As Músicas dos 100 Anos Com Samba
[especial] Agoniza mas não morre. As histórias e os sambas que marcaram os últimos 100 anos: https://t.co/P1rD8USbrp pic.twitter.com/6cgakmbrQz— Nexo (@NexoJornal) 23 de agosto de 2016
O samba já foi ‘amaxixado’ na época de Donga, sincopado com a turma do Estácio, calangueado com Martinho, choroso com as vozes do rádio, sofisticado com a bossa nova, ruralizado com o paulista Geraldo Filme, suingado com Jorge Ben, épico com os enredos de Silas, batucado com o pagode do Cacique e romântico nos anos 90. Acompanhe essa história e entenda as mudanças pelas quais passou o gênero que agoniza, mas não morre
O começo do século
Está ouvindo essa música? Os versinhos são velhos conhecidos. Há 100 anos, Ernesto dos Santos, conhecido como Donga, registrava a partitura da música na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, como um “samba carnavalesco”. O carioca, com então 26 anos, já estava de olho no carnaval do ano seguinte. Na voz do cantor Manuel Pedro dos Santos, chamado Baiano, a canção foi gravada e, como ansiado por Donga, estourou e foi cantada em coro por foliões em blocos pelas ruas do Rio.
“O chefe da folia,
pelo telefone mandou me avisar
Que com alegria não se questione
Para se brincar!
Ai, ai, ai. Deixe as mágoas pra trás, ó rapaz
Ai, ai, ai. Fica triste se és capaz e verás.”
(Donga e Mauro de Almeida)
Além de garantir a alegria de quem brincava o carnaval, “Pelo telefone” guarda a importância de ser apontada como o primeiro samba gravado. O que não é livre de contestações.
Primeiro, pesquisadores apontam a existência de gravações anteriores que já levavam a classificação de gênero “samba”. Questiona-se também a autoria do samba como sendo de Donga, além do jornalista Mauro de Almeida, já que muitos dos versos já eram cantados em rodas de samba na casa da Tia Ciata, cozinheira que na sua casa recebia sambistas de toda parte do Rio de Janeiro. Não por acaso, alguns versos mudam conforme a versão (“chefe da folia” vira “chefe da polícia”, que avisa que no bairro da Carioca tem “uma roleta para se jogar”). Por fim, rebate-se ainda seu enquadramento como samba. O argumento é de que a gravação, rústica, feita sem percussão, reproduz um samba “amaxixado”. O samba, tal qual viria a ganhar todo o país, seria elaborado apenas anos depois.
Sob dúvida ou não, o caso é que “Pelo telefone” marcou época e colocou o samba, gênero musical adotado como sendo “a cara do Brasil”, em evidência no carnaval carioca. “Ele fez um sucesso estrondoso e levou o samba para o disco, fazendo com que o samba se tornasse a trilha sonora do carnaval carioca em definitivo”, diz Luis Filipe de Lima, instrumentista, compositor e pesquisador musical, que assina com o sambista Nei Lopes o livro “Dicionário da história social do samba” (Civilização Brasileira, 2015). “Antes dele, havia muita marcha, maxixe… Tinha de tudo. ‘Pelo telefone’ marca esse salto do samba em matéria de prestígio.”
FOTO: REPRODUÇÃO/BIBLIOTECA NACIONAL
REGISTRO DO ‘PELO THELEPHONE’, POR ERNESTO DOS SANTOS (DONGA), EM NOVEMBRO DE 1916.
Aproveitando este marco, consultamos sambistas, músicos e pesquisadores para saber quais outros sambas gravados marcaram e renovaram o gênero nestes 100 anos. Para cada período, você poderá ouvir uma seleção dos sambas recomendados. Ao final, preparamos uma lista completa com todas as indicações, feitas por: Germano Mathias, Hermano Vianna, Luis Filipe de Lima, Luiz Antônio Simas, Rafael Lo Ré, Rildo Hora, Sérgio Cabral, Tadeu Kaçula, Teresa Cristina, Thobias da Vai-Vai, Tuco Pellegrino e Wilson das Neves. Vem que a roda de samba vai começar:
O samba que nasce e a turma do Estácio
É da década de 1910 a primeira geração de sambistas. Contemporâneos de Donga, estavam ali grandes nomes como o talentoso Pixinguinha (autor de “Carinhoso”), o pandeirista João da Baiana, os pioneiros do violão sete cordas China (irmão de Pixinguinha) e Tute, além do instrumentista e compositor Sinhô. Este, cujo nome era José Barbosa da Silva, assina diversas composições que viriam a ser gravadas por vozes importantes da época, como Francisco Alves ("Ora, vejam só" e "Me faz carinhos", de 1925 e 1928, respectivamente) e Mário Reis ("Jura" e "Gosto que me enrosco", de 1928). Não por acaso, ganhou o título de “Rei do samba”.
Nesta época, o processo de gravação era penoso e os resultados, de baixa qualidade. Os músicos eram obrigados a cantar a plenos pulmões em direção a uma corneta, a fim de imprimir por meio de uma agulha o som nos discos de 78 rotações, posteriormente tocados em gramofones.
