Parábolas de uma Professora
ensinar é acordar sonhos, aprender é transformar sonhos
baitasar e paulo e marko
terminei meu terceiro cigarro e retorno para o abrigo. Não lembro do meu primeiro fumo, enrolado em folha de papel, mas sem dúvida recordarei para sempre do último, momento de decisão e interrogação, instante de adeus, talvez um até breve, volto logo, ou vou acabar roendo todas as minhas unhas, não quero engordar
Alguém sabe dizer quando a reunião começa?
Schiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!!!
lutamos tanto por reuniões pedagógicas constantes, mas parecemos cardumes regulares vivendo desordenados de nós mesmas
Cala a boca!
A Mônica já retornou da biometria?
quer saber lélia, ao final do seu bolinho de batata recheado com carne, parece uma delícia, mesmo sendo muito gorduroso... fritura, gordura hidrogenada, eu me afogo com a nicotina e o alcatrão e ela se frita com o óleo da mãe de todas as gorduras. o que será que nos leva para o rastro de artérias entupidas, obstruídas e plastificadas, pulmões sufocados e fibrados, pergunto-me olhando para a trilha de fumaça que sobe e desaparece. desejo e necessidade de viver a vida em gotas, ensaiam uma resposta em coro minhas células. fico em dúvida, minhas respostas ensaiadas permanecem embutidas em mim, não se animam dar o ar da graça
Meu Deus, alguém tem guardanapo? Pura gordura!
fico em silêncio sorrindo, nem precisei avisar do perigo. foi melhor assim
Acho que ainda demora alguns dias em casa.
informa lia, professora de ensino religioso, vestida com muito colorido e alegria, aliás, sua característica marcante junto aos alunos, o contentamento e a satisfação de estar entre eles, na experiência de muitos anos na sala de aula com jovialidade. faz questão de mostrar que aquela alegria do tempo de menina ainda está com ela. o prazer de estar com os jovens e as crianças ainda a carrega pra cima e pra baixo, morro acima e morro abaixo, pulará valas e valos onde houver
O que aconteceu com a Mônica?
pergunta adail, professor de arte educação, distraído a assinar o livro-ponto e cavaquear com os colegas, mas atrapalhado com as suas barbas longas, mescladas de branco e preto, entre as suas mãos, a caneta e o livro-ponto. os óculos de leitura sobre a ponta do nariz completavam os jeans surrados, a camisa de algodão verde e as marcas de suor junto à cavidade inferior da junção do braço com o tronco, o sovaco. diriam meus alunos, caindo na gargalhada
Não foi com a Mônica. Os seus dois meninos que estão com sarampo e catapora. Coitadinhos. resume eliza, enquanto preenche seus cadernos de chamada
Meu Deus! Essa biometria promete... tensão resignada é o sentimento entre os meus colegas, e ao mesmo tempo de interrogação, ainda não sabiam quem iria substituí-la, por um breve instante ouviu-se o silêncio absoluto da solidão, nenhum se moveu, nenhuma falou, não havia o que comentar... tenham dó, espero que não me venham com as turmas da Mônica! Chega! Cansei! Não tenho mais paciência com estas crianças.
este é o professor botto, originário do anos ciclos finais que já não tem o que fazer, neste ano letivo desempenhando a função de volante no primeiro ciclo. aquele que flutua entre as turmas e auxilia no ensino e na aprendizagem. está com o rosto vermelhão, avivando suas sardas e nariz em forma de pimentão maduro, aliás, mais parecendo um abscesso dolorido e desconfortável. desculpe, maldade minha. esqueçam. ele faz sua voz ser ouvida de maneira escancarada e desencantada, não quer mais ser a cinderela, escolheu o papel de bufão, ou foi empurrado para ele pelo seu nariz de borracha. de novo, peço perdão, não vai se repetir. não tenho bem claro o que lhe acontecia, acho que nem mesmo ele o sabe
Gurias, eu estou aguardando loucamente a chegada das nossas férias! Comecei a contagem regressiva, não aguento mais. Estou pirando. Essas crianças não obedecem e não têm educação. Ou não obedecem porque não têm educação. Não sei, mas estou além do que consigo. Quando escuto sinal de início sinto um desânimo. Fico enjoada por conta da tarde de gritos e ofensas, pedidos que não serão atendidos, súplicas que serão ignoradas. Parecem estar contando estrelas, todos muito assanhados. Outro dia, precisei substituir uma colega no segundo ciclo, pedi que me escrevessem uma redação sobre o Natal. Todos se negaram. Uns porque diziam não ter Natal e não queriam pensar em Natal, outros em solidariedade aos colegas que não tinham Natal, protestavam contra a indiferença dos príncipes. A gota d’água foi um idiota que se atreveu a dizer: não vou escrever sobre o que eu não conheço. não sei, cansei desta gurizada ou desisti de mim mesma, caminhando por estes corredores. Engolindo, engolindo e sendo engolida, não tenho pecados e estou morrendo envenenada. A vida não é justa. Olhei bem para o guri e respondi: vocês não escrevem porque não sabem escrever!
o professor botto havia dado a senha para o discurso ‘o último que sair apaga a luz’. a professora layla, volante do segundo ciclo, aderiu com o entusiasmo de uma náufraga ao ver a bóia que lhe é jogada quando está preste a submergir nas profundezas geladas e escuras das águas. é o desespero final. precisa dizer e diz. seus cabelos longos, presos por uma piranha plástica, dando a forma de rabo de cavalo, não paravam sua dança com o vaivém do seu olhar, tentavam acompanhar em direção oposta ao olhar e voz trêmula. o encaramento vivo e o sorriso leve dos seus vinte e alguns anos contagiantes estavam ocultos e esquecidos. não fingia. acho que preciso de mais um cigarro, só mais uma pequena mentirinha
Eu descobri que sou alérgico às crianças. Fico com o corpo todo empipocado quando estou perto delas ou ouvindo o zunido de suas pequenas vozes afiadas e penetrantes. É um alarido infernal que parece disposto a vencer minhas resistências. Sou vencido pelos efeitos de sua ação destrutiva. Tenho ganas de pegar os seus pescoços e sacudindo-os perguntar, por quê? por quê? por quê não me revelam a verdade por inteiro? Quando saio para o pátio, e todas já estão se matando no recreio, sinto como se estivesse dentro de um formigueiro. Abomino as formigas! Imagino-as subindo por minhas pernas, braços, as dezenas, centenas, milhares invadindo meu corpo pelos olhos, boca, ouvidos, penetrando em meu cérebro, é tudo muito obsceno, com suas antenas neutralizando meus movimentos de fuga, minhas mãos inúteis para afastá-las, minhas pernas inválidas para me ajudarem em minha corrida contra o destino, me sinto um soldado solitário avançando para o inimigo. Não existem fugas ou final feliz, é apenas um eterno caminhar para o inimigo em uma longa batalha perdida.
neste instante todas escutamos o sinal de término do recreio, esquecimento de alguém ao não desligar a sirene automática, alguns professores se olham e sem favor algum ficam em silêncio, mas o professor botto esbugalha os olhos por espanto...
Não acredito que já terminou o recreio, já estou me sentindo entre aqueles seres e suas algazarras de gritos, suas garras, tapas, suor e apelos de professor aqui, professor ali, professor não vi, professor não fui eu, professor quero fazer xixi, professor preciso fazer cocô, professor to com sede, quero beber água, professor quero a minha mãe, professor ele me empurrou, ele me mordeu, to com febre... Como se eu, um pobre e desacreditado professor, pudesse ser onipresente e justo frente a tantas e a tantos choros. São todas canibais! Estou sendo devorado num banquete tribal, durante a selvageria da antropofagia entre rivais. Então, sai o grito: calem a boca!
Botto, nós não teremos os demais períodos de aula... esqueceu da reunião?
Graças a Deus! Pelo menos, isso.
olha para os lados, não tem para onde ir, permanece parado de costas na parede do medo. está encurralado pela repulsa de si mesmo, pelas próprias escolhas, destruindo o que lhe resta, cegando aos pouquinhos, sussurrando para si, sai vá embora faça outra coisa seja feliz enquanto vocês se esforçam pra serem uns sujeitos normais e fazerem tudo igual, eu do meu lado, aprendendo a ser louco, um maluco total na loucura real, controlando minha “maluquez”, misturando com minha lucidez, vou ficar com certeza maluco beleza. e este caminho que eu mesmo escolhi é tão fácil seguir por não ter aonde ir sai vá faça outra coisa viva outra vida
Na verdade não existe nada pra ensinar! Somos as vítimas!
é o sinal das trombetas para o botto, precisa ir embora e apostar contra aqueles que ficarem zombando, não terão o encontro com o portão dos sonhos no final da jornada, o reino não lhes será oferecido em nome do holocausto diário, o massacre diluviano. coitado não construiu sua arca de noé, precisará de muito fôlego para atravessar tantos anos nadando na praia, aposto que afunda ou encontra um barquinho já lotado de passageiros lamentantes e terá que negociar sua subida a bordo, tudo é possível, mais um refugiado sem um porto seguro
Botto, entra em biometria. Se eu tivesse algo físico visível, mesmo que só no olhar, já estaria em casa.
aconselha layla, sem dar-se conta que, visivelmente, não era mais a mesma colega que nos corrompia com sua vivacidade, com a brutalidade da sua juventude e a generosidade de seus largos sorrisos de incredulidade e contentamento. comovia a todas com a força moral da juventude pronta para mudar o mundo e marcá-lo a ferro e fogo se preciso. o tempo e o vento passam e não deixam as pedras se manterem para sempre umas sobre as outras, tudo muda
Cara, pega o trem...
a frase surgida como um pensamento mágico guiado pela esperança do ar, clamam todos: façam tudo o que quiserem sem pensar em voltar. voar, “pegar o trem-azul com o sol na cabeça...”, mas também poderia ser para pegar o barco e se afogar, está na dúvida das suas intenções e imobilizado, jogou-se contra a parede e só sente o medo do desânimo, não é mais um sujeito que respeita a própria vontade
Gurias, não sei de vocês, mas não dá mais para trabalhar no pátio com tanto aluno caminhando sem rumo e atrapalhando, interferindo nas aulas, é muita bagunça!
explode desirrê, professora de educação física, que se encontrava conversando com samuel a um canto na sala das professoras, diga-se a bem da verdade, quaisquer dos lugares escolhidos pela professora, estivessem os olhares das pessoas onde estivessem, e eles se dirigiriam inevitavelmente para ela, ao mínimo movimento do seu corpo todo malhado e estendido com força, retesado por músculos rígidos. vestia-se com malhas colantes que lhe delineavam as formas reunidas em todas as qualidades concebíveis do belo, o desenho perfeito de um pintor, mais uma obra sedutora nas fantasias da natureza humana, uns com tanto...
Não disse? É muita confusão, e não apenas nas terças, a bruxa parece estar solta.
observação solidária da cabayba terminando seu terceiro iogurte
Nas salas de aula, também, gurias. Os alunos estão a todo instante batendo na porta a procura do amiguinho, da fulaninha. Olham um para outro e ficam rindo! Dá para entender?
acrescenta ofélia
Até que ponto você tolera as crianças com seu jeito de criança, suas atitudes de criança, sua capacidade de criança? Até que ponto eu tolero sua sujeira nata, sua pobreza, sua falta de educação burguesa, sua ignorância perante a cultura que reconheço e aprecio, sua mania de ficar pendurada na gente? Querendo colo, desejando a nossa humanidade.
intervém o samuel, liberto dos encantos da desirrê
Onde fica a disciplina, a higiene, o respeito e a obediência? Acabaram com aquela coisa de aprender dos conhecimentos adquiridos através da tradição e dos documentos, blá, blá, blá, todos relativos à evolução, ao passado da humanidade? Esqueceram de nos avisar que essas qualidades e esses discernimentos não são mais necessários?
Ofélia, se nós fomos criados alienados deste mundo diferente como poderemos tolerar o oposto? E quem é o nosso oposto? O pobre de Deus? Como vou ensinar meus alunos a serem amorosos com os outros, tolerantes com os outros se não consigo praticar isso, se não sou o exemplo? E se não consigo dar testemunho da minha competência com seriedade, amorosidade, tolerância e humildade, não tenho coerência!
Samuel, minha formação foi muito boa, com muita leitura e discussão sobre os grandes teóricos do pensamento pedagógico. Cresci amada, nunca passei fome ou frio. Não consigo sentir ou entender ou compreender a realidade dessas crianças pobres da beirada do mundo.
E quem intermediou esta discussão? Professores formadores expostos ao perigo e assumidos na responsabilidade de testemunhas da humanidade na sua construção histórica, ou apenas teóricos comovidos com o próprio umbigo?
O Aguinaldo ainda não chegou?
quer saber o agoniado botto
Não.
responde a nossa ofélia, já virando as costas ao samuel e se aproximando do botto
Conheço esse cara de longa data, querem ver? Chega na hora dos abraços no seu carrão amarelo, óculos escuros, barba por fazer depois de uma noitada no boteco.
nossa, quanta iniquidade, o botto não consegue mais disfarçar a mordacidade em relação às pessoas, assim como fala mal de um já está revelando ou descobrindo o que não era permitido de outro colega
Mas ele estava na escola.
informa ofélia
Então saiu no meio-dia para tomar uma cervejinha e vai chegar com aqueles óculos escuros, escondendo os olhos inchados, de boné e o andar de quem vive e come na vilória.
Já começou?
O quê?
A reunião!
Cala a boca!
Alguém viu a minha bolsa?
não sei por onde começar, e ficar longe deste canibalismo em nome do amor. precisamos antepor-nos aos falsos convincentes e misturar-nos aos miseráveis, mas de verdade, não apenas na aparência das teses e das rendas bordadas. não sou boazinha nem anjinho, apenas cansei da miudeza em que se vive, transparente, invisível, miserável, parecendo feliz. fazendo pose. tudo para acalmar as culpas das gentes vestidas dos pés a cabeça com meu sangue. nem continuo na cabeça de quem ensina a escrever e ler, muitas vezes, nem me pareço eu mesma, tal a boniteza da imaginação lembrada, encantamento, Isso, fui arrebatada por alguma coisa ou alguém, Algum espírito, Talvez, quem sabe, o meu que retorna depois de sair a passear no mundo, Se eu fosse aquilo ou isso, Mas morri de tiro em luta de corpo a corpo, sem festa, íntima de tão perto e do improviso do matador. um dia haverá de berrar o aluno inconformado, desviado do fio de prumo, e a aluna indiferente do que deveria ser, inclinada, torta da forma de régua, e, juntos, tapando sem luto, com sua sobrevida, aos encaramentos, as pescarias do espírito e as ordens dos construtores do muro, deixarão de ser a mercadoria. inconformados de morrer, antes do dia. talvez, seja tarde para nós, talvez não. precisamos escolher logo a vida
Escola é a vida em movimento. Ensinar é acordar sonhos. Aprender é transformar sonhos. É um belo lugar para ser feliz. Um lugar de encontros. Pessoas. Saberes. O prazer leva ao querer e à reflexão, decisões e buscas, alicerça a escolha diária de vir à escola para buscar e compartilhar, mas nada disso acontece sem a amorosidade. Este é o desafio.
obrigada, samuel
__________________________
Leia também:
Teatro pedagógico: iogurte na mesa
Parábolas de uma Professora
ensinar é acordar sonhos, aprender é transformar sonhos
baitasar e paulo e marko
terminei meu terceiro cigarro e retorno para o abrigo. Não lembro do meu primeiro fumo, enrolado em folha de papel, mas sem dúvida recordarei para sempre do último, momento de decisão e interrogação, instante de adeus, talvez um até breve, volto logo, ou vou acabar roendo todas as minhas unhas, não quero engordar
Alguém sabe dizer quando a reunião começa?
Schiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!!!
lutamos tanto por reuniões pedagógicas constantes, mas parecemos cardumes regulares vivendo desordenados de nós mesmas
Cala a boca!
A Mônica já retornou da biometria?
quer saber lélia, ao final do seu bolinho de batata recheado com carne, parece uma delícia, mesmo sendo muito gorduroso... fritura, gordura hidrogenada, eu me afogo com a nicotina e o alcatrão e ela se frita com o óleo da mãe de todas as gorduras. o que será que nos leva para o rastro de artérias entupidas, obstruídas e plastificadas, pulmões sufocados e fibrados, pergunto-me olhando para a trilha de fumaça que sobe e desaparece. desejo e necessidade de viver a vida em gotas, ensaiam uma resposta em coro minhas células. fico em dúvida, minhas respostas ensaiadas permanecem embutidas em mim, não se animam dar o ar da graça
Meu Deus, alguém tem guardanapo? Pura gordura!
fico em silêncio sorrindo, nem precisei avisar do perigo. foi melhor assim
Acho que ainda demora alguns dias em casa.
informa lia, professora de ensino religioso, vestida com muito colorido e alegria, aliás, sua característica marcante junto aos alunos, o contentamento e a satisfação de estar entre eles, na experiência de muitos anos na sala de aula com jovialidade. faz questão de mostrar que aquela alegria do tempo de menina ainda está com ela. o prazer de estar com os jovens e as crianças ainda a carrega pra cima e pra baixo, morro acima e morro abaixo, pulará valas e valos onde houver
O que aconteceu com a Mônica?
pergunta adail, professor de arte educação, distraído a assinar o livro-ponto e cavaquear com os colegas, mas atrapalhado com as suas barbas longas, mescladas de branco e preto, entre as suas mãos, a caneta e o livro-ponto. os óculos de leitura sobre a ponta do nariz completavam os jeans surrados, a camisa de algodão verde e as marcas de suor junto à cavidade inferior da junção do braço com o tronco, o sovaco. diriam meus alunos, caindo na gargalhada
Não foi com a Mônica. Os seus dois meninos que estão com sarampo e catapora. Coitadinhos. resume eliza, enquanto preenche seus cadernos de chamada
Meu Deus! Essa biometria promete... tensão resignada é o sentimento entre os meus colegas, e ao mesmo tempo de interrogação, ainda não sabiam quem iria substituí-la, por um breve instante ouviu-se o silêncio absoluto da solidão, nenhum se moveu, nenhuma falou, não havia o que comentar... tenham dó, espero que não me venham com as turmas da Mônica! Chega! Cansei! Não tenho mais paciência com estas crianças.
