Eduardo Galeano
10. O Livro dos Abraços
Crônica da cidade de Quito
Desfila à cabeça das manifestações de esquerda. Costuma assistir aos atos culturais, embora se aborreça, porque sabe que depois vem a farra. Gosta de rum, sem gelo nem água, desde que seja cubano. Respeita os sinais de trânsito. Caminha Quito de ponta a ponta, pelo direito e pelo avesso, percorrendo amigos e inimigos. Nas subidas, prefere o ônibus, e vai de penetra, sem pagar passagem. Alguns choferes bronzeiam: quando desce, gritam para ele zarolho de merda. Chama-se Choco e é brigão e apaixonado. Luta até Com quatro de uma só vez; e nas noites de lua cheia, foge para buscar namoradas. Depois conta, alvoroçado, as loucas aventuras que acaba de viver. Mishy não compreende os detalhes, mas capta o sentido geral.
Certa vez, faz anos, foi levado para longe de Quito. A comida era pouca, e resolveram deixá-lo num povoado distante, onde tinha nascido. Mas voltou. Depois de um mês, voltou. Chegou na porta da casa e ficou lá, esticado, sem forças para celebrar movendo o rabo, ou para se anunciar latindo. Tinha andado por muitas montanhas e avenidas e chegou nas últimas, feito um trapo, os ossos saltando, o pelo sujo de sangue seco. Desde aquela época odeia os chapéus, as fardas e as motocicletas.
O Estado na América Latina
Já faz alguns anos, muitos, que o coronel Amen me contou. Acontece que um soldado recebeu a ordem de mudar de quartel. Por um ano, foi mandado a outro destino, em algum lugar de fronteira, porque o Superior Governo do Uruguai tinha contraído uma de suas periódicas febres de guerra ao contrabando.
Ao ir embora, o soldado deixou sua mulher e outros pertences ao melhor amigo, para que tivesse tudo sob custódia.
Passado um ano, voltou. E encontrou seu melhor amigo, também soldado, sem querer devolver a mulher. Não tinha nenhum problema em relação ao resto das coisas; mas a mulher, não. O litígio ia ser resolvido através do veredicto do punhal, em duelo, quando o coronel Amen resolveu parar com a brincadeira:
— Que se expliquem — exigiu.
— Esta mulher é minha — disse o ausentado.
— Dele? Terá sido. Mas já não é — disse o outro. — Razões — disse o coronel. Quero explicações. E o usurpador explicou:
— Mas coronel, como vou devolvê-la? Depois do que a coitada sofreu! Se o senhor visse como este animal a tratava... A tratava, coronel... como se ela fosse do Estado!
A burocracia/1
Nos tempos da ditadura militar, em meados de 1973, um preso político uruguaio, Juan José Noueched, sofreu uma sanção de cinco dias: cinco dias sem visita nem recreio, cinco dias sem nada, por violação do regulamento. Do ponto de vista do capitão que aplicou a sanção, o regulamento não deixava margem de dúvida. O regulamento estabelecia claramente que os presos deviam caminhar em fila e com as mãos nas costas. Noueched tinha sido castigado por estar com apenas uma das mãos nas costas.
Noueched era maneta.
Tinha sido preso em duas etapas. Primeiro tinham prendido seu braço. Depois, ele. O braço caiu em Montevidéu. Noueched vinha escapando, correndo sem parar, quando o policial que o perseguia conseguiu agarrá-lo e gritou: "Teje preso!", e ficou com o braço na mão. O resto de Noueched caiu preso um ano e meio depois, em Paysandú.
Na cadeia, Noueched quis recuperar o braço perdido:
— Faça um requerimento — disseram a ele. Ele explicou que não tinha lápis:
— Faça um requerimento de lápis — disseram. Então passou a ter lápis, mas não tinha papel.
— Faça um requerimento de papel — disseram a ele. Quando finalmente teve lápis e papel, formulou seu requerimento de braço.
Tempos depois, responderam. Não. Não era possível: o braço estava em outro expediente. Ele tinha sido processado pela justiça militar. O braço, pela justiça civil.
A burocracia/2
Tito Sclavo conseguiu ver e transcrever alguns boletins oficiais do cárcere chamado Libertad, nos anos da ditadura militar uruguaia. São atas de castigo: condena-se ao Calabouço os presos que tenham cometido o delito de desenhar pássaros, ou casais, ou mulheres grávidas, ou que tenham sido surpreendidos usando uma toalha estampada de flores. Um preso, cuja cabeça estava, como todas, raspada a zero, foi castigado por entrar despenteado no refeitório. Outro, por passar a cabeça por baixo da porta, embora debaixo da porta houvesse um milímetro de luz. Houve Calabouço para um preso que pretendeu familiarizar-se com um cão de guerra, e para outro que insultou um cão integrante das Forças Armadas. Outro foi castigado porque latiu como um cão sem razão justificada.
A burocracia/3
Sixto Martínez fez o serviço militar num quartel de Sevilha. No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao banquinho, um soldado montava guarda. Ninguém sabia porque se montava guarda para o banquinho. A guarda era feita por que sim, noite e dia, todas as noites, todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os soldados obedeciam. Ninguém nunca questionou, ninguém nunca perguntou. Assim era feito, e sempre tinha sido feito.
