Eduardo Galeano
11. O Livro dos Abraços
Causos/1
Nas fogueiras de Paysandú, Mellado Iturria conta causos. Conta
acontecidos. Os acontecidos aconteceram alguma vez, ou quase aconteceram, ou não aconteceram nunca, mas têm uma coisa de bom: acontecem cada vez que são contados.
Este é o triste causo do bagrezinho do arroio Negro.
Tinha bigodes de arame farpado, era vesgo e de olhos saltados. Nunca Mellado tinha visto um peixe tão feio. O bagre vinha grudado em seus calcanhares desde a beira do arroio, e Mellado não conseguia espantá-lo. Quando chegou no casario, com o bagre feito sombra, já tinha se resignado.
Com o tempo, foi sentindo carinho pelo peixe. Mellado nunca tinha tido um amigo sem pernas. Desde o amanhecer o bagre o acompanhava para ordenhar e percorrer campo. Ao cair da tarde, tomavam chimarrão juntos; e o bagre escutava suas confidencias.
Os cachorros, enciumados, olhavam o bagre com rancor; a cozinheira, com más intenções. Mellado pensou em dar um nome para o peixe, para ter como chamá-lo e para fazer-se respeitar, mas não conhecia nenhum nome de peixe, e batizá-lo de Sinforoso ou Hermenegildo poderia desagradar a Deus.
Estava sempre de olho nele. O bagre tinha uma notória tendência às
diabruras. Aproveitava qualquer descuido e ia espantar as galinhas ou provocar os cachorros:
— Comporte-se — dizia Mellado ao bagre.
Certa manhã de muito calor, quando as lagartixas andavam de
sombrinha e o bagrezinho se abanava furiosamente com as barbatanas, Mellado teve a idéia fatal:
— Vamos tomar banho no arrolo — propôs. Foram, os dois.
E o bagre se afogou.
Causos/2
Nos antigamentes, dom Verídico semeou casas e gentes em volta do
botequim El Resorte, para que o botequim não se sentisse sozinho. Este causo aconteceu, dizem por aí, no povoado por ele nascido.
E dizem por aí que ali havia um tesouro, escondido na casa de um
velhinho todo mequetrefi.
Uma vez por mês, o velhinho, que estava nas últimas, se levantava da cama e ia receber a pensão.
Aproveitando a ausência, alguns ladrões, vindos de Montevidéu,
invadiram a casa.
Os ladrões buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A única coisa que encontraram foi um baú de madeira, coberto de trapos, num canto do porão. O tremendo cadeado que o defendia resistiu, invicto, ao ataque das gazuas.
E assim, levaram o baú. Quando finalmente conseguiram abri-lo, já longe dali, descobriram que o baú estava cheio de cartas. Eram as cartas de amor que o velhinho tinha recebido ao longo de sua longa vida.
Os ladrões iam queimar as cartas. Discutiram. Finalmente, decidiram devolvê-las. Uma por uma. Uma por semana.
Desde então, ao meio-dia de cada segunda-feira, o velhinho se sentava no alto da colina. E lá esperava que aparecesse o carteiro no caminho. Mal via o cavalo, gordo de alforjes, entre as árvores, o velhinho desandava a correr. O carteiro, que já sabia, trazia sua carta nas mãos.
E até São Pedro escutava as batidas daquele coração enlouquecido de alegria por receber palavras de mulher.
Causos/3
O que é a verdade? A verdade é uma mentira contada por Fernando
Silva. Fernando conta com o corpo inteiro, e não apenas com palavras, e pode se transformar em outra gente ou em bicho voador ou no que for, e faz isso de tal maneira que depois a gente escuta, por exemplo, o sabiá cantando num galho, e a gente pensa: Esse passarinho está imitando Fernando quando imita o sabiá.
Ele conta causos da linda gente do povo, da gente recém-criada, que ainda tem cheiro de barro; e também causos de alguns tipos extravagantes que ele conheceu, como aquele espelheiro que fazia espelhos e se metia neles, se perdia, ou aquele apaga dor de vulcões que o diabo deixou zarolho, por vingança, cuspindo em seu olho. Os causos acontecem em lugares onde Fernando esteve: o hotel que abria só para fantasmas, aquela mansão onde as bruxas morreram de chatice ou a casa de Ticuantepe, que era tão sombreada e fresca que a gente sentia vontade de ter, ali, uma namorada à nossa espera.
Além disso, Fernando trabalha como médico. Prefere as ervas aos
comprimidos e cura a úlcera com plantas e ovo de pombo; mas prefere ainda a própria mão. Porque ele cura tocando. E contando, que é outra maneira de tocar.
