domingo, 22 de dezembro de 2019

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (03)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



NA CAVERNA DE PLATÃO


continuando...


As fotos podem incitar o desejo da maneira mais direta e utilitária — como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos anônimos do desejável com o fim de ajudar a masturbação. O assunto é mais complexo quando as fotos são usadas para estimular o impulso moral. O desejo não tem história — pelo menos ele é experimentado, em cada momento, como algo totalmente em primeiro plano, imediato. É suscitado por meio de arquétipos e é, nesse sentido, abstrato. Mas os sentimentos morais estão embutidos na história, cujos personagens são concretos, cujas situações são sempre específicas. Assim, regras quase opostas são válidas quando se trata do emprego das fotos para despertar o desejo e para despertar a consciência. As imagens que mobilizam a consciência estão sempre ligadas a determinada situação histórica. Quanto mais genéricas forem, menor a probabilidade de serem eficazes.

Uma foto que traz notícias de uma insuspeitada região de miséria não pode deixar marca na opinião pública, a menos que exista um contexto apropriado de sentimento e de atitude. As fotos tiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos campos de batalha não diminuíram em nada o entusiasmo das pessoas para levar adiante a Guerra Civil. As fotos de prisioneiros esqueléticos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opinião pública dos nortistas — contra o Sul. (O efeito das fotos de Andersonville talvez se deva, em parte, à própria novidade que era, na época, ver fotos.) A compreensão política a que muitos americanos haviam chegado na década de 1960 lhes permitiu, ao olhar para as fotos, tiradas por Dorothea Lange, de descendentes de japoneses sendo transportados para campos de prisioneiros na costa oeste dos Estados Unidos em 1942, reconhecer qual era de fato o tema das fotos — um crime cometido pelo governo contra um grupo numeroso de cidadãos americanos. Poucas pessoas que viram essas fotos na década de 1940 poderiam ter uma reação tão inequívoca; o espaço para tal julgamento estava ocupado pelo consenso a favor da guerra. Fotos não podem criar uma posição moral, mas podem reforçá-la — e podem ajudar a desenvolver uma posição moral ainda embrionária.

Fotos podem ser mais memoráveis do que imagens em movimento porque são uma nítida fatia do tempo, e não um fluxo. A televisão é um fluxo de imagens pouco selecionadas, em que cada imagem cancela a precedente. Cada foto é um momento privilegiado, convertido em um objeto diminuto que as pessoas podem guardar e olhar outras vezes. Fotos como a que esteve na primeira página de muitos jornais do mundo em 1972 — uma criança sul-vietnamita nua, que acabara de ser atingida por napalm americano, correndo por uma estrada na direção da câmera, de braços abertos, gritando de dor — provavelmente contribuíram mais para aumentar o repúdio público contra a guerra do que cem horas de barbaridades exibidas pela televisão.

Seria bom imaginar que o público americano não teria se mostrado tão unânime em seu apoio à Guerra da Coreia se tivesse deparado com provas fotográficas da devastação da Coreia, um ecocídio e um genocídio, em certos aspectos, ainda mais completo do que o infligido ao Vietnã uma década depois. Mas a suposição é irrelevante. O público não viu tais fotos porque não havia, ideologicamente, espaço para elas. Ninguém trouxe para sua terra natal fotos da vida cotidiana em Pionguiang, para mostrar que o inimigo tinha um rosto humano, a exemplo das fotos que Felix Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanói. Os americanos tiveram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bem diferentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus esforços para obter tais fotos, visto que o evento fora definido por um número significativo de pessoas como uma feroz guerra colonialista. A Guerra da Coreia foi entendida de outra forma — como parte da justa luta do Mundo Livre contra a União Soviética e a China —, e, admitida essa caracterização, as fotos da crueldade do ilimitado poder de fogo americano não seriam pertinentes.

Embora um evento tenha passado a significar, exatamente, algo digno de se fotografar, ainda é a ideologia (no sentido mais amplo) que determina o que constitui um evento. Não pode existir nenhuma prova, fotográfica ou de outro tipo, de um evento antes que o próprio evento tenha sido designado e caracterizado como tal. E jamais é a prova fotográfica que pode construir — mais exatamente, identificar — os eventos; a contribuição da fotografia sempre vem após a designação de um evento. O que determina a possibilidade de ser moralmente afetado por fotos é a existência de uma consciência política apropriada. Sem uma visão política, as fotos do matadouro da história serão, muito provavelmente, experimentadas apenas como irreais ou como um choque emocional desorientador.

