Livro I
A verdade, a áspera verdade.
Danton
Capítulo XXIX
A PRIMEIRA PROMOÇÃO
Ele conheceu seu século, conheceu sua região e é rico.
LE PRÉCURSEUR
LE PRÉCURSEUR
JULIEN NÃO VOLTARA ainda do devaneio profundo em que o havia mergulhado o acontecimento da catedral, quando, certa manhã, o severo abade Pirard mandou chamá-lo.
– O padre Chas-Bernard escreveu-me em seu favor. Estou bastante contente com o conjunto de sua conduta. Você é extremamente imprudente e mesmo estouvado, sem que o pareça; no entanto, até agora o coração é bom e mesmo generoso; o espírito é superior. De uma maneira geral, vejo em você uma centelha que não deve ser negligenciada.
Depois de quinze anos de trabalhos, prosseguiu, estou para sair desta casa: meu crime foi ter deixado aos seminaristas seu livre-arbítrio, e não ter protegido nem barrado essa sociedade secreta da qual me falou no tribunal da penitência. Antes de partir, quero fazer alguma coisa por você; eu teria agido dois meses antes, pois você o merece, sem a denúncia baseada no endereço de Amanda Binet, encontrada em seus pertences. Nomeio-o professor auxiliar do Novo e do Antigo Testamento.
Julien, transportado de reconhecimento, teve a ideia de lançar-se de joelhos e de agradecer a Deus; mas cedeu a um movimento mais verdadeiro. Aproximou-se do abade Pirard e tomou-lhe a mão, levando-a aos lábios.
– O que é isso?, exclamou o diretor, irritado; mas os olhos de Julien diziam ainda mais que sua ação.
O abade Pirard olhou-o com espanto, como um homem que, depois de longos anos, perdeu o hábito de deparar com emoções delicadas. Essa atenção traiu o diretor; sua voz alterou-se.
– Está bem! Sim, meu filho, tenho afeição por ti! O céu sabe que isso é contra minha vontade. Eu deveria ser justo e não ter ódio nem amor por ninguém. Tua carreira será difícil. Vejo em ti algo que ofende o vulgo. O ciú me e a calúnia te perseguirão. Onde quer que a Providência te coloque, teus colegas jamais te verão sem te odiar; e, se fingem te amar, será para te trair com mais segurança. Para isso há só um remédio: recorrer a Deus, que te deu, para punir tua presunção, essa necessidade de ser odiado; que tua conduta seja pura; é o único recurso que possuis. Se te apegares à verdade com uma força invencível, cedo ou tarde teus inimigos serão confundidos.
Há tanto tempo Julien não ouvia uma voz amiga que devemos perdoar-lhe uma fraqueza; ele desatou a chorar. O abade Pirard abriu-lhe os braços; foi um momento muito doce para os dois.
Julien não cabia em si de alegria; essa promoção era a primeira que obtinha; as vantagens eram imensas. Para avaliá-las, é preciso ter sido condenado a passar meses inteiros sem um instante de solidão, e no contato imediato com colegas pelo menos importunos, em sua maioria intoleráveis. Os simples gritos deles teriam bastado para pôr em desordem um organismo delicado. A alegria ruidosa desses camponeses bem alimentados e bem-vestidos não sabia contentar-se consigo mesma, só se acreditava inteira quando eles a gritavam a plenos pulmões.
Agora Julien fazia suas refeições a sós, ou quase a sós, uma hora mais tarde que os outros seminaristas. Tinha uma chave do jardim e lá podia passear nas horas em que este ficava deserto.
Para o seu grande espanto, Julien notou que o odiavam menos, quando ele esperava, ao contrário, um ódio redobrado. O desejo secreto de que não lhe dirigissem a palavra, que era tão evidente e lhe valera tantos inimigos, deixou de ser um traço de arrogância ridícula. Aos olhos dos indivíduos grosseiros que o cercavam, isso tornou-se um sentimento justo de sua dignidade. O ódio diminuiu sensivelmente, sobretudo entre os mais jovens dos colegas que se tornaram seus alunos, e que ele tratava com muita polidez. Aos poucos, ele ganhou até defensores; passou a ser de mau gosto chamá-lo Martim Lutero.
