segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Histórias de avoinha: o sinal da cruz e o formigueiro

Ensaio 85B – 2ª edição 1ª reimpressão

o sinal da cruz e o formigueiro


baitasar


sempre que atravesso a calçada na direção da igreja, entro em um outro mundo. saio da mundanidade para entrar nos princípios do pecado e muita penitência, do riso as lágrimas. verdade seja dita, qualquer cruz fura de lado a lado a virilha metafórica da mulher cristã. a cruz e só a cruz pode nos penetrar sem gozar, como se estivesse comendo panquecas com ovo. ainda no colo do pai, aprendemos o desenho do sinal combinado que carregamos por toda a vida: pai e filho e espírito santo. amém

não acredito em bruxas porque precisaria crer em fadas e princesas, mas vá que elas existam. e se anjos assexuados existem, é possível – por que, não? – que bruxas desocupadas e taradas sustentem nossos medos. um mundo de pai e filho e meninas escondidas. as meninas aprendem que precisam treinar tudo que é ensinado: o silêncio e a submissão ao pai, depois ao esposo; mesmo antes de deixar o penico de barro ou limpar as sujeiras sozinhas, Cuidado com o bicho papão, ou, Nosso Senhor está vendo tudo.

as crianças negras têm muitos senhores desde pequenas

os meninos negros que sobrevivem às balas perdidas e as desconfianças da vigilância cívica da escola... jogam bola ou cantam ou tocam tambor, só assim ganham o privilégio de ficar com parecença de gente. as meninas negras que sobrevivem a violência da infância... crescem graças aos truques de parecerem duronas, empedernidas e barraqueiras. 
as senhoras pálidas de anágua engomada com olhar caridoso e muita prece nos lábios delicados juram que as meninas negras se acabam com parecença de bruxas, putas ou domésticas

avoinha lembrava-me, todos os dias, A neinha precisa vivê sem ajuda, é bão aprendê logo; mais num pode querê uma vida solitária, a vida é solidária. A cruiz pode sê uma boa lembrança, num deixa os exagero tomá conta dos pensamento, é bão acostumá com os desenho da cruiz antes de parí la Montaña. Repete:

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém, Num esquece qui u siná da cruiz é com a mão desse lado.

muitas vezes, só o desenho não resolve nada nem desempata para o meu lado, fica claro que preciso de mais atenção. então, rezo um pai nosso e uma ave maria. quando a coisa é mais braba só esse pouquinho de reza não basta. depois da cruz feita com a mão certa rezo três pai nosso e três ave maria. quase sempre dá certo. é bom sentir o desafogo e a soltura dos desacordos de julgamento com a lucidez dos meus orixás, Salve, Iansã.

e tem os cruzamentos das ruas. parece que não, mas se colocamos os olhos lá de cima para baixo, viu? é uma cruz. na dúvida ou na certeza, quando caminho pelas ruas da villa e chego no cruzeiro com despacho e oferenda, evito o centro da encruzilhada. peço licença, faço o sinal da cruz e me anuncio, Salve as bandas de lá! Salve as bandas de cá!

e não cruzo pelo cruzeiro, atravesso pelos lados, nunca pelo centro da cruz. não sei se é medo ou respeito. é um conhecimento vazio que não interessa, um vive amarrado no outro. a quantidade de respeito é igual a quantidade de medo, a metade de si mesmos. virou um hábito, talvez não queira me preocupar com mais desafios. não existe razão para tanto? certo, as bruxas e os anjos não existem? não preciso ter medo de perder a amorosidade dos espíritos antigos? em todo caso, faço e não desfaço de rezar e cuidar onde piso. sempre ajuda sentir as mãos de auxílio, Salve, minha Rainha!

compreendo que exista alguma razão junto das escolhas que fiz além da vontade que quis satisfazer. eu sei, quase sempre os motivos permanecem escondidos. carrego uma sepultura de causas, fundamentos, incentivos e intenções escondidas, E você?

além do medo, deve exixtir alguma razão para não querermos perder a amorosidade dos espíritos antigos. de qualquer maneira, quero continuar abençoada por eles. fiz e faço das rezas 
o meu caminho e não desfaço nenhum despacho. tenho muito cuidado com o chão onde piso. vou me repetir. gosto de me repetir, Sempre é bom, ajuda sentir que mãos de auxílio me cercam. Acho que sempre encontramos alguma razão para um ou todos os caprichos, mas não me deixo esquecer que fiz o que fiz porque quis.