_______________________
Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
10.O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Quito - Eduardo Galeano
12.O Livro dos Abraços - Noite de Natal - Eduardo Galeano
11. O Livro dos Abraços
Causos/1
Nas fogueiras de Paysandú, Mellado Iturria conta causos. Conta
acontecidos. Os acontecidos aconteceram alguma vez, ou quase aconteceram, ou não aconteceram nunca, mas têm uma coisa de bom: acontecem cada vez que são contados.
Este é o triste causo do bagrezinho do arroio Negro.
Tinha bigodes de arame farpado, era vesgo e de olhos saltados. Nunca Mellado tinha visto um peixe tão feio. O bagre vinha grudado em seus calcanhares desde a beira do arroio, e Mellado não conseguia espantá-lo. Quando chegou no casario, com o bagre feito sombra, já tinha se resignado.
Com o tempo, foi sentindo carinho pelo peixe. Mellado nunca tinha tido um amigo sem pernas. Desde o amanhecer o bagre o acompanhava para ordenhar e percorrer campo. Ao cair da tarde, tomavam chimarrão juntos; e o bagre escutava suas confidencias.
Os cachorros, enciumados, olhavam o bagre com rancor; a cozinheira, com más intenções. Mellado pensou em dar um nome para o peixe, para ter como chamá-lo e para fazer-se respeitar, mas não conhecia nenhum nome de peixe, e batizá-lo de Sinforoso ou Hermenegildo poderia desagradar a Deus.
Estava sempre de olho nele. O bagre tinha uma notória tendência às
diabruras. Aproveitava qualquer descuido e ia espantar as galinhas ou provocar os cachorros:
— Comporte-se — dizia Mellado ao bagre.
Certa manhã de muito calor, quando as lagartixas andavam de
sombrinha e o bagrezinho se abanava furiosamente com as barbatanas, Mellado teve a idéia fatal:
— Vamos tomar banho no arrolo — propôs. Foram, os dois.
E o bagre se afogou.
Causos/2
Nos antigamentes, dom Verídico semeou casas e gentes em volta do
botequim El Resorte, para que o botequim não se sentisse sozinho. Este causo aconteceu, dizem por aí, no povoado por ele nascido.
E dizem por aí que ali havia um tesouro, escondido na casa de um
velhinho todo mequetrefi.
Uma vez por mês, o velhinho, que estava nas últimas, se levantava da cama e ia receber a pensão.
Aproveitando a ausência, alguns ladrões, vindos de Montevidéu,
invadiram a casa.
Os ladrões buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A única coisa que encontraram foi um baú de madeira, coberto de trapos, num canto do porão. O tremendo cadeado que o defendia resistiu, invicto, ao ataque das gazuas.
E assim, levaram o baú. Quando finalmente conseguiram abri-lo, já longe dali, descobriram que o baú estava cheio de cartas. Eram as cartas de amor que o velhinho tinha recebido ao longo de sua longa vida.
Os ladrões iam queimar as cartas. Discutiram. Finalmente, decidiram devolvê-las. Uma por uma. Uma por semana.
Desde então, ao meio-dia de cada segunda-feira, o velhinho se sentava no alto da colina. E lá esperava que aparecesse o carteiro no caminho. Mal via o cavalo, gordo de alforjes, entre as árvores, o velhinho desandava a correr. O carteiro, que já sabia, trazia sua carta nas mãos.
E até São Pedro escutava as batidas daquele coração enlouquecido de alegria por receber palavras de mulher.
Causos/3
O que é a verdade? A verdade é uma mentira contada por Fernando
Silva. Fernando conta com o corpo inteiro, e não apenas com palavras, e pode se transformar em outra gente ou em bicho voador ou no que for, e faz isso de tal maneira que depois a gente escuta, por exemplo, o sabiá cantando num galho, e a gente pensa: Esse passarinho está imitando Fernando quando imita o sabiá.
Ele conta causos da linda gente do povo, da gente recém-criada, que ainda tem cheiro de barro; e também causos de alguns tipos extravagantes que ele conheceu, como aquele espelheiro que fazia espelhos e se metia neles, se perdia, ou aquele apaga dor de vulcões que o diabo deixou zarolho, por vingança, cuspindo em seu olho. Os causos acontecem em lugares onde Fernando esteve: o hotel que abria só para fantasmas, aquela mansão onde as bruxas morreram de chatice ou a casa de Ticuantepe, que era tão sombreada e fresca que a gente sentia vontade de ter, ali, uma namorada à nossa espera.
Além disso, Fernando trabalha como médico. Prefere as ervas aos
comprimidos e cura a úlcera com plantas e ovo de pombo; mas prefere ainda a própria mão. Porque ele cura tocando. E contando, que é outra maneira de tocar.
_______________________
Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
________________________
Leia também:
10.O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Quito - Eduardo Galeano
12.O Livro dos Abraços - Noite de Natal - Eduardo Galeano
Nenhum comentário:
Postar um comentário