terça-feira, 24 de janeiro de 2017

histórias de avoinha: o gosto do curação na boca

mulheres descalças


o gosto do curação na boca
Ensaio 96B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


tava atucanada com as palavra de defuntu da siá. num sentia pena. ela tumbém num sentia pena do corpo pretu escravizado. num ficava cismada de sabê nada das marca no espritu qui tá no corpo escravizado. podia experimentá os lamento do corpo da siá, mais ela num queria sabê do sabô qui tá sempre na boca da preta. nada importa pra siá, a dô e o gosto da dô só afeta a siá se é a dô qui ela sente, vive e sofre. o mundo precisa sê mundo pra ela vivê. precisa do mundo como ele é. num qué sabê de mais nada qui ela mesma. purisso num adianta dizê do gosto qui sobe do curação, ela num escuta e num faz vontade pra escutá

os pretu chora os desatino dos branco e precisa escorá u espritu nas reza, nas cantoria, nas história de avoinha, nos requebro-requebro e agitação do bailado: só assim us pretu num sucumbe a dô da carne atormentada, difamada e rasgada. num tem onde fazê queixume na villa, os pretu precisa da mata e dos espritu livre onde as mão vaidosa e malvada dos branco num entra. isso num pode sê pra toda vida, preciso fugí. deve tê um lugá bão e solto e vazio de dono esperando sê achado. chega de vivê sem gosto de vida

vô procurá ààbó, abrigo prus pretu

tem veiz qui é tanto gosto do sangue na boca qui a boca num dá conta de engolí, ela se derrama nas costa açoitada, nas mão rasgada, nos pé atravessado dos espinho. na estrada dos branco eles num qué vê além da mentira qui cada um inventa pra num vê tanto do sangue derramado. e pru qui tanto trabáio pra num vê? pra num precisá se perdoá

vai sê preciso muntu tempo e munta vontade pra oiá as corrente e o rabo de tatu sem vontade de usá nos pretu. num sei se vô tê vida pra vê a vida sem corrente, sem rabo de tatu, sem siá , sem siô, pra sempre ninguém mandá em ninguém, aiyé ore

vida e bondade pra tudo qui é vida, pra tudo qui cuida da vida

é só colocá o nariz na janela pra sentí o uso da pedra da infâmia e vê as mancha escura do sangue derramado nas rua. só pelo esquecimento malvado alguém pode querê prus pretu uma vida assim, só pelo esquecimento desalmado alguém pode esquecê a zoada do rabo de tatu esfarelando as costa dos pretu, só pelo esquecimento fingido alguém pode negá ajuda pra voz qui lamenta: aiaiai

os branco num é surdo, eles escuta música, recita os verso, discursa; eles num é cego, gosta das pintura, aprecia a beleza das rôpa, mais num sabe falá com as árvore nem com as mata: gosta de derrubá tudo e abrí roça. num reconhece os chá, só vê milho pela frente. num viu qui as água do sangue entrô no chão da terra e enraizô os baobá na villa pelo tempo qui durá a vida. num tem vento, num tem dilúvio, num tem catacumba qui arranca a boca do baobá do chão e as perna do céu

Agarra! Agarra o negro!

Onde?

Ali, correndo...

Ele está fugindo!

Coloca a mão no safado!

as rua ficô no maió alvoroço. a siá maria carolina voltô pra janela. eu e ela ficamô pendurada no resguardo qui apara os peito. a villa risonha do povoado de roça tava com os dente arreganhado. cada um com os motivo qui tinha, cada um com os esquecimento qui queria tê

num sabia dizê se aquele povoado era risonho ou búburú

senti vontade de colocá os calcanhá pra direção da cozinha, meu meió lugá de tá. lá é otro jeito: é o meu jeito e o da tiana. ficá na janela num tinha sentido. duas muié sem fortuna na janela

mais a resolvi ficá

escolhi vê pra num escutá mentira

a verdade dos branco é uma invenção qui ele qué qui os pretu escute, otro disfarce pra mandá: uma coisa boa eles faz parecê ruim, assim despista a verdade e faz otra verdade com a mentira, uma máscara pra ajudá o esquecimento

as rua tava nervosa, medrosa e curiosa, É nisso que dá deixar esses negros a Deus dará nas ruas, num oiêi nem de lado, tanta raiva tava subindo. a siá semeava com facilidade a verdade dela. o caminho da siá tinha munta máscara

passô do otro lado da rua, bem atrás da liberata e do tabulêro, indo na direção qui um quiotro apontava, um hôme qui só podia tê saído das imaginação da siá maria carolina. o perseguidô tinha a cabeça dum moringue, parecia a pintura da ruindade