ajudo muitas meninas. patrocino. favoreço. socorro raparigas perdidas. solitárias. vencidas. amarguradas. maltratadas. sonham de olhos abertos num sono que não acaba. gurias que são as tragédias que vivem. comédias. lamentações. casamentos. virgens doentes. mocinhas sem dinheiro ou tesouros. queimadas vivas. fogueiras vivas. bruxas não são deusas e são queimadas enquanto os deuses terrestres atacam em pleno dia a vida indefesa, a cada mordida eles retornam às sombras sem fazer barulho. os deuses marinhos são bons se estiverem calmos. os deuses subterrâneos reinam sobre os que têm medo. deuses podem ser heróis ou demônios, depende em que ponta da corda você está no enforcamento

algumas raparigotas moram na casa, outras chegam para atender os pedidos da freguesia. depois partem para suas outras vidas. fazem o que fazem porque ajudo, às vezes, me sinto cansada. a cisma comedida que sofrem é uma das mais injustas e perversas maneiras de julgamento ou percebimento de alguém. e pode chegar a situações intoleráveis. não são nada sem nunca ser anunciado que não são nada, a cisma dos piedosos não acha relevante avisá-las que o nada existe, para caridosos penitentes elas não existem nem nada

quando as meninas moram na casa ficam com sessenta por cento de tudo que arrecadam, mas o melhor arranjo é quando elas chegam apenas para o trabalho. deixam com a casa vinte por cento. é bom para a casa e também para as meninas, trabalhar sozinha nas ruas precisa sorte e ser maluca. não basta ter coragem e ser durona

aqui é o lugar onde as meninas compartilham ideias, experiências e ganham proteção. patife ou mal pagador vai precisar se entender com o calçacurta. esse nunca pediu dinheiro ou favor desmedido. a casa faz questão de oferecer atendimento de primeira classe para o seu protetor. temos identidade profissional fecunda entre o que dizemos e o que fazemos. não prometemos o que não podemos cumprir, mas nos damos o direito de variar os enfoques e os compromissos. queremos antecipar o porvir. nenhuma menina sai a campo sem uma entrevista minuciosa e privada. depois, tem uma outra conversa com as meninas. a casa pode parecer um consultório que escuta problemas, dúvidas e crises; outras, parece que a casa é uma escola – que acaba sendo mesmo – onde elas aprendem escolher, imaginar e obedecer, não necessariamente nessa ordem

a casa não tem e não quer ter ingerência na educação ou disposição afetiva e sexual das suas colaboradoras. reconhecemos nossos limites. não recebemos nenhum chamado divino nem reconhecemos nenhuma incumbência abafada de suspiros morais. apenas cumprimos a nossa existência e atendemos as demandas das meninas que nos procuram em casa. nossas escolhas não são arbitrárias nem são livres, somos um pouco os conflitos que sublimamos, reparamos ou desistimos de nós mesmas; o atrevimento, a hesitação e o ressentimento com as transformações dos encontros, desencontros e lutas. não conseguimos acordar todos os dias indiferentes a onipotência dos canalhas: gente castrada. é impossível fazer cara de paisagem aos interesses das senhoras burguesas hipnóticas com seu copo cheio e o cigarro na boca, elegantes, superiores e sem sentido na vida. o lenço borrado com o batom vermelho jogado na borda da piscina

na casa, as meninas aprendem que não são o que fazem, não são definidas pelo que têm ou não. descobrem que elas mesmas anunciam o que são, o que desejam ser. reconhecem e convencem de antemão a si mesmas: poderão dedicar-se as tarefas da casa? o que as faz diferentes das outras meninas nas mesmas tarefas? depreciam suas próprias possibilidades? gostam de ajudar? precisam controlar os afetos e o respeito pelas outras meninas

sou como as outras meninas nem mais nem menos corajosa. preciso ser como uma general, todas as meninas na casa poderiam ser um general, seriam mais elegantes e competentes nas estratégias que qualquer general durão: exigentes, intransigentes, disciplinadas, perfumadas e elegantes

entre as meninas sempre tem uma menina mais chamada que as outras. é assim, às vezes, o chamado chega pela competência, mas pode que venha a ser chamada pelo costume e as peculiaridades dos modos da menina. quando alguma delas não consegue esclarecer os mal-entendidos, a casa se manifesta; sendo ou não solicitada. não é uma ajuda mágica nem imediata, mas é preciso que o estabelecido fique compreendido, e às claras. a vida tem disso, os canalhas sempre querem nos convencer que não é nada demais um ou outro barbarismo. gostam de repetir que para ganhar bem é preciso aceitar fazer muito, topar tudo e ter méritos. pagam bem pelo mau gosto ou barbarismo

