Manoel Bomfim
O Brasil Nação volume 2
SEGUNDA PARTE
TRADIÇÕES
À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
capítulo 8
A Revolução Republicana
§ 71 – O positivismo na República
Não cabe aqui fazer a crítica do positivismo; atenhamo-nos ao que é verificação de resultados, esquematização dos princípios: o seu emudecimento pelo resto do mundo, a redução das suas pretensões no Brasil, aonde chegara a realizações políticas, dizem-nos bem que tal sistematização social não corresponde às necessidades de justiça como a humanidade o reclama. A troco da salutar indicação de método, e o homem deve inspirar-se na sua história, o positivismo só tirou na História fórmulas políticas de paupérrimo despotismo, formalmente em contrário aos lineamentos em que se tem feito a evolução humana.
Envaidecido pela ciência e o método de que se dizia possuído, Comte caiu nos mesmos erros dos sistematizadores teológicos, e, como eles, pretendeu ser o definitivo e último organizador do mundo social, marcando o termo a todas as aspirações da alma humana; fechou-a, sepultou-a no seu sistema, consagração de irreformável ditadura. Nas linhas do regime positivista, plenamente realizado, o sacerdócio, aquele inefável sacerdócio é o verdadeiro e último poder. Espiritual e temporal, distinguiu ele, este, ditatorial e perpétuo; o espiritual absolutamente livre e independente, única liberdade efetiva no sistema. Desta sorte, toda direção moral e social estaria com o decantado sacerdócio, de quem o temporal seria, apenas, o executor, na mesma condição de braço e cabeça. Aliás, nada disso é novidade: sacerdócio egípcio, ditadura na França...
Em tais fórmulas, peremptórias e intangíveis, o positivismo comunica aos seus adeptos um tom de soberana e absoluta suficiência. Comte marcou ao homem os seus absolutos destinos, criou um regime completo para as relações sociais e políticas; condensou em suas páginas a moral perfeita, o saber último, a visão suprema, eliminando toda a possibilidade de novas formas, em política e em direito... Com isto, os seus adeptos adquiriram o privilégio da infalibilidade: têm solução para tudo, resposta a todas as perguntas. Se há pedantismo qualificado é este, que suprimiu, ferrenhamente, a crítica em que se refez o pensamento humano, e fechou o progresso no horizonte de uma visão. A esse propósito é preciso ter sempre em vista que o positivismo é o mais vasto repositório de contradições nos sistemas modernos. Anuncia-se contra os privilégios – teológicos, metafísicos, acadêmicos e políticos, e consagra o mais monstruoso, como privilégio – um sacerdócio, diretor mental infalível, insubstituível, forma de tirania espiritual de que o mundo se libertara desde que o Egito de Serapis desapareceu nas faixas das suas múmias, teocracia aberrante de toda a elevação humana. Por outro lado, enobrece-se o positivismo com a divisa de progresso, quando, ao mesmo tempo, o suprime intransigentemente. Senão: que é o progresso? Um transformar incessante e indefinido, que só se define nos efeitos – o bem, a felicidade geral. Torna-se essencial, nesta concepção, que o progresso não pode ter limitação, nem orientação definitiva. Do momento em que tal estatuímos, marcamos termo à evolução humana, suprimimos o progresso. Ora, outra coisa não se encontra nas fórmulas positivistas de realização. Por isso, os chefes da respectiva propaganda, no Brasil, inspiram nestas palavras as suas epístolas: “Não posso reconhecer como meus verdadeiros discípulos senão aqueles que, renunciando a fundar por si uma síntese, consideram a que eu fundei como essencialmente suficiente e radicalmente preferível a qualquer outra. O dever deles é então propagá-la, sem pretenderem criticá-la ou mesmo aperfeiçoá--la”. Nunca, em linguagem humana, se notaram preceitos mais antagônicos com o progresso... nem aperfeiçoá-la!... Chega a ser monstruoso, sobretudo como incapacidade propagadora. E é esse um outro característico do positivismo – a insuficiência de recursos apostólicos, numa doutrina que se propõe a reformar a sociedade. Tanto acontece, porque ele ignora absolutamente a alma humana, ou não conta com ela... Em verdade, para o positivista, o resto da humanidade é inépcia, ou muro vazio, onde se prega o que se quer. Então, a toda crítica que os acabrunha, respondem com a pedantesca anarquia mental; e, para subordinar a espécie humana ao seu governo por meio do decantado – espiritual sacerdócio, o positivismo trata logo de suprimir todo o resto de espiritualidade e mentalismo que existe, pretendendo que toda a ciência se limite à filosofia onde Comte aprendeu. Neste intuito, pejora o sentido da expressão acadêmico, e, como denominação infamante, manda suprimir toda a ciência e todo o pensamento que não sejam o deles... Tanto vale dizer: suprimir toda verdadeira ciência, porque suprimindo isso a que eles chamam enfaticamente de privilégios acadêmicos e o ensino pelo Estado; fechados os recursos havidos desse mesmo academismo, seria impossível continuarem as pesquisas, e o ensino em que se atualiza a ciência.
Contrariando o método histórico de que se envaidece, o positivismo repele os lineamentos e os intuitos revelados pela experiência geral da espécie, e, de fato, só se volta para o passado a copiar dele modelos de intuições e processos esgotados e condenados. Num legítimo positivismo, a evolução do homem inspiraria uma política em que se consagrassem as verdades verificadas, e que assim se enunciam: através de todas as reformas, no apurar dos regimes, as sociedades têm buscado sempre mais justiça e mais liberdade, para uma solidariedade cada vez mais cordial e mais eficaz. Em vez disto, Comte tirou da história o teocracismo e a hierarquia católica, a disciplina cega e a subordinação dos jesuítas... Com isto, na rigidez do seu geometrismo, pretendeu ele curar os males em que se contorcem as sociedades modernas, onde o trabalho é inexoravelmente espoliado e tiranizado pelo privilégio prático do capitalismo, que ele conserva sob os sofismas que lhe são próprios. Mais enleado em fórmulas vãs do que o bacharelismo, Comte arma uma frase – a incorporação do proletariado na sociedade moderna, e com isto diz ter dado a solução do cruciante problema, esse mesmo que, através de uma discussão dialética de quase um século, e várias revoluções, apenas se tem delineado. Não há dúvida de que o Positivismo se arma de verdades profundamente humanas: “O egoísmo é o entrave à felicidade. Só o sentimento nos conduz. O homem só se redimirá pela cultura do coração. Devemos proceder de modo a nada ter o que esconder... O amor por princípio...” Amai-vos uns aos outros... nesta fórmula, o cristianismo primeiro reformou o mundo, encaminhando-o para a bondade e a tolerância. Veio a reação, e o egoísmo, no ânimo dos poderosos, refez o reino da maldade e da dor; agora, serão precisos, além da simples solidariedade cristã, os outros recursos e processo contra o império de injustiça em que, pelo egoísmo, se tem depravado a civilização. Repetindo, no seu rebarbativo jargon, tais verdades já perenes na consciência dos bons, o positivismo apenas lhes diminuiu o prestígio.
E foi uma tal doutrina, ajustada à insuficiência tradicional dos nossos dirigentes, que veio ser o mais elevado ideal de nossa revolução republicana. Em verdade, todo esse positivismo foram exterioridades, banais, cataplasma logo resfriada, sem influência efetiva. Deixem-no lá, ou que o retirem: que valeu o letreiro da nova bandeira, o dia santo da Bastilha, e a incongruente liberdade de profissões?... Destinadas, embora, à efêmera ressonância do momento, essas pretensões abafaram e iludiram o renascer do Brasil para a democracia; foram motivos de estéreis discussões, no momento de assentar-se a organização institucional da República, como foram, sempre, pretextos de irritantes dissídios. Neste caso: do influxo positivista sobre a República, é preciso distinguir-se – a ortodoxia e os simplesmente simpáticos. São eles mesmos, os ortodoxos, que timbram em distinguir-se. Quem quiser edificar--se, em inanidade de ideias, e incoerência de conclusões, leia a Circular Anual do Apostolado, para o ano de 1889, sobretudo quando, na página 13, se afirma que “Benjamin Constant não estava preparado para o papel político que teve na Revolução de 15 de Novembro...” e, na página 29, se consigna que – “Benjamin Constant desempenhou função essencial”. Nessas mesmas páginas, confessa o Positivismo nacional que só veio para a República dois dias depois da revolução... repugnavam-lhe as tendências revolucionárias... mas, como a coisa estava feita, “dada a iminência da colisão que nada poderia ter evitado, honremos o cidadão...” E ufana-se de ter: “durante dez anos feito esforços incessantes para transformar o imperador teológico-metafísico em ditador republicano. O monarca, porém, foi surdo a esses reclamos”. Pelo que, feita a República, desandou-lhe o Positivismo o xingamento das suas iras: “... ele não possuía nenhuma das qualidades exigidas pela suprema função, ele que nunca fora senão um pedante coroado...” Mas Pedro II possuía, pelo menos, a qualidade de sensatez necessária para não aceitar o presente, feito em nome de uma doutrina cuja menor pretensão é a de que o 15 de Novembro foi a primeira revolução pacífica, e o foi devido à ascendência do positivismo. Destarte, em nome de tal critério doutrinário, o mesmo positivismo nos levou a essa desarmada separação da Igreja do Estado, inteiramente anulado em face dos proselitismos confessionais, assim como desinteressou o Estado pela instrução geral dos brasileiros, chegando a ser dogma seu que a instrução elementar obrigatória atenta contra os direitos do cidadão. Tanto vale dizer: atenta contra os direitos que têm os pais de condenar os filhos à inferioridade patente do analfabetismo...
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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
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