nem precisava vê de perto pra sabê qui andava apressado com o sobrôio carregado e o rabo de tatu na mão. tumbém apressado, ia junto um pretu taludu, mais meia passada atrás; parecia sê a guarda do rabo de tatu. num dava pra sabê se eles queria removê u pretu da vida ou só dá punição e depois acorrentá, mais os passo dado era pra cercá inté u pretu cansá

o moringue, no dizê da siá maria carolina, já sofreu uma qui otra derrota desde qui corre atrás dus pretu qui foge. gosta do ataque da surpresa quando um pretu precisa pará pra respirá meió e lambê as ferida

o pulícia moringue gosta do estilo da emboscada. a siá fez pôco caso dele, mais essa preta num faz. oiando do aparapeito, ele pareceu sê muntu perigoso prus pretu. inda vai matá muntu pretu fazendo uso da emboscada

a vozearia se cruzava

parô tudo

só num parô meu curação, corria disparado junto du pretu. ninguém comprava nem vendia. uns hôme corria atrás du pretu, otros caminhava, e tinha os qui apostava contra ou a favô du pretu fujão

a favô du pretu pagava muntu: ninguém creditava qui ele fugia pra longe da villa. contra u pretu num pagava muntu, mais era retorno garantido. as aposta contra num era tudo a mesma. as contra u pretu qui pagava menó ganho pro apostadô era o moringue trazê u pretu amarrado pra sê humiado e castigado, essa aposta num tinha enguiço, purisso pagava pôco. tinha os qui apostava qui u pretu ia sê morto; otros apostava qui ia sê ferido e num ia pagá o castigo de costume no pelôinho

guerra, peste, escravidão, tudo matava sem a dona morte pedí, mais só tinha aposta e divertimento quando u pretu escapulia das corrente. o cemitério dus pretu foi ficando maió qui o lugá de guardá os defunto branco, Essa Villa não é o berço da vida, é o fim do mundo! Aqui, parece que as pessoas não sabem que existe o mundo que funciona, aqui nada funciona. Não conseguem prender nem um negrinho corredor. Até no porto, se é que se pode chamar assim, os vapores da Capital só nos chegam duas vezes por mês, e levantemos as mãos aos céus.

a villa num tava do seu jeito mais risonho, a siá num tava do seu jeito mais beato, tava com as presa se mostrando. as muié caminhava ligêro pro otro lado da correria, elas num piscava entre os passo miudinho qui dava; de rua em rua, virava pra trás, só pra garantí qui num tinha nehum pretu lhe seguindo

os lerdo e os sonolento tava do seu jeito mais risonho, é o jeito dos desinformado, os pescoço espichado sem sabê bem o qui tava se passando oiava na direção da correria, Esse lugar foi feito para sermos infelizes, a siá mirô no qui viu e acertô no qui num qué vê, nesse lugá é preciso tê chifre e presa aguçada pra vivê no rebanho qui se disfarça de gente beata

gente qui usá falá nas costa e usa as máscara das reza qui num leva à nada mais qui complicá esse deus dos branco escravista, qui ficô refém e cúmplice de tanta maldade, Peguem ele... peguem o negrinho, murmurava a siá. um pretu todo esfarrapado e machucado corria tropeçava e bum: batia as mão no chão – corria tropeçava e bum, procurava as água do rio

eu grudei as mão no aparapeito e murmurei as palavra dos chamamento da cavalaria qui lembrava. naquele nervosismo engolia munta das palavra qui pedia proteção, aya nini, proteção, àwé, amigo, ara ìlú, conterrâneo

os cão da rua, os cacete, as bengala, tudo no alcance do uso, os grito, os latido, a igreja, os badalo qui avisava da morte ou do nascimento ou dos perigo – pretu se chegá sê véio num vai vivê da saudade

num sei duma casa qui num tem escravo pra mostrá qui tem. ai du pretu qui num é amável e leal com os dono da corrente e do rabo de tatu, Nesse fim de mundo não se tem pressa nem para correr atrás dos negrinhos fujões, podia e devia tê escutado as resmungação e penitência da siá sem agitação na língua, mais num consegui escorá a boca fechada e junto perdi a cautela, desapeguei do silêncio

Num fala assim, siá. A Villa é a capital da província.

ela soltô um riso qui num tinha nadinha de alegre, só desespero na vida sem saída daquela vida minguada qui tinha: num fertilizava a terra e num explicava o qui ela mesmo era: uma muié infeliz e entrevada, incapaz de sê diferente; uma muié aparcêrada prum bem e muntu prum mal com o siô pedro francisco

uma muié com regalia, mais sem a lambiscaria do seu siô. essa parte da vida parece qui foi banida da sua cama. ela caminhava pra trás na direção da selvageria bondosa, carente duma razão pra existí – reprova lamenta acusa muntu pra se daná do pôco qui tem, o silêncio, Capital da província mais pobre e marginalizada, isso sim, longe da Côrte Imperial. Lugar de muito calor ou muito frio, ventanias ou mormaço, alagamentos ou poeira, lugar sem alegria, sem cantorias e sem marido... e sempre em guerra com os castelhanos.