E assim continuou sendo feito até que alguém, não sei qual general ou coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso revirar os arquivos a fundo. E depois de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta e um anos, dois meses e quatro dias, que um oficial tinha mandado montar guarda junto ao banquinho, que fora recém-pintado, para que ninguém sentasse na tinta fresca.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
9.O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Havana - Eduardo Galeano
11.O Livro dos Abraços - Causos/1 - Eduardo Galeano
10. O Livro dos Abraços
Crônica da cidade de Quito
Desfila à cabeça das manifestações de esquerda. Costuma assistir aos atos culturais, embora se aborreça, porque sabe que depois vem a farra. Gosta de rum, sem gelo nem água, desde que seja cubano. Respeita os sinais de trânsito. Caminha Quito de ponta a ponta, pelo direito e pelo avesso, percorrendo amigos e inimigos. Nas subidas, prefere o ônibus, e vai de penetra, sem pagar passagem. Alguns choferes bronzeiam: quando desce, gritam para ele zarolho de merda. Chama-se Choco e é brigão e apaixonado. Luta até Com quatro de uma só vez; e nas noites de lua cheia, foge para buscar namoradas. Depois conta, alvoroçado, as loucas aventuras que acaba de viver. Mishy não compreende os detalhes, mas capta o sentido geral.
Certa vez, faz anos, foi levado para longe de Quito. A comida era pouca, e resolveram deixá-lo num povoado distante, onde tinha nascido. Mas voltou. Depois de um mês, voltou. Chegou na porta da casa e ficou lá, esticado, sem forças para celebrar movendo o rabo, ou para se anunciar latindo. Tinha andado por muitas montanhas e avenidas e chegou nas últimas, feito um trapo, os ossos saltando, o pelo sujo de sangue seco. Desde aquela época odeia os chapéus, as fardas e as motocicletas.
O Estado na América Latina
Já faz alguns anos, muitos, que o coronel Amen me contou. Acontece que um soldado recebeu a ordem de mudar de quartel. Por um ano, foi mandado a outro destino, em algum lugar de fronteira, porque o Superior Governo do Uruguai tinha contraído uma de suas periódicas febres de guerra ao contrabando.
Ao ir embora, o soldado deixou sua mulher e outros pertences ao melhor amigo, para que tivesse tudo sob custódia.
Passado um ano, voltou. E encontrou seu melhor amigo, também soldado, sem querer devolver a mulher. Não tinha nenhum problema em relação ao resto das coisas; mas a mulher, não. O litígio ia ser resolvido através do veredicto do punhal, em duelo, quando o coronel Amen resolveu parar com a brincadeira:
— Que se expliquem — exigiu.
— Esta mulher é minha — disse o ausentado.
— Dele? Terá sido. Mas já não é — disse o outro. — Razões — disse o coronel. Quero explicações. E o usurpador explicou:
— Mas coronel, como vou devolvê-la? Depois do que a coitada sofreu! Se o senhor visse como este animal a tratava... A tratava, coronel... como se ela fosse do Estado!
A burocracia/1
Nos tempos da ditadura militar, em meados de 1973, um preso político uruguaio, Juan José Noueched, sofreu uma sanção de cinco dias: cinco dias sem visita nem recreio, cinco dias sem nada, por violação do regulamento. Do ponto de vista do capitão que aplicou a sanção, o regulamento não deixava margem de dúvida. O regulamento estabelecia claramente que os presos deviam caminhar em fila e com as mãos nas costas. Noueched tinha sido castigado por estar com apenas uma das mãos nas costas.
Noueched era maneta.
Tinha sido preso em duas etapas. Primeiro tinham prendido seu braço. Depois, ele. O braço caiu em Montevidéu. Noueched vinha escapando, correndo sem parar, quando o policial que o perseguia conseguiu agarrá-lo e gritou: "Teje preso!", e ficou com o braço na mão. O resto de Noueched caiu preso um ano e meio depois, em Paysandú.
Na cadeia, Noueched quis recuperar o braço perdido:
— Faça um requerimento — disseram a ele. Ele explicou que não tinha lápis:
— Faça um requerimento de lápis — disseram. Então passou a ter lápis, mas não tinha papel.
— Faça um requerimento de papel — disseram a ele. Quando finalmente teve lápis e papel, formulou seu requerimento de braço.
Tempos depois, responderam. Não. Não era possível: o braço estava em outro expediente. Ele tinha sido processado pela justiça militar. O braço, pela justiça civil.
A burocracia/2
Tito Sclavo conseguiu ver e transcrever alguns boletins oficiais do cárcere chamado Libertad, nos anos da ditadura militar uruguaia. São atas de castigo: condena-se ao Calabouço os presos que tenham cometido o delito de desenhar pássaros, ou casais, ou mulheres grávidas, ou que tenham sido surpreendidos usando uma toalha estampada de flores. Um preso, cuja cabeça estava, como todas, raspada a zero, foi castigado por entrar despenteado no refeitório. Outro, por passar a cabeça por baixo da porta, embora debaixo da porta houvesse um milímetro de luz. Houve Calabouço para um preso que pretendeu familiarizar-se com um cão de guerra, e para outro que insultou um cão integrante das Forças Armadas. Outro foi castigado porque latiu como um cão sem razão justificada.
A burocracia/3
Sixto Martínez fez o serviço militar num quartel de Sevilha. No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao banquinho, um soldado montava guarda. Ninguém sabia porque se montava guarda para o banquinho. A guarda era feita por que sim, noite e dia, todas as noites, todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os soldados obedeciam. Ninguém nunca questionou, ninguém nunca perguntou. Assim era feito, e sempre tinha sido feito.
E assim continuou sendo feito até que alguém, não sei qual general ou coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso revirar os arquivos a fundo. E depois de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta e um anos, dois meses e quatro dias, que um oficial tinha mandado montar guarda junto ao banquinho, que fora recém-pintado, para que ninguém sentasse na tinta fresca.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
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