Mas para quê nomear seus amigos, seus inimigos? Tudo isso é feio, e tanto mais feio quanto o desenho é verdadeiro. No entanto, são esses os únicos professores de moral que o povo tem; e, sem eles, que seria do povo? Poderá o jornal algum dia substituir o padre?
Desde a nova dignidade de Julien, o diretor do seminário preferiu jamais falar com ele sem testemunhas. Havia nessa conduta prudência, tanto para o mestre quanto para o discípulo; mas havia sobretudo teste. O princípio invariável do severo jansenista Pirard era: Um homem possui mérito a vossos olhos? Colocai obstáculo a tudo o que ele deseja, a tudo o que empreende. Se o mérito é real, ele saberá derrubar ou contornar os obstáculos.
Era o tempo de caça. Fouqué teve a ideia de enviar ao seminário um cervo e um javali, em nome dos pais de Julien. Os animais mortos foram depositados no corredor, entre a cozinha e o refeitório. Foi ali que todos os seminaristas os viram, na hora do almoço. Aquilo foi um grande objeto de curiosidade. Mesmo morto, o javali atemorizava os mais jovens, que tocavam suas defesas. Não se falou de outra coisa durante oito dias.
Esse presente, que classificava a família de Julien na parte da sociedade que se deve respeitar, desferiu um golpe mortal contra a inveja. Ele significou uma superioridade consagrada pela fortuna. Chazel e os mais distintos dos seminaristas deram-lhe atenções e quase queixaram-se a ele por não tê-los informado da fortuna de seus pais, expondo-os assim a uma falta de respeito para com o dinheiro.
Houve um recrutamento militar, do qual Julien foi isento em sua qualidade de seminarista. Essa circunstância abalou-o profundamente. Eis passado para sempre o instante em que uma vida heroica, aos vinte anos, teria começado para mim!
Ele passeava sozinho no jardim do seminário. Ouviu uma conversa entre dois pedreiros que trabalhavam no muro de vedação.
– Pois então devemos partir, vem aí um novo recrutamento.
– No tempo do outro, aí sim! Um pedreiro podia ser oficial, podia ser general, isso aconteceu.
– Vai ver agora! Só os indigentes é que partem. Quem tem alguma coisa não se arrisca.
– Quem nasceu miserável, continua miserável, é isso aí.
– Ei, é verdade o que dizem, que o outro morreu?, perguntou um terceiro pedreiro.
– São os graúdos que dizem isso, entende? O outro lhes metia medo.
– Que diferença, como as coisas iam bem no tempo dele! E dizer que foi traído por seus marechais! É preciso ser muito traidor!
Essa conversa consolou um pouco Julien. Afastando-se, ele repetia, com um suspiro: O único rei cuja memória o povo conservou!
A época dos exames chegou. Julien respondeu de forma brilhante; viu que o próprio Chazel procurava mostrar todo o seu saber.
No primeiro dia, os examinadores nomeados pelo famoso vigário-geral de Frilair ficaram muito contrariados de colocar sempre em primeiro, ou quando muito em segundo, na lista, o nome desse Julien Sorel, que lhes era apontado como o benjamim do abade Pirard. Houve apostas, no seminário, de que na lista do exame geral Julien teria o primeiro lugar, o que significava a honra de almoçar na casa do bispo. Mas no final de uma sessão, em que se tratara dos Padres da Igreja, um examinador habilidoso, após ter interrogado Julien sobre São Jerônimo e sua paixão por Cícero, passou a falar de Horácio, de Virgílio e outros autores profanos. Sem que os colegas soubessem, Julien aprendera de cor um grande número de passagens desses autores. Arrebatado por seus sucessos, ele esqueceu o lugar onde estava e, a um pedido reiterado do examinador, recitou e parafraseou com ardor várias odes de Horácio. Após deixá-lo comprometer-se durante vinte minutos, o examinador mudou subitamente de expressão e censurou-lhe com acidez o tempo que perdera nesses estudos profanos, e as ideias inúteis ou criminosas que pusera na cabeça.
– Sou um tolo, e o senhor tem razão, disse Julien com um ar modesto, reconhecendo o hábil estratagema de que fora vítima.
Essa esperteza de examinador foi considerada suja, mesmo no seminário, o que não impediu que o abade de Frilair, homem habilidoso que organizara de forma competente a rede da Congregação de Besançon, e cujos despachos a Paris faziam tremer juízes, governador e até os generais da guarnição, pusesse com sua mão poderosa o número 198 ao lado do nome de Julien. Com isso, tinha a alegria de mortificar seu inimigo, o jansenista Pirard.
Há dez anos, sua grande questão era retirar-lhe a direção do seminário. Pirard, adotando para si mesmo o plano de conduta que indicara a Julien, era sincero, piedoso, sem intrigas, apegado a seus deveres. Mas o céu, em sua cólera, dera-lhe um temperamento bilioso, feito para sentir profundamente as injúrias e o ódio. Nenhum dos ultrajes que lhe faziam ficava perdido para essa alma ardente. Teria pedido cem vezes sua demissão, mas acreditava-se útil no posto onde a Providência o colocara. Assim impeço os progressos do jesuitismo e da idolatria, dizia a si mesmo.
Na época dos exames, havia aproximadamente dois meses que ele não falava com Julien; no entanto, ficou doente durante oito dias quando, ao receber a carta oficial anunciando o resultado do concurso, viu o número 198 colocado junto ao nome desse aluno que ele via como a glória de sua casa. O único consolo para esse caráter severo foi concentrar sobre Julien todos os seus meios de vigilância. Com encanto, nele não descobriu nem cólera, nem projeto de vingança, nem desânimo.
Algumas semanas depois, Julien estremeceu ao receber uma carta; ela trazia o selo de Paris. Enfim, pensou, a sra. de Rênal lembrou-se de suas promessas. Um senhor que se assinava Paul Sorel, e dizia-se seu parente, enviava-lhe uma letra de câmbio de 500 francos. Acrescentava que, se Julien continuasse a estudar com sucesso os bons autores latinos, uma quantia semelhante lhe seria enviada todo ano.
É ela, é sua bondade!, pensou Julien, enternecido; ela quer me consolar; mas por que nenhuma palavra de amizade?
Ele enganava-se sobre a carta. A sra. de Rênal, orien tada por sua amiga, a sra. Derville, estava completamente entregue a seus remorsos profundos. Contra sua vontade, ela pensava com frequência no ser singular cujo encontro perturbara sua existência, mas procurou não lhe escrever.
Se falássemos a linguagem do seminário, poderíamos reconhecer um milagre nessa remessa de 500 francos, e dizer que era do próprio sr. de Frilair que o céu se servia para dar esse presente a Julien.
Doze anos antes, o abade de Frilair chegara a Besançon com uma sacola das mais exíguas, a qual, segundo a crônica, continha toda a sua fortuna. Agora, era um dos homens mais ricos da região. No curso de sua prosperidade, adquirira metade de um terreno, cuja outra metade coube por herança ao sr. de La Mole. Daí um grande processo entre essas figuras.
Apesar de sua brilhante existência em Paris, e dos empregos que tinha na corte, o marquês de la Mole viu que era perigoso lutar em Besançon contra um grande vigário de quem diziam fazer e desfazer governadores. Em vez de solicitar uma gratificação de 50 mil francos, dissimulada sob um nome qualquer aceito pelo orçamento, e de abandonar ao abade de Frilair esse mesquinho processo de 50 mil francos, o marquês irritou-se. Acreditava ter razão: bela razão!
Ora, se é permitido dizer: que juiz não tem um filho ou pelo menos um primo a promover na sociedade?
Para esclarecer os mais cegos, oito dias depois da primeira sentença que obteve, o abade de Frilair tomou a carruagem do bispo e foi pessoalmente levar a cruz da Legião de Honra a seu advogado. O sr. de La Mole, um pouco atordoado com a atitude da parte adversária, e vendo seus advogados fraquejarem, pediu conselhos ao abade Chélan, que o pôs em contato com o sr. Pirard.
Essas relações já duravam vários anos na época de nossa história. O abade Pirard pôs seu caráter apaixonado nesse caso. Avistando-se seguidamente com os advogados do marquês, examinou sua causa e, considerando-a justa, tornou-se abertamente o defensor do marquês de La Mole contra o todo-poderoso vigário-geral. Este ficou furioso com a insolência, ainda mais da parte de um jansenista!
Vejam o que é essa nobreza de corte que se julga tão poderosa! dizia a seus íntimos o abade de Frilair. O sr. de La Mole não só enviou uma medalha miserável a seu agente em Besançon, como irá fazê-lo ser sumariamente destituído. No entanto, pelo que me escrevem, esse nobre não deixa passar uma semana sem exibir sua fita azul no salão do ministro da Justiça, seja ele quem for.
Apesar da atividade do abade Pirard, e embora o sr. de La Mole mantivesse sempre boas relações com o ministro e sobretudo com seus gabinetes, o máximo que obteve, após seis anos de esforços, fora não perder definitivamente seu processo.
Correspondendo-se o tempo todo com o abade Pirard, sobre um caso que ambos seguiam com paixão, o marquês acabou por apreciar o tipo de espírito do abade. Aos poucos, não obstante a imensa distância das posições sociais, a correspondência deles adquiriu o tom da amizade. O abade Pirard dizia ao marquês que queriam obrigá-lo, à força de vexames, a pedir sua demissão. Furioso com o estratagema infame, segundo ele, empregado contra Julien, contou sua história ao marquês.
Embora muito rico, este nobre não era avarento. Em momento nenhum ele pudera fazer que o abade Pirard aceitasse nem sequer o reembolso dos gastos de correio ocasionados pelo processo. Teve então a ideia de enviar quinhentos francos a seu aluno favorito.
O sr. de La Mole deu-se o trabalho de escrever ele próprio a carta de remessa. Isso o fez pensar no abade.
Um dia, este recebeu um bilhete que o convidava a comparecer, sem demora, num albergue dos arredores de Besançon. Lá ele encontrou o intendente do sr. de La Mole.
– O sr. marquês encarregou-me de trazer-lhe sua caleche, disse esse homem. Ele espera que, após ter lido esta carta, o senhor concordará em partir para Paris, dentro de quatro ou cinco dias. Vou empregar o tempo que o senhor me indicar percorrendo as terras do sr. marquês, no Franco-Condado. Depois disso, no dia marcado, partiremos para Paris.
continua...
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Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Diálogo com um Mestre (XXI - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Diálogo com um Mestre (XXI - 2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Capital (XXIV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Seminário (XXV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Mundo, Ou o Que Falta ao Rico (XXVI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Primeira Experiência da Vida (XXVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Procissão (XXVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Primeira Promoção (XXIX - 2)
– O padre Chas-Bernard escreveu-me em seu favor. Estou bastante contente com o conjunto de sua conduta. Você é extremamente imprudente e mesmo estouvado, sem que o pareça; no entanto, até agora o coração é bom e mesmo generoso; o espírito é superior. De uma maneira geral, vejo em você uma centelha que não deve ser negligenciada.
Depois de quinze anos de trabalhos, prosseguiu, estou para sair desta casa: meu crime foi ter deixado aos seminaristas seu livre-arbítrio, e não ter protegido nem barrado essa sociedade secreta da qual me falou no tribunal da penitência. Antes de partir, quero fazer alguma coisa por você; eu teria agido dois meses antes, pois você o merece, sem a denúncia baseada no endereço de Amanda Binet, encontrada em seus pertences. Nomeio-o professor auxiliar do Novo e do Antigo Testamento.
Julien, transportado de reconhecimento, teve a ideia de lançar-se de joelhos e de agradecer a Deus; mas cedeu a um movimento mais verdadeiro. Aproximou-se do abade Pirard e tomou-lhe a mão, levando-a aos lábios.
– O que é isso?, exclamou o diretor, irritado; mas os olhos de Julien diziam ainda mais que sua ação.
O abade Pirard olhou-o com espanto, como um homem que, depois de longos anos, perdeu o hábito de deparar com emoções delicadas. Essa atenção traiu o diretor; sua voz alterou-se.
– Está bem! Sim, meu filho, tenho afeição por ti! O céu sabe que isso é contra minha vontade. Eu deveria ser justo e não ter ódio nem amor por ninguém. Tua carreira será difícil. Vejo em ti algo que ofende o vulgo. O ciú me e a calúnia te perseguirão. Onde quer que a Providência te coloque, teus colegas jamais te verão sem te odiar; e, se fingem te amar, será para te trair com mais segurança. Para isso há só um remédio: recorrer a Deus, que te deu, para punir tua presunção, essa necessidade de ser odiado; que tua conduta seja pura; é o único recurso que possuis. Se te apegares à verdade com uma força invencível, cedo ou tarde teus inimigos serão confundidos.