A seleção do que e como seria gravado também era rigorosa. Sendo centralizada no Rio de Janeiro, a pequena indústria fonográfica registrava as produções de quem ali vivia e ao estilo da fatia da população carioca com poder aquisitivo que pudesse comprá-las. O advogado e músico Rafael Lo Ré, membro do grupo paulista Glória ao Samba, dedicado à pesquisa e reprodução de sambas antigos, comenta que por essa razão muitos dos sambas da época eram orquestrados e raramente contavam com “batucada”, ou seja, instrumentos de percussão como pandeiro, surdo e tamborim.
O samba estava ali, mas ainda não com a estrutura mais “suingada” ou “sincopada” que assumiria a partir da segunda metade da década de 1920, com um grupo de sambistas do Estácio, bairro central do Rio de Janeiro. Alcebíades Barcelos (Bide), Ismael Silva, Nilton Bastos, Mano Edgar, Armando Marçal, entre outros, formaram aquela que se tornou a primeira escola de samba carioca, chamada “Deixa Falar”. Localizados próximos a uma Escola Normal (instituição que formava professores), adotaram a brincadeira de que eram professores de samba, daí o título de “escola de samba”.
“O pessoal do Estácio chega fazendo um samba diferente, com melodia, sincopado, ou seja, apoiado nas notas fracas, e também com notas longas, recurso que ajuda a se cantar mais alto, feito para se desfilar o Carnaval”, diz o músico Luis Filipe de Lima.
Rafael Lo Ré, do Glória ao Samba, lembra que a turma do Estácio, através do Bide, ainda inovou com a introdução de instrumentos, como o surdo (uma lata grande de manteiga) e o tamborim, ambos com couro. “Eles inventaram uma maneira nova de tocar samba, deram métrica e isso influenciou Mangueira, Portela e, por conta das gravações, se espalhou para o Brasil todo”, diz.
FOTO: ARQUIVO MARÇAL/REPRODUÇÃO/ODEON
A DUPLA BIDE (DIR.) E MARÇAL (ESQ.), COM O INTÉRPRETE FRANCISCO ALVES
O QUE SE DEVE OUVIR
Tuco Pellegrino
SAMBISTA
“A malandragem”, (1928), de Bide e Marçal, que o Francisco Alves gravou. Entendo esse samba como um divisor. O “Pelo Telefone” não tem a ginga do samba. A quebra da “A malandragem” é diferente. Apontaria esse, mas também o “Quem eu deixar não quero mais” (1928), do Mano Edgar - muito se falava que o Mano Edgar foi dos primeiros a fazer samba assim no Estácio. E aí vem o “Agora é cinza” (1933), tido como um samba-enredo, da dupla Bide e Marçal. O samba era só a 1ª parte, com o Estácio forma-se essa coisa do samba com 1ª e 2ª parte. Estilo que passou então a ser seguido nas gravações.
Teresa Cristina
CANTORA
Dessa época, começo com “Se você jurar (1932)”, do Ismael Silva (gravado por Mário Reis e Francisco Alves). O Ismael explica a própria relevância em um programa de TV. Ele considerava o ‘Pelo Telefone’ um maxixe, as pessoas andavam duras. "Se você jurar" é muito diferente. Ele fez um samba para a escola desfilar, tem uma rítmica diferente, que é o que a gente até hoje chama de samba tradicional. Ele inaugurou essa outra forma de se fazer samba, ajudando o passista.
Luiz Antonio Simas
HISTORIADOR
Quem começa a pensar o samba com uma síncope adequada para cortejo é a turma do Estácio. "A primeira vez"(gravado em 1940), de Bide e Marçal, evidencia isso. Fala-se do Nilton Bastos e do Ismael como figuras proeminentes do Estácio, mas, para mim, a dupla Bide e Marçal são tão importantes para a música brasileira como Tom e Vinicius, João Bosco e Aldir Blanc, etc.
Rafael Lo Ré
MÚSICO E PESQUISADOR
O pessoal do Estácio virou ‘músico profissional’. O Bide fez parte do Gente do Morro, com Benedito Lacerda, que era um regional (grupo composto por flauta, violão e cavaco) que tocava nas gravações, introduzindo aí a batucada também. Tem o “Nasci no samba”(1932), do Bide, com gravação do Leonel Faria e o Gente do Morro, com ritmistas do Estácio. Daí surgem centenas de gravações com orquestração, mas também com esse pessoal samba ‘pé no chão’.
Luis Filipe de Lima
MÚSICO E PESQUISADOR
De 1939, tem um samba que deixa claro o que é o samba sincopado. Síncope é uma figura rítmica que marca os tempos fracos. A síncope é a figura que faz soar as notas que estão entre um tempo forte e outro. É como se você estivesse enganando o cérebro, o corpo balança porque a nota cai num tempo que você não está esperando. O exemplo mais bem acabado disso foi o primeiro samba que o Geraldo Pereira (autor de “Sem compromisso” e “Falsa baiana”) emplacou, chamado “Se você sair chorando” (1939). Se você cantar esse samba hoje, não tem nada demais, mas para a época foi um samba revolucionário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário