domingo, 1 de janeiro de 2017

Charles Dickens: Um Conto de Natal 06

Um Conto de Natal


Charles Dickens

06



SEGUNDA ESTROFE 
O primeiro dos três espíritos 


Esta injunção não se dirigia a Scrooge, nem a ninguém que ele pudesse ver, mas seu efeito foi imediato. O antigo Scrooge reapareceu, com alguns anos a mais, sob a forma de um homem em plena juventude. Seu rosto não tinha ainda os traços duros e rígidos da idade madura, mas já se podiam descobrir ali os sinais de uma natureza avarenta e inquieta. Havia em seu olhar qualquer coisa de impaciência, de inquietude, de avidez, de sofreguidão, que deixava entrever qual a paixão que se havia enraizado nele e de que lado, ao crescer, esta árvore projetaria a sombra. 

Scrooge não estava só. A seu lado, sentava-se uma jovem vestida de luto, cujos olhos cheios de lágrimas brilhavam à luz que espalhava o fantasma dos Natais passados. 

– A ti pouco importa, – dizia-lhe ela com doçura; outro ídolo tomou meu lugar. Mas, se ele puder dar-te, no futuro, a alegria e os carinhos que eu mesma teria tentado dar-te, não tenho justa razão para afligir-me. 

– Que ídolo tomou teu lugar? – perguntou ele. 

– O bezerro de ouro. 

– Aí está como é o mundo e sua justiça! – exclamou ele. 

– Não trata nada com tanta severidade como a pobreza, nem condena com mais dureza a loucura pelo dinheiro. 

– Dás muita importância à opinião do mundo, – respondeu a jovem calmamente. – Todos os teus outros desejos desapareceram diante do desejo de não incorrer no seu mesquinho vitupério. Vi caírem, uma por uma, as tuas mais nobres aspirações, até que te absorvesses completamente na tua paixão dominante – o amor pelo dinheiro. Não é verdade? 

– E depois? Quando mesmo eu me tornasse mais prudente com o decorrer dos anos, que poderia isso significar? Não teria eu ficado o mesmo aos teus olhos? 

Ela meneou a cabeça. 

– Tu me achas mudado? 

– Nosso noivado data de longos anos, de um tempo em que ambos éramos pobres mas vivíamos satisfeitos com o nosso destino, esperando melhorá-lo com o nosso trabalho perseverante. Desde então, mudaste muito e já não és o mesmo homem. 


– Eu era uma criança, – replicou ele com impaciência. 

– Tu mesmo te achas agora diferente do que eras. Quanto a mim, sou sempre a mesma; mas o que me prometia a felicidade, quando éramos dois corações em um só, não seria mais que uma fonte de perenes sofrimentos, agora que estão separados. Quantas vezes já fiz a mim mesma estas amargas reflexões, nem eu própria saberia dizê-lo. O que interessa, porém, é que eu as tenha feito e que te devolva a liberdade. 

– Acaso já procurei readquiri-la? 

– Com palavras, não, nunca. 

– Então, como? 

– Mudando de natureza, de humor e de caráter. Já não vês do mesmo modo tudo aquilo que, noutros tempos, tornava o meu amor precioso aos teus olhos. Se não existisse nenhum compromisso enter nós, – disse a jovem fazendo pesar sobre ele um olhar terno mas firme –, terias vindo procurar-me hoje? Certamente, não. 

Ele pareceu concordar, a contragosto, com a justeza desta hipótese. Entretanto, respondeu com esforço: 

– Não pensas o que dizes. 

– Eu gostaria de pensar de outro modo, se fosse possível. Chamo o céu por testemunha. Para ajustar-me a semelhante verdade, é mister que ela seja realmente de uma força irresistível. É essa a razão pela qual, com o coração despedaçado, devolvo a liberdade ao homem que foste outrora. Pode ser – e a lembrança do passado justifica em mim essa leve esperança – que experimentes alguma saudade; mas sei que logo, muito logo, repelirás essa lembrança como um sonho mau, do qual se acorda com alívio. Possas tu ser feliz na vida que escolheste! 

Aqui se separaram. 

– Espírito, – disse Scrooge, não me mostreis mais nada! Levai-me de novo para minha casa. Por que haveis de gozar com a minha tortura? 

– Uma sombra ainda! – exclamou o fantasma. 

– Não, não, nada mais! – gritou Scrooge. Não quero ver mais nada. Não me mostreis mais nada! 

O espírito, porém, inflexível, sujeitou-o e obrigou-o a olhar para o que ia acontecer.



****



A cena e a paisagem eram outras. Achavam-se numa sala nem demasiado vasta, nem muito luxuosa, mas confortável. Ao pé de um bom fogo, estava sentada uma jovem de excelsa beleza, tão semelhante à precedente, que Scrooge se teria enganado se não tivesse visto, do outro lado do fogo, esta última transformada em mãe de família, sentada em frente de sua filha. 


Fazia-se um grande barulho naquela sala, pois havia nela mais crianças do que Scrooge poderia enumerar, na agitação em que se encontrava, e era tal a algazarra, que cada criança valia por dez. 