Há tanto tempo Julien não ouvia uma voz amiga que devemos perdoar-lhe uma fraqueza; ele desatou a chorar. O abade Pirard abriu-lhe os braços; foi um momento muito doce para os dois.
Julien não cabia em si de alegria; essa promoção era a primeira que obtinha; as vantagens eram imensas. Para avaliá-las, é preciso ter sido condenado a passar meses inteiros sem um instante de solidão, e no contato imediato com colegas pelo menos importunos, em sua maioria intoleráveis. Os simples gritos deles teriam bastado para pôr em desordem um organismo delicado. A alegria ruidosa desses camponeses bem alimentados e bem-vestidos não sabia contentar-se consigo mesma, só se acreditava inteira quando eles a gritavam a plenos pulmões.
Agora Julien fazia suas refeições a sós, ou quase a sós, uma hora mais tarde que os outros seminaristas. Tinha uma chave do jardim e lá podia passear nas horas em que este ficava deserto.
Para o seu grande espanto, Julien notou que o odiavam menos, quando ele esperava, ao contrário, um ódio redobrado. O desejo secreto de que não lhe dirigissem a palavra, que era tão evidente e lhe valera tantos inimigos, deixou de ser um traço de arrogância ridícula. Aos olhos dos indivíduos grosseiros que o cercavam, isso tornou-se um sentimento justo de sua dignidade. O ódio diminuiu sensivelmente, sobretudo entre os mais jovens dos colegas que se tornaram seus alunos, e que ele tratava com muita polidez. Aos poucos, ele ganhou até defensores; passou a ser de mau gosto chamá-lo Martim Lutero.
Mas para quê nomear seus amigos, seus inimigos? Tudo isso é feio, e tanto mais feio quanto o desenho é verdadeiro. No entanto, são esses os únicos professores de moral que o povo tem; e, sem eles, que seria do povo? Poderá o jornal algum dia substituir o padre?
Desde a nova dignidade de Julien, o diretor do seminário preferiu jamais falar com ele sem testemunhas. Havia nessa conduta prudência, tanto para o mestre quanto para o discípulo; mas havia sobretudo teste. O princípio invariável do severo jansenista Pirard era: Um homem possui mérito a vossos olhos? Colocai obstáculo a tudo o que ele deseja, a tudo o que empreende. Se o mérito é real, ele saberá derrubar ou contornar os obstáculos.
Era o tempo de caça. Fouqué teve a ideia de enviar ao seminário um cervo e um javali, em nome dos pais de Julien. Os animais mortos foram depositados no corredor, entre a cozinha e o refeitório. Foi ali que todos os seminaristas os viram, na hora do almoço. Aquilo foi um grande objeto de curiosidade. Mesmo morto, o javali atemorizava os mais jovens, que tocavam suas defesas. Não se falou de outra coisa durante oito dias.
Esse presente, que classificava a família de Julien na parte da sociedade que se deve respeitar, desferiu um golpe mortal contra a inveja. Ele significou uma superioridade consagrada pela fortuna. Chazel e os mais distintos dos seminaristas deram-lhe atenções e quase queixaram-se a ele por não tê-los informado da fortuna de seus pais, expondo-os assim a uma falta de respeito para com o dinheiro.
Houve um recrutamento militar, do qual Julien foi isento em sua qualidade de seminarista. Essa circunstância abalou-o profundamente. Eis passado para sempre o instante em que uma vida heroica, aos vinte anos, teria começado para mim!
Ele passeava sozinho no jardim do seminário. Ouviu uma conversa entre dois pedreiros que trabalhavam no muro de vedação.
– Pois então devemos partir, vem aí um novo recrutamento.
– No tempo do outro, aí sim! Um pedreiro podia ser oficial, podia ser general, isso aconteceu.
– Vai ver agora! Só os indigentes é que partem. Quem tem alguma coisa não se arrisca.
– Quem nasceu miserável, continua miserável, é isso aí.
– Ei, é verdade o que dizem, que o outro morreu?, perguntou um terceiro pedreiro.
– São os graúdos que dizem isso, entende? O outro lhes metia medo.
– Que diferença, como as coisas iam bem no tempo dele! E dizer que foi traído por seus marechais! É preciso ser muito traidor!
Essa conversa consolou um pouco Julien. Afastando-se, ele repetia, com um suspiro: O único rei cuja memória o povo conservou!
A época dos exames chegou. Julien respondeu de forma brilhante; viu que o próprio Chazel procurava mostrar todo o seu saber.
No primeiro dia, os examinadores nomeados pelo famoso vigário-geral de Frilair ficaram muito contrariados de colocar sempre em primeiro, ou quando muito em segundo, na lista, o nome desse Julien Sorel, que lhes era apontado como o benjamim do abade Pirard. Houve apostas, no seminário, de que na lista do exame geral Julien teria o primeiro lugar, o que significava a honra de almoçar na casa do bispo. Mas no final de uma sessão, em que se tratara dos Padres da Igreja, um examinador habilidoso, após ter interrogado Julien sobre São Jerônimo e sua paixão por Cícero, passou a falar de Horácio, de Virgílio e outros autores profanos. Sem que os colegas soubessem, Julien aprendera de cor um grande número de passagens desses autores. Arrebatado por seus sucessos, ele esqueceu o lugar onde estava e, a um pedido reiterado do examinador, recitou e parafraseou com ardor várias odes de Horácio. Após deixá-lo comprometer-se durante vinte minutos, o examinador mudou subitamente de expressão e censurou-lhe com acidez o tempo que perdera nesses estudos profanos, e as ideias inúteis ou criminosas que pusera na cabeça.
– Sou um tolo, e o senhor tem razão, disse Julien com um ar modesto, reconhecendo o hábil estratagema de que fora vítima.
Essa esperteza de examinador foi considerada suja, mesmo no seminário, o que não impediu que o abade de Frilair, homem habilidoso que organizara de forma competente a rede da Congregação de Besançon, e cujos despachos a Paris faziam tremer juízes, governador e até os generais da guarnição, pusesse com sua mão poderosa o número 198 ao lado do nome de Julien. Com isso, tinha a alegria de mortificar seu inimigo, o jansenista Pirard.
Há dez anos, sua grande questão era retirar-lhe a direção do seminário. Pirard, adotando para si mesmo o plano de conduta que indicara a Julien, era sincero, piedoso, sem intrigas, apegado a seus deveres. Mas o céu, em sua cólera, dera-lhe um temperamento bilioso, feito para sentir profundamente as injúrias e o ódio. Nenhum dos ultrajes que lhe faziam ficava perdido para essa alma ardente. Teria pedido cem vezes sua demissão, mas acreditava-se útil no posto onde a Providência o colocara. Assim impeço os progressos do jesuitismo e da idolatria, dizia a si mesmo.
Na época dos exames, havia aproximadamente dois meses que ele não falava com Julien; no entanto, ficou doente durante oito dias quando, ao receber a carta oficial anunciando o resultado do concurso, viu o número 198 colocado junto ao nome desse aluno que ele via como a glória de sua casa. O único consolo para esse caráter severo foi concentrar sobre Julien todos os seus meios de vigilância. Com encanto, nele não descobriu nem cólera, nem projeto de vingança, nem desânimo.
Algumas semanas depois, Julien estremeceu ao receber uma carta; ela trazia o selo de Paris. Enfim, pensou, a sra. de Rênal lembrou-se de suas promessas. Um senhor que se assinava Paul Sorel, e dizia-se seu parente, enviava-lhe uma letra de câmbio de 500 francos. Acrescentava que, se Julien continuasse a estudar com sucesso os bons autores latinos, uma quantia semelhante lhe seria enviada todo ano.
É ela, é sua bondade!, pensou Julien, enternecido; ela quer me consolar; mas por que nenhuma palavra de amizade?
Ele enganava-se sobre a carta. A sra. de Rênal, orien tada por sua amiga, a sra. Derville, estava completamente entregue a seus remorsos profundos. Contra sua vontade, ela pensava com frequência no ser singular cujo encontro perturbara sua existência, mas procurou não lhe escrever.
Se falássemos a linguagem do seminário, poderíamos reconhecer um milagre nessa remessa de 500 francos, e dizer que era do próprio sr. de Frilair que o céu se servia para dar esse presente a Julien.
Doze anos antes, o abade de Frilair chegara a Besançon com uma sacola das mais exíguas, a qual, segundo a crônica, continha toda a sua fortuna. Agora, era um dos homens mais ricos da região. No curso de sua prosperidade, adquirira metade de um terreno, cuja outra metade coube por herança ao sr. de La Mole. Daí um grande processo entre essas figuras.
Apesar de sua brilhante existência em Paris, e dos empregos que tinha na corte, o marquês de la Mole viu que era perigoso lutar em Besançon contra um grande vigário de quem diziam fazer e desfazer governadores. Em vez de solicitar uma gratificação de 50 mil francos, dissimulada sob um nome qualquer aceito pelo orçamento, e de abandonar ao abade de Frilair esse mesquinho processo de 50 mil francos, o marquês irritou-se. Acreditava ter razão: bela razão!
Ora, se é permitido dizer: que juiz não tem um filho ou pelo menos um primo a promover na sociedade?
Para esclarecer os mais cegos, oito dias depois da primeira sentença que obteve, o abade de Frilair tomou a carruagem do bispo e foi pessoalmente levar a cruz da Legião de Honra a seu advogado. O sr. de La Mole, um pouco atordoado com a atitude da parte adversária, e vendo seus advogados fraquejarem, pediu conselhos ao abade Chélan, que o pôs em contato com o sr. Pirard.
Essas relações já duravam vários anos na época de nossa história. O abade Pirard pôs seu caráter apaixonado nesse caso. Avistando-se seguidamente com os advogados do marquês, examinou sua causa e, considerando-a justa, tornou-se abertamente o defensor do marquês de La Mole contra o todo-poderoso vigário-geral. Este ficou furioso com a insolência, ainda mais da parte de um jansenista!
Vejam o que é essa nobreza de corte que se julga tão poderosa! dizia a seus íntimos o abade de Frilair. O sr. de La Mole não só enviou uma medalha miserável a seu agente em Besançon, como irá fazê-lo ser sumariamente destituído. No entanto, pelo que me escrevem, esse nobre não deixa passar uma semana sem exibir sua fita azul no salão do ministro da Justiça, seja ele quem for.
Apesar da atividade do abade Pirard, e embora o sr. de La Mole mantivesse sempre boas relações com o ministro e sobretudo com seus gabinetes, o máximo que obteve, após seis anos de esforços, fora não perder definitivamente seu processo.
Correspondendo-se o tempo todo com o abade Pirard, sobre um caso que ambos seguiam com paixão, o marquês acabou por apreciar o tipo de espírito do abade. Aos poucos, não obstante a imensa distância das posições sociais, a correspondência deles adquiriu o tom da amizade. O abade Pirard dizia ao marquês que queriam obrigá-lo, à força de vexames, a pedir sua demissão. Furioso com o estratagema infame, segundo ele, empregado contra Julien, contou sua história ao marquês.
Embora muito rico, este nobre não era avarento. Em momento nenhum ele pudera fazer que o abade Pirard aceitasse nem sequer o reembolso dos gastos de correio ocasionados pelo processo. Teve então a ideia de enviar quinhentos francos a seu aluno favorito.
O sr. de La Mole deu-se o trabalho de escrever ele próprio a carta de remessa. Isso o fez pensar no abade.
Um dia, este recebeu um bilhete que o convidava a comparecer, sem demora, num albergue dos arredores de Besançon. Lá ele encontrou o intendente do sr. de La Mole.
– O sr. marquês encarregou-me de trazer-lhe sua caleche, disse esse homem. Ele espera que, após ter lido esta carta, o senhor concordará em partir para Paris, dentro de quatro ou cinco dias. Vou empregar o tempo que o senhor me indicar percorrendo as terras do sr. marquês, no Franco-Condado. Depois disso, no dia marcado, partiremos para Paris.
continua...
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.
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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.
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Leia também:
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Diálogo com um Mestre (XXI - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Diálogo com um Mestre (XXI - 2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Capital (XXIV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Seminário (XXV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Mundo, Ou o Que Falta ao Rico (XXVI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Primeira Experiência da Vida (XXVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Procissão (XXVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Primeira Promoção (XXIX - 2)
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