quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

22.O Livro dos Abraços - A cultura do terror/3 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


22. O Livro dos Abraços



A cultura do terror/3    



Sobre uma menina exemplar: Uma menina brinca com duas bonecas e briga com elas para que fiquem quietas. Ela também parece uma boneca porque é linda e boazinha e porque não incomoda ninguém.

(Do livro Adelante, de J. H. Figueira, que foi livro escolar nas escolas do Uruguai até poucos anos atrás).




A cultura do terror/4


Foi num colégio de padres, em Sevilha. Um menino de nove ou dez anos estava confessando seus pecados pela primeira vez. O menino confessou que tinha roubado caramelos, ou que tinha mentido para a mãe, ou que tinha copiado do colega de classe, ou talvez tenha confessado que tinha se masturbado pensando na prima. Então, da escuridão do confessionário emergiu a mão do padre, que brandia uma cruz de bronze. O padre obrigou o menino a beijar Jesus crucificado, e enquanto batia com a cruz em sua boca, dizia:

Você o matou, você o matou... Júlio Vélez era aquele menino andaluz ajoelhado. Passaram-se muitos anos. Ele nunca pôde arrancar isso da memória.




A cultura do terror/5


Ramona Caraballo foi dada de presente assim que aprendeu a caminhar. Lá por 1950, sendo ainda menina, ela estava como escravazinha numa casa de Montevidéu. Fazia de tudo, a troco de nada. 

Um dia, a avó chegou para visitá-la. Ramona não a conhecia, ou não se lembrava dela. A avó chegou vinda do interior, do campo, muito apressada porque tinha que regressar em seguida. Entrou, deu uma tremenda surra na neta, e foi embora. 

Ramona ficou chorando e sangrando. A avó tinha dito, enquanto erguia o rebenque: — Você não está apanhando por causa do que fez. Está apanhando por causa do que vai fazer.




A cultura do terror/6


Pedro Algorta, advogado, mostrou-me o gordo expediente do assassinato de duas mulheres. O crime duplo tinha sido à faca, no final de 1982, num subúrbio de Montevidéu. 

A acusada, Alma Di Agosto, tinha confessado. Estava presa fazia mais de um ano; e parecia condenada a apodrecer no cárcere o resto da vida. 

Seguindo o costume, os policiais tinham violado e torturado a mulher. Depois de um mês de contínuas surras, tinham arrancado de Alma várias confissões. As confissões não eram muito parecidas entre si, como se ela tivesse cometido o mesmo assassinato de maneiras muito diferentes. Em cada confissão havia personagens diferentes, pitorescos fantasmas sem nome ou domicílio, porque a máquina de dar choques converte qualquer um em fecundo romancista; e em todos os casos a autora demonstrava ter a agilidade de uma atleta olímpica, os músculos de uma forçuda de parque de diversões e a destreza de uma matadora profissional. Mas o que mais surpreendia era a riqueza de detalhes: em cada confissão, a acusada descrevia com precisão milimétrica roupas, gestos, cenários, situações, objetos... 

Alma Di Agosto era cega. 

Seus vizinhos, que a conheciam e gostavam dela, estavam convencidos de que ela era culpada*. 

Por quê? — perguntou o advogado. 

Porque os jornais dizem

Mas os jornais mentem — disse o advogado. 

Mas o rádio também diz— explicaram os vizinhos —. E até a televisão!




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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Leia também:


21.O Livro dos Abraços - Os índios/3  - Eduardo Galeano




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