Daquilo tudo, resultava um descomunal pandemônio, mas ninguém reclamava; ao contrário, mãe e filha riam e divertiam-se de coração. Mas logo esta última, resolvendo tomar parte no brinquedo, foi assaltada imediatamente pelas crianças. 

Que teria eu dado para ser um deles, muito embora, diga-se de passagem, jamais me atrevesse a portar-me com tamanha audácia. Não! Por nada deste mundo me abalançaria a desmanchar o seu penteado ou tocar nas suas tranças. Como poderia eu esconder seu delicado sapatinho, nem que fosse para salvar a minha vida? Mas, oh! quanto me fora doce – devo confessá-lo – poder aflorar-lhe os lábios; fazer-lhe perguntas só para vê-la entreabrir a mimosa boca; admirar, sem que ela corasse, os cílios de seus olhos baixos; acariciar as ondas dos seus cabelos, dos quais uma única madeixa teria sido para mim de valor inestimável! Confesso que me sentiria feliz, se pudesse gozar junto dela do mais pequeno privilégio de uma criança, mas sem deixar de ser um homem, para poder apreciar-lhe o valor. 

Mas eis que começam a bater. Verifica-se uma tal corrida para a porta, que a jovem, rindo-se e com a roupa em desordem, é arrastada pela onda ruidosa, no momento preciso de receber o papai, que chega em companhia de outro homem carregado de brinquedos e presentes de Natal. 

Imaginem, agora, os gritos, as lutas, os assaltos travados contra o pobre homem indefeso. Cada um procura alcançá-lo com auxílio de cadeiras, para remexer-lhe os bolsos e tomar-lhe os pacotes embrulhados em papel colorido. Este se lhe pendura ao pescoço, aquele o pega pela gravata, enquanto outros lhe aplicam afetuosas palmadas nas costas e nas pernas. 

Que exclamação de júbilo e de surpresa a cada pacote que se abria! Que emoção ao gritarem apavorados que o caçulinha foi encontrado a enfiar na boca uma frigideira de brinquedo, e que estão com medo de que tenha engolido um peruzinho em miniatura, colado no pratinho de madeira. E que alivio quando verificaram que tudo isso não passava de um boato! E como descrever a alegria, o êxtase e o reconhecimento de toda esta garotada? 

Finalmente, tendo chegado a hora de se recolherem, todas as crianças se retiraram, com os corações cheios de emoções barulhentas e subiram ao andar superior onde encontrariam o repouso nos seus leitos.

O interesse com que Scrooge contemplava esta cena aumentou quando o dono da casa, tendo a filha ternamente apoiada contra si, veio sentar-se entre ela e a esposa, diante da lareira. Então, Scrooge sentiu os olhos marejados de lágrimas, quando começou a pensar que uma jovem semelhante àquela, igualmente dotada de tais encantos e promessas, teria podido chamar-lhe pai e ter-lhe enchido de toda uma primavera o inverno bravio de sua existência. 


– Isabel, – disse o marido, voltando-se para sua mulher com um sorriso –, encontrei hoje à tarde um velho amigo teu. 

– Sim? E quem era? 

– Adivinha. 

– Como queres que eu adivinhe?... Ah, sim! – acrescentou em seguida, rindo-se com ele. É o senhor Scrooge. 

– Exatamente. Passei diante do seu escritório, e como estava iluminado e as janelas estavam abertas, resolvi fazer-lhe uma visita. Disseram-me que seu sócio está quase à morte. Assim pois, estava só, mesmo porque me parece que ele não tem mais ninguém no mundo. 

– Espírito! – disse Scrooge com voz trêmula, levai-me para longe daqui! 

– Eu te preveni de que eram as sombras das coisas passadas. Se elas são como estás vendo, não me cabe a culpa. 

– Levai-me! – exclamou Scrooge. Não posso mais suportar! 

Scrooge voltou-se para o espírito e, vendo que este o olhava com uma expressão – coisa estranha! – onde se encontravam todas as fisionomias das sombras evocadas, atirou-se sobre ele. 

Nesta luta, se se pode chamar luta a um assalto onde o espírito, sem resistência aparente, permanecia insensível aos esforços do seu adversário, Scrooge percebeu que a luz que fulgurava na cabeça do fantasma tornava-se cada vez mais clara e mais alta. 

Associando confusamente a ideia desta luz com a influência que o espírito exercia sobre ele, tomou o chapéu extintor com um imprevisto e rápido gesto e lhe enterrou na cabeça. O espírito desvaneceu-se imediatamente, ficando inteiramente coberto pelo extintor. 

Scrooge atirou-se com todo o seu peso sobre o extintor, mas todo o seu esforço foi inútil para aprisionar a luz que dele se escapava e que se derramava pelo chão. 

Scrooge sentiu que as forças o abandonavam, ao mesmo tempo que o tomava uma incoercível vontade de dormir. Entretanto, tinha consciência de que se achava novamente em seu quarto. Sua mão fez um último esforço para enterrar mais o chapéu, mas o pulso afrouxou, e mal teve tempo para ganhar o leito, cambaleando, antes de mergulhar num sono profundo.




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