domingo, 22 de dezembro de 2019

parábolas de uma professora: o medo no cardápio pedagógico

parábolas de uma professora


o medo no cardápio pedagógico
Ensaio 010A – 3ª.ed



baitasar e paulus e marko e kamilá




a cabayba sentou ao lado da ofélia, sem pressa, ninguém mais ocuparia o tal lugar, talvez, quem sabe, por descuido, mas por capricho não convém, as duas enfrentam as palavras do marko enfiadas no seu palco do silêncio cínico, duas personagens bem definidas, as cabeças dormindo sem pressa, parece tão normal as duas sentadas lado a lado

quais fantasmas as habitam? o desamor, talvez, a desesperança com certeza

por certo, não serão as mesmas caras e vozes que falam comigo quando estou sozinha, insegura, fantástica, fictícia ou debochada ou devassa ou

as cabeças fincadas no pescoço de suas colunas esticadas, queixo e nariz aprumados, óculos escondidos atrás dos binóculos escuros, cabelos avermelhados – escorridos e recortados curtos até resguardarem a nuca –, lábios tingidos e entreabertos, e lá está ele, o sorriso do aborrecimento, mãos sobre o colo reto e macio, dedos entrelaçados, unhas vermelhas, os gestos e as poses das mãos premeditadas e exibidas, uma completa o que a outra começa – ou ameaça, Senhoras com seus sapatos vermelhos e saia justa, comprimento até os joelhos redondos e carnudos, jamais cruzam as pernas, isso é o básico que aprendemos desde meninas –, e assim estavam sentadas, a ponta dos sapatos, os calcanhares e os joelhos bem coladinhos uns aos outros

o iogurte, o cabelo channel escorrido em camadas, os olhos e o sorriso escondidinhos, desenham sem cores o quotidiano frio e cruel que tentam com indiferença impor a todas nós

quero o meu cigarro

por que invejam e desprezam o marko, não sei, o chamam de dinossauro pedagógico socialista, como  se fosse uma aberração histórica do passado revolucionário distante e antigo, não se preocupam nem ao menos de esconder seu ódio e estupidez, repetem como bonecos de engonço a desinformação e as mentiras que leem ou escutam

Marko, se concordarmos contigo, precisamos aceitar que a realidade é maior que a escola...

Isso mesmo, Samuel. Perfeito.

nenhuma emoção na voz do marko, apenas a confirmação sem gestos ou retórica, nenhuma excitação no corpo, as duas irmãs siamesas permanecem em silêncio, como a dizer, tudo bem, mas faremos do nosso jeito, e lá está ele, o sorriso do desprezo

vivemos o tempo que, de modo geral, entendemos mais da mentira do que da verdade, a mentira é mais mentira do que antes, aprender a compreender sem distorcer com as máscaras do quotidiano é a urgência que o nosso tempo nos pede

Mas, Marko... então o que fazemos aqui se caminhamos a reboque do tempo e da história?

o samuel está em pé, as mãos não param porque temos palavras guardadas que precisam dos gestos e da retórica do corpo, elas entram e saem dos bolsos da calça jeans velha, surrada e cansada do entra e sai das salas de aula, a mesma calça em cinco dias, segunda à sexta, e no sábado, um breve descanso na máquina de lavar para o banho merecido e desejado com sabão em pó e amaciante, e depois de pendurada no varal ao sol retorna seca e pronta na segunda-feira

e junto, retornam os cabelos acinzentados e acidentados, longos e ondulados, a pele escanhoada e macia, o alvoroço no olhar, a agitação das mãos

desvio meus olhos do samuel e do marko até a cabayba e a ofélia, dois belos vasos siameses, e misturo-me ao grupo do silencioso silêncio que não se compromete – a menos que as alternativas tenham sumido e as mãos estejam no paredão –, nenhuma reação, um desperdício essa conversa toda para as baratas que rastejam para não serem incomodadas, não acredito que exista a paixão que ensina se não existe a paixão que aprende

quero mais um cigarro

A escola é a ponta do iceberg das massas submersas, Samuel. E o que podemos fazer? Acredito que todas as nossas histórias juntas poderiam recontar a história e resignificar a escola. Assim, acredito que é seguro dizer: fizemos a história contando as histórias.

ficamos em silêncio, existe um desafio nas suas palavras, renegar antigas opiniões e atender ao chamado das massas excluídas, mesmo sabendo que não será – como nunca foi e não será – uma tarefa fácil educar quem desconhece a si mesma

Precisamos escolher melhor as histórias para contar.

