber e reconhecer que inúmeras teorias pedagógicas estão assentadas em realidades diversas do universo do nosso aluno e devemos responder se iremos manter o que foi criado ou questionar o que está posto, mas não explicitamente desvendado
Jacobina, você os vê como xícaras vazias, na espera, aguardando o depósito bancário do conhecimento. Como será que eles a vêem? Como uma chaleira ou um bule de porcelana? Uma antiguidade que poderão jogar no chão e quebrar, antes que você os afogue expelindo as vísceras mentais sobre eles?
uau, o desorientador samuel estava de volta das calendas gregas e não parece brincar, espero que não esteja brincando. na verdade, nem acemira está se prestando ouvir com atenção a jacobina, acredito que nem mesmo seus alunos se rendem à ela. que bom. mas a tirania moldada em cumplicidade com o medo e o silêncio nos faz parecer mentirosos, ela se instala entre pequenos gestos de caridade não afetuosa. ela não partilha, ela compra. pequenos fingimentos que se multiplicam em muitas e mais muitas mentiras, se as pessoas calam, consentem que mentiras desumanas se apropriem do cotidiano
Alguém viu a minha bolsa? A reunião já começou?
Cala a boca
a fenda pedagógica é tamanha que parece não ter fundo. talvez, a pedagogia seja uma traição inevitável e absolutamente necessária à educação popular, na fabricação de eunucos; talvez, histórias tristes e de lembrança dolorosa não sejam pedagogizadas apenas para acalmar a dor das senhoras e senhores desarmados; talvez, devamos aprender com nossa história. não podemos esquecer que a deterrente burguesia cria o seu próprio poder e, somente, começa a se preocupar com a marginalização quando a criminalidade maltrapilha a invade, e os miseráveis não estão mais invisíveis. os miseráveis, no tempo de serem homens impotentes e mulheres fracas, são úteis. a fraude pedagógica com as classes populares volta a me atormentar. mais um despropósito de fazer esperar amiudado aquele que já se chega sem muita vontade de chão abetumado. estranho isso de apontar aparência para essa gente invisível, impedida de brilhadura. gente que não enxergamos nem ao descer para o cobertor de terra, escavocado por dedos sem casco. a terra nem é jogada, desaba apressada, sem nome nem obrigado. a terra finalmente esconde e esquece. e se alimenta. pedras escavocadas das catacumbas, pelo marcatório de nomes desconhecidos, rolam sem gritos umas sobre as outras, não se apoiam e nunca se acomodam antes de perderem lascas. temos muitos lugares. sorte dessa gente amiudada ter a ajuda tão poderosa da pá e picareta olhando a partida sem volta, uma dor repetida
xícara vazia
baitasar e paulo e marko
quase termino meu terceiro cigarro. relaxo a cabeceira. tento afastar lembranças amontoadas num abscesso de espirais que sobem, flutuam e somem. sei que atiro em mim mesma, rendo-me com outra tragada. não tenho a conta exata, mas a tosse avisa que devo parar. não paro até terminá-lo ou terminar, estou tentando só viver o hoje. vem dando certo. não quero garantias. não tenho garantias
entro no abrigo
estou sozinha. quisera eu que pudesse assim, só fechar os olhos. mas é quando fecho os olhos que menos posso tudo e mais posso não desaparecer. faz-me tua presença em tudo. a reunião não inicia. devo estar com os cabelos perfumados com a fragrância marcante do fumeiro. foda-se. conheci um homem muito humilde, com uma vida muito sofrida, mas de uma simplicidade inigualável, que gostava de martelar coisas de madeira. um dia o fiz muito feliz, seus olhos brilhavam num sorriso incontrolável e largo. havia lhe dado algumas gramas de pregos, algum dia, talvez, eu precise me contentar com alguns pequeninos goles de ar
Ano que vem quero continuar com o mesmo nível. Já pensou, perder todo o esforço que fiz preparando minhas aulas?
fernanda maura, toda escola tem pelo menos uma fernanda maura, professora conhecida pelas quedas de braço que se dispõe enfrentar para manter seu status de mais antiga na escola, modus operandi que lhe permite fazer as suas escolhas de níveis e turmas para o ano seguinte, quanto mais antiga mais imunidades. são os anticorpos que nos permitem fazer do mesmo jeito o que sempre foi feito do mesmo jeito
Maura, você não cansa de repetir os mesmos conteúdos, ano após ano?
o samuel propõe um diálogo direto sobre variar coisas em nossas vidas, em todas as vidas. eu gostaria de variar esta mania de ficar sozinha com bocados espalhados. os domingos mormacentos, a escola morna e as paisagens embaciadas me arrastam
Samuel, anos de experiência me ensinaram que cada turma é diferente da outra, assim precisam ter os mesmos conteúdos
responde com um olhar de terna dor por seu colega, ele ainda não chegou onde ela já esteve e preferiu sair. acredita que se salvou. eu o vejo virar-se e partir para as calendas gregas. desistiu, tudo se parece com um domingo, Si alguna vez me suicido, será en domingo. Es el día más desalentador, el más insulso. Quisiera quedarme en la cama hasta tarde, por lo menos hasta las nueve o las diez, pero a las seis y media me despierto solo y ya no puedo pegar los ojos. A veces pienso qué haré cuando toda mi vida sea domingo, tenho tantas leituras em mim, tantas labaredas que preciso amornar. sentada em alguma praça de algum lugar morno decorado com fórmicas verdes
Já abriram as inscrições para o remanejo?
Pensando em sair, Botto?