A natureza do sentimento, até de ofensa moral, que as pessoas podem manifestar em reação a fotos dos oprimidos, dos explorados, dos famintos e dos massacrados depende também do grau de familiaridade que tenham com essas imagens. As fotos de Don McCullin dos biafrenses magérrimos no início da década de 1970 produziram menos impacto, para alguns, do que as fotos de Werner Bischof das vítimas indianas da fome no início da década de 1950, porque estas imagens tornaram-se banais, e as fotos das famílias de tuaregues que morriam de fome na África subsaariana, publicadas em revistas de todo o mundo em 1973, devem ter parecido, a muitos, uma reprise insuportável de uma exibição de atrocidades agora já familiar.

Fotos chocam na proporção em que mostram algo novo. Infelizmente, o custo disso não para de subir — em parte, por conta da mera proliferação dessas imagens de horror. O primeiro contato de uma pessoa com o inventário fotográfico do horror supremo é uma espécie de revelação, a revelação prototipicamente moderna: uma epifania negativa. Para mim, foram as fotos de Bergen-Belsen e de Dachau com que topei por acaso numa livraria de Santa Monica em julho de 1945. Nada que tinha visto — em fotos ou na vida real — me ferira de forma tão contundente, tão profunda, tão instantânea. De fato, parece-me plausível dividir minha vida em duas partes, antes de ver aquelas fotos (eu tinha doze anos) e depois, embora isso tenha ocorrido muitos anos antes de eu compreender plenamente do que elas tratavam. Que bem me fez ver essas fotos? Eram apenas fotos — de um evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu não podia interferir, fotos de um sofrimento que eu mal conseguia imaginar e que eu não podia aliviar de maneira alguma. Quando olhei para essas fotos, algo se partiu. Algum limite foi atingido, e não só o do horror; senti-me irremediavelmente aflita, ferida, mas uma parte de meus sentimentos começou a se retesar; algo morreu; algo ainda está chorando.

Sofrer é uma coisa; outra coisa é viver com imagens fotográficas do sofrimento, o que não reforça necessariamente a consciência e a capacidade de ser compassivo. Também pode corrompê-las. Depois de ver tais imagens, a pessoa tem aberto a sua frente o caminho para ver mais — e cada vez mais. As imagens paralisam. As imagens anestesiam. Um evento conhecido por meio de fotos certamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse visto as fotos — pensem na Guerra do Vietnã. (Para um contraexemplo, pensem no arquipélago de Gulag, do qual não temos nenhuma foto.) Mas, após uma repetida exposição a imagens, o evento também se torna menos real.

A mesma lei vigora para o mal e para a fotografia. O choque das atrocidades fotografadas se desgasta com a exposição repetida, assim como a surpresa e o desnorteamento sentidos na primeira vez em que se vê um filme pornográfico se desgastam depois que a pessoa vê mais alguns. O sentimento de tabu que nos deixa indignados e pesarosos não é muito mais vigoroso do que o sentimento de tabu que rege a definição do que é obsceno. E ambos têm sido experimentados de forma dolorosa em anos recentes. O vasto catálogo fotográfico da desgraça e da injustiça em todo o mundo deu a todos certa familiaridade com a atrocidade, levando o horrível a parecer mais comum — levando-o a parecer familiar, distante (“é só uma foto”), inevitável. Na época das primeiras fotos dos campos nazistas, nada havia de banal nessas imagens. Após trinta anos, talvez tenhamos chegado a um ponto de saturação. Nas últimas décadas, a fotografia “consciente” fez, no mínimo, tanto para amortecer a consciência quanto fez para despertá-la.

O conteúdo ético das fotos é frágil. Com a possível exceção das fotos daqueles horrores, como os campos nazistas, que adquiriram a condição de pontos de referência éticos, a maioria das fotos não conserva sua carga emocional. Uma foto de 1900 que, na época, produziu um grande efeito por causa de seu tema, hoje, provavelmente, nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900. Os atributos e os intuitos específicos das fotos tendem a ser engolidos pelo páthos generalizado do tempo pretérito. A distância estética parece inserir-se na própria experiência de olhar fotos, quando não de forma imediata, certamente com o correr do tempo. No fim, o tempo termina por situar a maioria das fotos, mesmo as mais amadoras, no nível da arte.


A industrialização da fotografia permitiu sua rápida absorção pelos meios racionais — ou seja, burocráticos — de gerir a sociedade. As fotos, não mais imagens de brinquedo, tornaram-se parte do mobiliário geral do ambiente — pedras de toque e confirmações da redutora abordagem da realidade que é tida por realista. As fotos foram arroladas a serviço de importantes instituições de controle, em especial a família e a polícia, como objetos simbólicos e como fontes de informação. Assim, na catalogação burocrática do mundo, muitos documentos importantes não são válidos a menos que tenham, colada a eles, uma foto comprobatória do rosto do cidadão.