Isso mesmo, Camila! E também melhorar como contamos essas histórias. É preciso enfrentar as armadilhas das queixas com o gostar mais, confrontar a desesperança, o desengano, o desespero, a descrença com a virtude da possibilidade.

eu estou com alguém que admiro e que nos convoca para a ação com um pensamento poderoso: a importância reanimadora do coletivo solidário na escola

sem compreender isso – entender a dramaticidade do que acontece ante nossas vidas – continuaremos reproduzindo ruídos vazios de significados, inertes de sonhos, cumpridoras de tarefas sem graça e brilho, não somos alegres e sabidas todas as horas, mas podemos sonhar que poderemos ser

educar-se para permitir a significação do outro em si, só assim a escola será mais educação do que antes, sem essa mudança seremos abandonadas

esqueço meu juramento de silêncio pedagógico e liberto-me com as palavras, A escola somos todas nós, todos vocês, precisamos reconhecer no desejo de estar aqui que somos todas por uma e uma por todas ou continuaremos todas contra uma e cada uma contra todas!

sinto meu rosto em chamas, estou em chamas, fui sempre assim, o coração atropelando o peito, a boca nervosa e seca, É impossível nos salvarmos sozinhas...

parei, façam o que quiserem com as minhas palavras, só quis dizer que o inimigo a vencer é o nosso afeto sem solidariedade

Eu concordo com a Anita, mas quero acrescentar que precisamos colocar no coletivo dos desejos os alunos e alunas, pais e mães, os colegas da nutrição, da limpeza, da segurança. 

E como faríamos isso, Samuel?

em que medida somos preguiçosas para lutar em favor de todas nós? qual o tamanho da nossa indignação para lutarmos por todos os injustiçados? precisamos parar de dar mais valor as queixas das ociosas e desiludidas

Se concordamos que a escola somos todos nós e o desejo de estar aqui é condição primeira na instrução da nossa identidade, precisamos reconhecer o que é necessário ao educando – isso com certeza é parte importante da nossa formação –, mas precisamos aprender a perguntar o que eles querem aprender, o que os pais e as mães esperam do nosso trabalho, perguntar aos colegas como podemos ajudar.

apenas o ruído do ventilador pendurado no teto, até que o abrigo se voltou para a cabayba, Gente, isso não é sério, né? Vamos começar o ano letivo perguntando às crianças o que elas querem aprender? Por Deus, nosso Senhor! Isso tudo, é só provocação para animar essa conversa chata, né?

sentada, longe do chimarrão distante da porta, sem o meu cigarro, isso é muito chato, quero levantar e sair para fumar, mas continuo presa entre as massas silenciosas, lugar das conversas abafadas nas reuniões e dos fuxico nos corredores, Como estão os teus alunos, Micheli?

a micheli e a iara estão sentadas mais atrás, e pelo visto, iniciaram uma reunião espontânea paralela – temos muitas reuniões espontâneas dentro das reuniões pedagógicas, algumas de nós, sem perceber, agem ou reagem como seus alunos sem as regras e sem as proibições que separam as certas e as erradas –, isso se os resmungos incompreensíveis da micheli forem decifrados

preciso me comportar e não me revirar para confirmar que ela está fazendo o que acho que está fazendo: caretas, ela faz caretas e desprende resmungos ventosos quando não quer conversa, Tenho uns seis ou sete lendo, e foi só, não acredito que a iara vai se assustar com as caras feias e aquela estatística fria da michele, a forma gelada e controlada da sua mensagem: me deixem em paz no meu cantinho, Micheli, esse ano você ficou com o 2º ano, não é, Sim.