Ora iêiêo Oxum

Rainha qui consola

Ora ieieô

qui pelos fio tumbém chora

voltei atenção pra fora da janela. as mãe num conseguia segurá os fio em casa, os piá queria tá na caçada. um chamava otro pra cercá acuá cuspí jogá terra nu pretu. o ódio ensina prus piquininino deixá devargazinho de gostá da vida pra gostá da morte. os maió ensiná os menó a ilusão qui matá vai fazê eles vivê meió. e os menó aprende num se importá com a vida qui num seja a vida pra vivê pra eles

Pegaram!

Onde?

Pegaram!

Onde?

No trapiche...

os grito da rua chacoaiava as parede do quarto

Cadê Xangô... cadê Xangô

o curação piquininino

Amassa teu pão

constroe tua morada
luta, mesmo qui fracassá

a vontade de chorá esfriava as mão

Pretu quando apanha
chora e canta
fazendo do chicote
sua reza
um toque
de libertação

e as água dos óio escorria na ponta dos dedo

Bate asas, manto negro
o mago é Exu Morcego

u pretu era arrastado chutado chicoteado cuspido. vinha enfiado com o pescoço e as mão na canga. sangrava. desabava. os joêio com pedaço pendurado

era muntu pôco pretu pra tanta gente

uma preta véia chegô perto e deu água. ele num tomô. o moringue chutô a preta e a água. otro pretu se chegô perto quando ele desabô otra veiz, e com as mão calejada secô o suó de sangue. o moringue num viu, gritava pra toda villa qui eles precisava passá; mais u pretu taludo viu, se num viu fez qui viu e se viu fez qui num viu

Olha, Milagres! Vão passar com o negrinho safado, bem aqui. Crucifica-o!

num pude mais oiá, voltei os passo pra sombra da janela. o curação piquininino. uma vontade de chorá qui esfriava as mão inté escorrê as água dos óio, a ponta dos dedo pingava o mesmo gosto da boca qui chegava do curação. os pé encrespado, fincado no chão das tábua

o moringue gritava

Não conheço nenhum negro santo! E negro fujão se precisar ataca as mulheres e depois mata!

a siá num oiô duas veiz pra dizê, É perigoso ficar na janela. Esse precisa ficar preso para sempre e trabalhar acorrentado. Nada de ficar deitado esperando o tempo passar.

a villa risonha continuava com as presa arreganhada

É preciso arrancar o mal pela cabeça!

Negro bom é negro morto!

Eu estou com medo, meringue! Segura bem esse negrinho!

era muntu pôco pretu pra tanto ódio. os grito na villa num parava. a siá debruçô no aparapeito depois qui o cortejo passô e gritô, Não precisa matar! Marca e devolve para o dono!

saiu da ponta dos pé, satisfeita com o bão consêio dado, colocô os calcanhá no chão das tábua resmungando, Afinal, o dono do negrinho não pode ficar com o prejuízo.

Mais u qui u pretu fez, siá?

Não sei... isso interessa?

queria fazê ela fechá a boca, tava no ponto de mandá ela calá a boca. oiava pra siá maria carolina, ela num se oiava, parecia otra muié: forte, ruidosa, berrante, afiada, corpulenta, agitada. mexia a garupa dum jeito qui parecia tá no mexe-remexe-mexe da cama com o siô pedro – qui as mania desse eu conheço –, provei o ciúme de pensá aquela branca com o meu hôme. provei o sabô – mesmo contragosto – de pensá o pedro mais hôme meu qui dessa siá

dei dois passo e empurrei ela do meu quarto, deu uma volta nela mesma enquanto tentava segurá na ventania pra num caí. oiô pra mim e puruguntô pru qui ela precisô morrê, se eu nunca ia sê uma baronesa, Você nunca vai ser eu, vai ser sempre uma negra descalça!

Ouviu, Milagres? Pegaram o negrinho fujão.

Num fala assim siá...

ela recuô da janela, lá fora as rua continuava nervosa, os grito os choro os aiaiai, as pessoa caminhava nos entido contrário do curação. a siá procurava serená o espritu. fechô a janela pra abafá os aiaiai

Vou para o meu quarto rezar.


________________

Leia também:

Historinhas de avoinha: cada pretu é um baobá
Ensaio 95B – 2ª edição 1ª reimpressão


histórias de avoinha: carolina augusta
Ensaio 97B – 2ª edição 1ª reimpressão


Nenhum comentário:

Postar um comentário