A visão “realista” do mundo compatível com a burocracia redefine o conhecimento — como técnica e informação. As fotos são apreciadas porque dão informações. Dizem o que existe; fazem um inventário. Para os espiões, os meteorologistas, os médicos-legistas, os arqueólogos e outros profissionais da informação, seu valor é inestimável. Mas, nas situações em que a maioria das pessoas usa as fotos, seu valor como informação é da mesma ordem que o da ficção. A informação que as fotos podem dar começa a parecer muito importante naquele momento da história cultural em que todos se supõem com direito a algo chamado notícia. As fotos foram vistas como um modo de dar informações a pessoas que não têm facilidade para ler. O Daily News ainda se denomina “Jornal de Imagens de Nova York”, sua maneira de alcançar uma identidade populista. No extremo oposto do espectro, Le Monde, um jornal destinado a leitores preparados e bem informados, não publica foto nenhuma. A suposição é que, para tais leitores, uma foto poderia apenas ilustrar a análise contida em uma matéria.

Um novo significado da ideia de informação construiu-se em torno da imagem fotográfica. A foto é uma fina fatia de espaço bem como de tempo. Num mundo regido por imagens fotográficas, todas as margens (“enquadramento”) parecem arbitrárias. Tudo pode ser separado, pode ser desconexo, de qualquer coisa: basta enquadrar o tema de um modo diverso. (Inversamente, tudo pode ser adjacente a qualquer coisa.) A fotografia reforça uma visão nominalista da realidade social como constituída de unidades pequenas, em número aparentemente infinito — assim como o número de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa é ilimitado. Por meio de fotos, o mundo se torna uma série de partículas independentes, avulsas; e a história, passada e presente, se torna um conjunto de anedotas e de faits divers. A câmera torna a realidade atômica, manipulável e opaca. É uma visão do mundo que nega a inter-relação, a continuidade, mas confere a cada momento o caráter de mistério. Toda foto tem múltiplos significados; de fato, ver algo na forma de uma foto é enfrentar um objeto potencial de fascínio. A sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: “Aí está a superfície. Agora, imagine — ou, antes, sinta, intua — o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem este aspecto”. Fotos, que em si mesmas nada podem explicar, são convites inesgotáveis à dedução, à especulação e à fantasia.

A fotografia dá a entender que conhecemos o mundo se o aceitamos tal como a câmera o registra. Mas isso é o contrário de compreender, que parte de não aceitar o mundo tal como ele aparenta ser. Toda possibilidade de compreensão está enraizada na capacidade de dizer não. Estritamente falando, nunca se compreende nada a partir de uma foto. É claro, as fotos preenchem lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado: por exemplo, as imagens de Jacobs Riis da miséria de Nova York na década de 1880 são extremamente instrutivas para quem não sabe que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fim do século XIX era de fato dickensiana. Contudo, a representação da realidade pela câmera deve sempre ocultar mais do que revela. Como assinala Brecht, uma foto da fábrica Krupp não revela quase nada a respeito dessa organização. Em contraste com a relação amorosa, que se baseia na aparência, a compreensão se baseia no funcionamento. E o funcionamento se dá no tempo e deve ser explicado no tempo. Só o que narra pode levar-nos a compreender.

O limite do conhecimento fotográfico do mundo é que, conquanto possa incitar a consciência, jamais conseguirá ser um conhecimento ético ou político. O conhecimento adquirido por meio de fotos será sempre um tipo de sentimentalismo, seja ele cínico ou humanista. Há de ser um conhecimento barateado — uma aparência de conhecimento, uma aparência de sabedoria; assim como o ato de tirar fotos é uma aparência de apropriação, uma aparência de estupro. A própria mudez do que seria, hipoteticamente, compreensível nas fotos é o que constitui seu caráter atraente e provocador. A onipresença das fotos produz um efeito incalculável em nossa sensibilidade ética. Ao munir este mundo, já abarrotado, de uma duplicata do mundo feita de imagens, a fotografia nos faz sentir que o mundo é mais acessível do que é na realidade.

A necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos, hoje, estão viciados. As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens; é a mais irresistível forma de poluição mental. Um pungente anseio de beleza, de um propósito para sondar abaixo da superfície, de uma redenção e celebração do corpo do mundo — todos esses elementos do sentimento erótico são afirmados no prazer que temos com as fotos. Mas outros sentimentos, menos liberadores, também se expressam. Não seria errado falar de pessoas que têm uma compulsão de fotografar: transformar a experiência em si num modo de ver. Por fim, ter uma experiência se torna idêntico a tirar dela uma foto, e participar de um evento público tende, cada vez mais, a equivaler a olhar para ele, em forma fotografada. Mallarmé, o mais lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo no mundo existe para terminar num livro. Hoje, tudo existe para terminar numa foto.





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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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