Ofélia, vai depender da biometria da Mônica.
responde lacônico e cansado. época de remanejo oportuniza solicitar transferência de escola, mudar, pôr-se em outro lugar, outros professores e professoras, outro alunado, maneiras diferentes de encontrar respostas e perguntar. uma chance de salvar um pouco do que ainda resta dos sonhos ou uma oportunidade de fugir desesperadamente, na esperança de descobrir um outro lugar, um outro aluno, um outro sonho, um outro jantar, uma outra vida, outras formigas. esses domingos mornos me perseguem
Gurias e guris, estou em novo momento, outro concurso e outra nomeação, voltei. Não consegui ficar quieta em casa olhando paredes e fotografias amareladas. Não consegui abandoná-las sozinhas nesta batalha. Pensei comigo mesma, Vou ajudar. E me alistei. Vim engrossar a tropa das mocinhas. Decidi trazer minha experiência de alguns anos atrás. Na escola em que me aposentei, a primeira vez, recebemos gratuitamente cadernos pedagógicos, envolvidas que estávamos com um projeto de melhoria da qualidade de ensino. Gente, num desses cadernos encontrei uma parábola oriental que me fez compreender a missão de todo professor. Esta parábola me acendeu uma luz, olhava no espelho e repetia, Jacobina, sua maluca, você descobriu como lidar e aquietar essas crianças inquietas, que acham que sabem tudo. Querem ouvir a parábola destes últimos dez anos da minha vida?
esta é a doidela jacobina, aposentada, fala baixinho, miudinho, no ano passado terminou seu estágio probatório, é da língua portuguesa. vive se queixando das dores nas pernas, varizes mal-cuidadas e escadas demais para subir e descer no front. eu acho que é um problema de peso, mas não opino nem pio, também tenho minhas dores
Claro, Jacobina.
Obrigado, Acemira. Bem... lá vai, pessoal. O título desta parábola oriental é: “A xícara transbordante”, ei-la: “Certa vez, um mestre oriental recebeu uma visita que queria saber algo sobre o ‘Conhecimento’. Mas, em vez de ouvir, o visitante só falava sobre as suas próprias idéias, ouvindo-o o mestre oriental resolveu servir um chá, encheu a xícara do visitante até transbordar e continuou a derramar o chá, finalmente, o visitante não se conteve e exclamou, Não vês que a xícara está cheia, Sim, respondeu o mestre parando de derramar, És como esta xícara, estás cheio de tuas próprias idéias, e terminou perguntando, Como queres que te mostre o ‘Conhecimento’, se não me trazes uma ‘xícara’ vazia”. Gurias, lindo, não é? Sempre que lhes lembro da historinha da xícara transbordante, é um santo remédio com os alunos muito agitados ou faladores. Faz muito tempo que não mando ninguém para a Direção.
meus deus, qual o papel do professor, pergunto-me aos gritos. ensino aprendendo. mostro caminhos caminhando. não caminho só, mas junto tudo, todos e a mim mesma pelo caminho. não posso ficar alheia aos diversos processos e inúmeras mudanças sociais do cotidiano, mudanças individuais minhas, deles e delas, mudanças nossas. precisamos desenvolver nossa consciência política junto com a nossa consciência do cotidiano, perceber e reconhecer que inúmeras teorias pedagógicas estão assentadas em realidades diversas do universo do nosso aluno e devemos responder se iremos manter o que foi criado ou questionar o que está posto, mas não explicitamente desvendado
Jacobina, você os vê como xícaras vazias, na espera, aguardando o depósito bancário do conhecimento. Como será que eles a vêem? Como uma chaleira ou um bule de porcelana? Uma antiguidade que poderão jogar no chão e quebrar, antes que você os afogue expelindo as vísceras mentais sobre eles?
uau, o desorientador samuel estava de volta das calendas gregas e não parece brincar, espero que não esteja brincando. na verdade, nem acemira está se prestando ouvir com atenção a jacobina, acredito que nem mesmo seus alunos se rendem à ela. que bom. mas a tirania moldada em cumplicidade com o medo e o silêncio nos faz parecer mentirosos, ela se instala entre pequenos gestos de caridade não afetuosa. ela não partilha, ela compra. pequenos fingimentos que se multiplicam em muitas e mais muitas mentiras, se as pessoas calam, consentem que mentiras desumanas se apropriem do cotidiano
Alguém viu a minha bolsa? A reunião já começou?
Cala a boca
a fenda pedagógica é tamanha que parece não ter fundo. talvez, a pedagogia seja uma traição inevitável e absolutamente necessária à educação popular, na fabricação de eunucos; talvez, histórias tristes e de lembrança dolorosa não sejam pedagogizadas apenas para acalmar a dor das senhoras e senhores desarmados; talvez, devamos aprender com nossa história. não podemos esquecer que a deterrente burguesia cria o seu próprio poder e, somente, começa a se preocupar com a marginalização quando a criminalidade maltrapilha a invade, e os miseráveis não estão mais invisíveis. os miseráveis, no tempo de serem homens impotentes e mulheres fracas, são úteis. a fraude pedagógica com as classes populares volta a me atormentar. mais um despropósito de fazer esperar amiudado aquele que já se chega sem muita vontade de chão abetumado. estranho isso de apontar aparência para essa gente invisível, impedida de brilhadura. gente que não enxergamos nem ao descer para o cobertor de terra, escavocado por dedos sem casco. a terra nem é jogada, desaba apressada, sem nome nem obrigado. a terra finalmente esconde e esquece. e se alimenta. pedras escavocadas das catacumbas, pelo marcatório de nomes desconhecidos, rolam sem gritos umas sobre as outras, não se apoiam e nunca se acomodam antes de perderem lascas. temos muitos lugares. sorte dessa gente amiudada ter a ajuda tão poderosa da pá e picareta olhando a partida sem volta, uma dor repetida
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