eu me sinto a vizinha honesta que vigia as duas, vivemos na escola firmemente amarradas umas às outras, luto contra meu desejo de interferir e pedir a micheli para permitir aos seus alunos aprenderem além do que ela se dispõe ensinar, estou exercitando minha nova vida de bem-comportada, Como eles estão com a letra emendada?

não resisto e me viro disfarçadamente, como o bode no meio da sala, e lá estão as caretas, o mesmo reumatismo para falar, Não muito bem, ainda não comecei com a letra cursiva, Por que? O ano já está terminando, Ah, Iara, e parou, se atolou-se nos resmungos, Não entendi, Micheli, A reunião, Iara... estamos atrapalhando, Bobagem, a reunião ainda não começou.

vamos, micheli... conte-nos alguma coisa, ânimo, Iara, os coitadinhos escrevem com a letra bastão e isso já é um grande feito, Mas as crianças gostam de escrever com a letra emendada, Você está louca, Iara! Onde você tirou isso? Só pode estar brincando.

quanto sofrimento inútil para fazer quase nada, uma gaiola para as palavras, Os meus escrevem, Os teus alunos até podem escrever, mas os meus não gostam e não sabem, Já tentou ensinar a letra cursiva, Não. Isso é perda de tempo, Por que, Porque a escrita no papel vai desaparecer, Meu Deus, Micheli, E eles não gostam, Como tu sabe que eles não gostam se nunca ensinou, Eles não gostam, E como tu sabe quando estão usando a maiúscula em começo de frase, Essa gurizada não escreve mais no papel. É só no watts, instagram, facebook, polegar polegar polegar, Mas é tão divertido e desafiador para os alunos. Pode acontecer de dois ou três terem mais dificuldades, com esses será preciso segurar na mão por mais tempo, ensinar o movimento com mais cuidado ainda, Mas eles mesmos preferem a letra bastão, Lógico, se ninguém oferece e desafia a criança por outro tipo de letra, realmente, elas irão se acomodar nessa de pauzinho, bastão, desenhada, que é mais prática, mas a medida que elas forem aprendendo vão perceber que com a emendada é até mais rápido de escrever. E outra coisa, como é que tu vai trabalhar a importância da letra maiúscula no começo das frases? E os nomes próprios? Como fazer o registro na escrita entre a pontuação e a letra maiúscula se tu não sabe na bastão quando elas estão usando a maiúscula, É tem isso. Não sei como se faz.

às vezes – não, acho que na maioria das vezes –, não reconhecemos uma boa amiga porque ela nos diz na hora o que não gostamos e não queremos escutar, parece que não tem outro jeito, só o meu jeito, Iara, vou te confessar uma coisa. Na verdade, eu não sei escrever a cursiva. Minha letra é horrível no quadro. A outra já não é boa, e a cursiva é horrorosa. Eu não sei ensinar a cursiva porque eu não sei nem pra mim, Olha, quando a gente fez o magistério, quando eu fiz o magistério, nós todas, a professora exigia de todas os exercícios de caligrafia com a letra bem desenhada, justamente pra quem fosse alfabetizar...

ouvir as conversas do baixo clero silencioso e piedoso, ajuda entender a disputa entre as ensinadoras – a maioria, mas cansadas e desistindo, algumas têm uma necessidade estúpida de exercer qualquer poder, na falta de outros lugares, tiranizam os alunos e alunas, e assim, colocam o medo no cardápio pedagógico – e as educadoras lutando por um coletivo que só existe no sonho, e mesmo assim, acreditando muito nisso, mesmo refazendo e replanejando o futuro desse outro mundo possível com os pés descalços e no chão, às vezes, com menos do sonho e mais do possível de ser feito, é um desafio para mim mesma, para todas nós






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Um comentário:

  1. e as educadoras lutando por um coletivo que só existe no sonho, e mesmo assim, acreditando muito nisso, mesmo refazendo e replanejando o futuro desse outro mundo possível com os pés descalços e no chão, às vezes, com menos do sonho e mais do possível de ser feito, é um desafio para mim mesma, para todas nós

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