este é o professor botto, originário do anos ciclos finais que já não tem o que fazer, neste ano letivo desempenhando a função de volante no primeiro ciclo. aquele que flutua entre as turmas e auxilia no ensino e na aprendizagem. está com o rosto vermelhão, avivando suas sardas e nariz em forma de pimentão maduro, aliás, mais parecendo um abscesso dolorido e desconfortável. desculpe, maldade minha. esqueçam. ele faz sua voz ser ouvida de maneira escancarada e desencantada, não quer mais ser a cinderela, escolheu o papel de bufão, ou foi empurrado para ele pelo seu nariz de borracha. de novo, peço perdão, não vai se repetir. não tenho bem claro o que lhe acontecia, acho que nem mesmo ele o sabe
Gurias, eu estou aguardando loucamente a chegada das nossas férias! Comecei a contagem regressiva, não aguento mais. Estou pirando. Essas crianças não obedecem e não têm educação. Ou não obedecem porque não têm educação. Não sei, mas estou além do que consigo. Quando escuto sinal de início sinto um desânimo. Fico enjoada por conta da tarde de gritos e ofensas, pedidos que não serão atendidos, súplicas que serão ignoradas. Parecem estar contando estrelas, todos muito assanhados. Outro dia, precisei substituir uma colega no segundo ciclo, pedi que me escrevessem uma redação sobre o Natal. Todos se negaram. Uns porque diziam não ter Natal e não queriam pensar em Natal, outros em solidariedade aos colegas que não tinham Natal, protestavam contra a indiferença dos príncipes. A gota d’água foi um idiota que se atreveu a dizer: não vou escrever sobre o que eu não conheço. não sei, cansei desta gurizada ou desisti de mim mesma, caminhando por estes corredores. Engolindo, engolindo e sendo engolida, não tenho pecados e estou morrendo envenenada. A vida não é justa. Olhei bem para o guri e respondi: vocês não escrevem porque não sabem escrever!
o professor botto havia dado a senha para o discurso ‘o último que sair apaga a luz’. a professora layla, volante do segundo ciclo, aderiu com o entusiasmo de uma náufraga ao ver a bóia que lhe é jogada quando está preste a submergir nas profundezas geladas e escuras das águas. é o desespero final. precisa dizer e diz. seus cabelos longos, presos por uma piranha plástica, dando a forma de rabo de cavalo, não paravam sua dança com o vaivém do seu olhar, tentavam acompanhar em direção oposta ao olhar e voz trêmula. o encaramento vivo e o sorriso leve dos seus vinte e alguns anos contagiantes estavam ocultos e esquecidos. não fingia. acho que preciso de mais um cigarro, só mais uma pequena mentirinha
Eu descobri que sou alérgico às crianças. Fico com o corpo todo empipocado quando estou perto delas ou ouvindo o zunido de suas pequenas vozes afiadas e penetrantes. É um alarido infernal que parece disposto a vencer minhas resistências. Sou vencido pelos efeitos de sua ação destrutiva. Tenho ganas de pegar os seus pescoços e sacudindo-os perguntar, por quê? por quê? por quê não me revelam a verdade por inteiro? Quando saio para o pátio, e todas já estão se matando no recreio, sinto como se estivesse dentro de um formigueiro. Abomino as formigas! Imagino-as subindo por minhas pernas, braços, as dezenas, centenas, milhares invadindo meu corpo pelos olhos, boca, ouvidos, penetrando em meu cérebro, é tudo muito obsceno, com suas antenas neutralizando meus movimentos de fuga, minhas mãos inúteis para afastá-las, minhas pernas inválidas para me ajudarem em minha corrida contra o destino, me sinto um soldado solitário avançando para o inimigo. Não existem fugas ou final feliz, é apenas um eterno caminhar para o inimigo em uma longa batalha perdida.
neste instante todas escutamos o sinal de término do recreio, esquecimento de alguém ao não desligar a sirene automática, alguns professores se olham e sem favor algum ficam em silêncio, mas o professor botto esbugalha os olhos por espanto...
Não acredito que já terminou o recreio, já estou me sentindo entre aqueles seres e suas algazarras de gritos, suas garras, tapas, suor e apelos de professor aqui, professor ali, professor não vi, professor não fui eu, professor quero fazer xixi, professor preciso fazer cocô, professor to com sede, quero beber água, professor quero a minha mãe, professor ele me empurrou, ele me mordeu, to com febre... Como se eu, um pobre e desacreditado professor, pudesse ser onipresente e justo frente a tantas e a tantos choros. São todas canibais! Estou sendo devorado num banquete tribal, durante a selvageria da antropofagia entre rivais. Então, sai o grito: calem a boca!
Botto, nós não teremos os demais períodos de aula... esqueceu da reunião?
Graças a Deus! Pelo menos, isso.
olha para os lados, não tem para onde ir, permanece parado de costas na parede do medo. está encurralado pela repulsa de si mesmo, pelas próprias escolhas, destruindo o que lhe resta, cegando aos pouquinhos, sussurrando para si, sai vá embora faça outra coisa seja feliz enquanto vocês se esforçam pra serem uns sujeitos normais e fazerem tudo igual, eu do meu lado, aprendendo a ser louco, um maluco total na loucura real, controlando minha “maluquez”, misturando com minha lucidez, vou ficar com certeza maluco beleza. e este caminho que eu mesmo escolhi é tão fácil seguir por não ter aonde ir sai vá faça outra coisa viva outra vida
Na verdade não existe nada pra ensinar! Somos as vítimas!
é o sinal das trombetas para o botto, precisa ir embora e apostar contra aqueles que ficarem zombando, não terão o encontro com o portão dos sonhos no final da jornada, o reino não lhes será oferecido em nome do holocausto diário, o massacre diluviano. coitado não construiu sua arca de noé, precisará de muito fôlego para atravessar tantos anos nadando na praia, aposto que afunda ou encontra um barquinho já lotado de passageiros lamentantes e terá que negociar sua subida a bordo, tudo é possível, mais um refugiado sem um porto seguro
Botto, entra em biometria. Se eu tivesse algo físico visível, mesmo que só no olhar, já estaria em casa.
aconselha layla, sem dar-se conta que, visivelmente, não era mais a mesma colega que nos corrompia com sua vivacidade, com a brutalidade da sua juventude e a generosidade de seus largos sorrisos de incredulidade e contentamento. comovia a todas com a força moral da juventude pronta para mudar o mundo e marcá-lo a ferro e fogo se preciso. o tempo e o vento passam e não deixam as pedras se manterem para sempre umas sobre as outras, tudo muda
Cara, pega o trem...
a frase surgida como um pensamento mágico guiado pela esperança do ar, clamam todos: façam tudo o que quiserem sem pensar em voltar. voar, “pegar o trem-azul com o sol na cabeça...”, mas também poderia ser para pegar o barco e se afogar, está na dúvida das suas intenções e imobilizado, jogou-se contra a parede e só sente o medo do desânimo, não é mais um sujeito que respeita a própria vontade
Gurias, não sei de vocês, mas não dá mais para trabalhar no pátio com tanto aluno caminhando sem rumo e atrapalhando, interferindo nas aulas, é muita bagunça!
explode desirrê, professora de educação física, que se encontrava conversando com samuel a um canto na sala das professoras, diga-se a bem da verdade, quaisquer dos lugares escolhidos pela professora, estivessem os olhares das pessoas onde estivessem, e eles se dirigiriam inevitavelmente para ela, ao mínimo movimento do seu corpo todo malhado e estendido com força, retesado por músculos rígidos. vestia-se com malhas colantes que lhe delineavam as formas reunidas em todas as qualidades concebíveis do belo, o desenho perfeito de um pintor, mais uma obra sedutora nas fantasias da natureza humana, uns com tanto...
Não disse? É muita confusão, e não apenas nas terças, a bruxa parece estar solta.
observação solidária da cabayba terminando seu terceiro iogurte
Nas salas de aula, também, gurias. Os alunos estão a todo instante batendo na porta a procura do amiguinho, da fulaninha. Olham um para outro e ficam rindo! Dá para entender?
acrescenta ofélia
Até que ponto você tolera as crianças com seu jeito de criança, suas atitudes de criança, sua capacidade de criança? Até que ponto eu tolero sua sujeira nata, sua pobreza, sua falta de educação burguesa, sua ignorância perante a cultura que reconheço e aprecio, sua mania de ficar pendurada na gente? Querendo colo, desejando a nossa humanidade.
intervém o samuel, liberto dos encantos da desirrê
Onde fica a disciplina, a higiene, o respeito e a obediência? Acabaram com aquela coisa de aprender dos conhecimentos adquiridos através da tradição e dos documentos, blá, blá, blá, todos relativos à evolução, ao passado da humanidade? Esqueceram de nos avisar que essas qualidades e esses discernimentos não são mais necessários?