às vezes, não se faz nada. não tem o que fazer, apenas esperar e cavaquear. não resolve ficar incomodada, é preciso ter paciência. quase todas têm oportunidade de popularidade e cheiro de dinheiro. negociar bem e ser cuidadosa é o lema da casa: beleza e paciência, se dá certo beleza! se não dá, paciência

despesas pequenas com médico e remédios ficam na conta das meninas; a alimentação, também. a menina com abatimento de doença tem atendimento em posto público. procedimento que parece não ser melhor, mas é eficiente. a casa não tem queixa nem elementos para chorar, o que precisa ser feito é feito

quando o telefone toca ou algum mensageiro bate à porta, o trabalho se apresenta e a nossa vocação se ergue: a morte não pode nos levar, temos um chamado para responder. o trabalho em si não tem alma, as meninas lhe emprestam a alma. o que será do trabalho que não tem quem lhe empreste sonhos? quem lembrará de um trabalho sem esperanças? somos alertados sobre a morte e fechamos os olhos, adormecidos no sono para sempre. nada mais pode ser feito, nenhum trabalho vai salvar

aceitei e aceito muitos conselhos do calçacurta. o homem entende das suas tarefas, não reclama. teve vez que o calçacurta pediu atendimento especial, nunca foi para ele, sempre para os seus convidados, Preciso oferecer atendimento especial para uns gringos. Serviço completo. O recém-chegado é senador político dos estrangeiros. Um graúdo das políticas no mundo, foi um pedido que tratamos de responder sem fazer beicinho

duas meninas foram escolhidas. o gringo cheirava mal e bebia. outro mal-educado que veio de muito longe, não bastassem os que temos por aqui. gritava palavrões. maria neuza foi de muita classe. a ruivinha ficou muito assustada. gurias com firula não vingam na casa. fui junto. nada podia dar errado. tudo pelo calçacurta

eu sou milagres. dizem que não me pertenço, sou mais uma da longa linhagem de mulheres negras. mulheres milagres. mulheres de corpo presente e história ausente. mulheres sem anáguas de goma. mulheres que crescem feito árvores – coxas metade calor, metade dor. mulheres que teimam em repetir a vida

enfiei-me num bosque de pedras. lutava com meus pés esfolados, feridos naquele bosque sombrio enfiado terra adentro. não conseguia gritar. sempre o mesmo sonho. quero voltar para minha casa e o seu manjar florido. fico pensativa. dormindo os olhos. sempre o mesmo sonho que não conversa com meu sono. fico assustada. conheço cada pedra deste bosque de rochas estéreis. o silêncio do bosque não conversa com o silêncio das lápides. uma trilha de formiguinhas branquinhas percorrem as lápides e entram no barro dos ossos. comem o barro. cospem pedras. destroçam vermes. muitas formiguinhas, muitas lápides. muitos vermes comendo os túmulos de ossos de barro. muitas formiguinhas devorando os vermes. muitas formiguinhas, muitos vermes, muitos cadáveres. uma trilha de formiguinhas que não fogem espalhadas quando me aproximo. não acreditam que existo, é bom assim. não tenho portas para abrir. estão aturdidas com a abundância. não posso fugir ou serei uma mulher cadáver que não lutou. a minha encruzilhada. mortos só não são esquecidos pelos vermes. o que permanece vivo é a memória. das covas e suas lápides saem as formiguinhas carregando pedaços de vermes embarrados. esquartejados. pego uma branquinha nas mãos e arranco uma perninha. depois, outra perninha do mesmo lado. solto e pego outra formiguinha. coitadinha, arranco uma perninha. depois, outra perninha do outro lado. solto as perninhas e a formiguinha branquinha. estou em pé. observo a trilha. dobro meus joelhos e me aproximo. a indiferença se derrama sobre o destino. separo outra da trilha, não carrega nada nas costas. abre e fecha as pinças. as antenas se mexem nervosas. deixo as perninhas onde estão e desprendo da cabeça uma das anteninhas. solto a formiguinha. volto minha atenção à trilha. pego outra. não mexo nas anteninhas nem nas perninhas. desprego a bundinha. solto a formiguinha partida em duas metades. pego outra e esmago. as demais continuam seu caminho na trilha. a mesma trilha ferida vai e vem. não fogem. não acreditam que existo. levanto o pé. fecho os olhos e piso com vontade na trilha. achato muitas. ficam aturdidas. espero. paro um pouco com a tortura. a trilha volta. a liberdade de ir e vir. estou sorrindo. enquanto me arrasto procuro com minhas antenas outra inocente formiguinha branca. apanho outra ao acaso. o destino é traçado. ela se debate. tão inofensiva. estou chorando. solto a formiguinha. sem ferimentos, sem perdas. isso me faz bem, me faz sentir piedosa. a caridade é um horizonte com cães famintos e surdos sob um céu duro. a trilha não se move. paradas e aturdidas se juntam e rezam em meu nome. e no lugar em que se juntaram em meu nome erguem um imenso formigueiro. é tudo muito rápido. depois do formigueiro pronto, a trilha retorna ao seu vai e vem. fico em silêncio entre as pedras e o bosque de lápides enquanto me arrasto



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