Ofélia, se nós fomos criados alienados deste mundo diferente como poderemos tolerar o oposto? E quem é o nosso oposto? O pobre de Deus? Como vou ensinar meus alunos a serem amorosos com os outros, tolerantes com os outros se não consigo praticar isso, se não sou o exemplo? E se não consigo dar testemunho da minha competência com seriedade, amorosidade, tolerância e humildade, não tenho coerência!
Samuel, minha formação foi muito boa, com muita leitura e discussão sobre os grandes teóricos do pensamento pedagógico. Cresci amada, nunca passei fome ou frio. Não consigo sentir ou entender ou compreender a realidade dessas crianças pobres da beirada do mundo.
E quem intermediou esta discussão? Professores formadores expostos ao perigo e assumidos na responsabilidade de testemunhas da humanidade na sua construção histórica, ou apenas teóricos comovidos com o próprio umbigo?
O Aguinaldo ainda não chegou?
quer saber o agoniado botto
Não.
responde a nossa ofélia, já virando as costas ao samuel e se aproximando do botto
Conheço esse cara de longa data, querem ver? Chega na hora dos abraços no seu carrão amarelo, óculos escuros, barba por fazer depois de uma noitada no boteco.
nossa, quanta iniquidade, o botto não consegue mais disfarçar a mordacidade em relação às pessoas, assim como fala mal de um já está revelando ou descobrindo o que não era permitido de outro colega
Mas ele estava na escola.
informa ofélia
Então saiu no meio-dia para tomar uma cervejinha e vai chegar com aqueles óculos escuros, escondendo os olhos inchados, de boné e o andar de quem vive e come na vilória.
Já começou?
O quê?
A reunião!
Cala a boca!
Alguém viu a minha bolsa?
não sei por onde começar, e ficar longe deste canibalismo em nome do amor. precisamos antepor-nos aos falsos convincentes e misturar-nos aos miseráveis, mas de verdade, não apenas na aparência das teses e das rendas bordadas. não sou boazinha nem anjinho, apenas cansei da miudeza em que se vive, transparente, invisível, miserável, parecendo feliz. fazendo pose. tudo para acalmar as culpas das gentes vestidas dos pés a cabeça com meu sangue. nem continuo na cabeça de quem ensina a escrever e ler, muitas vezes, nem me pareço eu mesma, tal a boniteza da imaginação lembrada, encantamento, Isso, fui arrebatada por alguma coisa ou alguém, Algum espírito, Talvez, quem sabe, o meu que retorna depois de sair a passear no mundo, Se eu fosse aquilo ou isso, Mas morri de tiro em luta de corpo a corpo, sem festa, íntima de tão perto e do improviso do matador. um dia haverá de berrar o aluno inconformado, desviado do fio de prumo, e a aluna indiferente do que deveria ser, inclinada, torta da forma de régua, e, juntos, tapando sem luto, com sua sobrevida, aos encaramentos, as pescarias do espírito e as ordens dos construtores do muro, deixarão de ser a mercadoria. inconformados de morrer, antes do dia. talvez, seja tarde para nós, talvez não. precisamos escolher logo a vida
Escola é a vida em movimento. Ensinar é acordar sonhos. Aprender é transformar sonhos. É um belo lugar para ser feliz. Um lugar de encontros. Pessoas. Saberes. O prazer leva ao querer e à reflexão, decisões e buscas, alicerça a escolha diária de vir à escola para buscar e compartilhar, mas nada disso acontece sem a amorosidade. Este é o desafio.
obrigada, samuel
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