Simone de Beauvoir
02. A Experiência Vivida
O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR
SlMONE DE BEAUVOIR
complementando o livro anterior: O Segundo Sexo...
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
O SEGUNDO SEXO
II
A EXPERIÊNCIA VIVIDA
OBRAS DO MESMO AUTOR
Da Librairie Gallimard
ROMANCES
L'invitée
Le sang des autres
Tous les hommes sont mortels
Les mandarins
TEATRO
Les bouches inutiles
ENSAIOS
Pyrrhus et Cinéas
Pour une morale de l'ambiguité.
L'Amérique au jour le jour
Privilèges
La longue marche, essai sur la Chine
Le deuxième sexe:
I. Les faits et les mythes
I I . L'expérience vécue
MEMÓRIAS
Mémoires d'une jeune fille rangée
La force de l'age
La force des choses
já traduzidas
pela DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
A Convidada
Todos os Homens são Mortais
Memórias de uma Moça bem Comportada
O Segundo Sexo:
I. Os Fatos e os Mitos
II. A Experiência Vivida
Na Força da Idade, 2 vols.
Sob o Signo da História, 2 vols.
Os Mandarins, 2 vols.
Beauvoir, Simone de
O Segundo Sexo
2. A Experiência Vivida
2.a Edição
Tradução de Sérgio Milliet
Capa de Fernando Lemos
Título do original:
L'EXPÉRIENCE VÉCUE
1967
Que desgraça ser mulher! Entretanto,
a pior desgraça quando se é
mulher é, no fundo, não compreender
que sê-lo é uma desgraça. . .
KlERKEGAARD
Metade vítimas, metade cúmplices,
como todo mundo.
J . - P . SARTRE
Introdução
PRIMEIRA PARTE
FORMAÇÃO
______________________________________________________
CAPÍTULO I
I N F Â N C I A
O mundo apresenta-se, a princípio, ao recém-nascido sob a figura de sensações imanentes; ele ainda se acha mergulhado no seio do Todo como no tempo em que habitava as trevas do ventre; seja criado no seio ou na mamadeira, é envolto pelo calor da carne materna. Pouco a pouco, aprende a perceber os objetos como distintos de si: distingue-se deles; ao mesmo tempo, de modo mais ou menos brutal, desprende-se do corpo nutriz; por vezes reage a essa separação com uma crise violenta [1]. Em todo caso, é no momento em que ela se consuma — lá pela idade de seis meses mais ou menos — que a criança começa a manifestar em suas mímicas, que se tornam mais tarde verdadeiras exibições, o desejo de seduzir a outrem. Por certo, essa atitude não é definida por uma escolha refletida; mas não é preciso pensar uma situação para existi-la. De maneira imediata a criança de peito vive o drama original de todo existente, que é o drama de sua relação com o Outro. É na angústia que o homem sente seu abandono. Fugindo à sua liberdade, à sua subjetividade, ele gostaria de perder-se no seio do Todo: aí se encontra a origem de seus devaneios cósmicos e panteísticos, de seu desejo de esquecimento, de sono, de êxtase, de morte. Ele nunca consegue abolir seu eu separado: pelo menos deseja atingir a solidez do em-si, ser petrificado na coisa; é, singularmente, quando imobilizado pelo olhar de outrem, que se revela a si mesmo como um ser. É dentro dessa perspectiva que cumpre interpretar as condutas da criança: sob uma forma carnal, ela descobre a finidade, a solidão, o abandono em um mundo estranho; tenta compensar essa catástrofe alienando sua existência numa imagem de que outrem justificará a realidade e o valor. Parece que é a partir do momento em que percebe sua imagem no espelho — momento que coincide com o da desmama — que ela começa a afirmar sua identidade [2]: seu eu confunde-se a tal ponto com essa imagem que só se forma alienando-se. Desempenhe ou não o espelho propriamente dito um papel mais ou menos considerável, o certo é que a criança começa, por volta de seis meses, a compreender as mímicas dos pais e a se apreender sob o olhar deles como um objeto. Ela já é um sujeito autônomo que se transcende para o mundo, mas é somente sob uma figura alienada que ela se encontra a si mesma.
(1) Judith Gautier conta em suas recordações que chorou e definhou
de tal maneira, quando a separaram de sua ama, que foi preciso
reuni-las novamente. Só foi desmamada muito depois.
(2) Esta teoria é proposta pelo Dr. Lacan nos Complexes_ farniliaux
dans la formation de l'individu. Esse fato, de importância primordial,
explicaria por que, no curso de seu desenvolvimento, "o eu
conserva a figura ambígua do espetáculo".
Quando cresce, a criança luta de duas maneiras contra o abandono original. Tenta negar a separação: aconchega-se nos braços da mãe, procura seu calor vivo, reclama suas carícias. Tenta fazer-se justificar pelo sufrágio de outrem. Os adultos se lhe afiguram deuses: têm o poder de lhe conferir o ser. Sente a magia do olhar que a metamorfoseia ora em delicioso anjinho, ora em monstro. Esses dois modos de defesa não se excluem: ao contrário, completam-se e penetram-se. Quando a sedução alcança êxito, o sentimento de justificação encontra uma confirmação carnal nos beijos e carícias recebidos: é uma mesma passividade feliz que a criança conhece no colo da mãe e sob seu olhar benevolente. Não há, durante os três ou quatro primeiros anos, diferença entre a atitude das meninas e a dos meninos; tentam todos perpetuar o estado feliz que precedeu a desmama; neles como nelas deparamos com condutas de sedução e de parada: eles desejam tanto quanto elas agradar, provocar sorrisos, ser admirados.
É mais satisfatório negar a dilaceração do que superá-la, mais radical perder-se no coração do Todo do que se fazer petrificar pela consciência de outrem: a fusão carnal cria uma alienação mais profunda do que qualquer demissão perante o olhar alheio. A sedução, a parada representam uma fase mais complexa, menos fácil do que o simples abandono nos braços maternos. A magia do olhar adulto é caprichosa; a criança pretende ser invisível, os pais aceitam o jogo, procuram-na às apalpadelas, riem e depois bruscamente declaram: "Tu nos aborreces, não és invisível". Uma frase da criança divertiu, ela a repete; mas, agora, dão de ombros. Neste mundo tão incerto, tão imprevisível como o universo de Kafka, titubeia-se a cada passo [3]. É por isso que tantas crianças têm medo de crescer; desesperam-se quando os pais deixam de sentá-las nos joelhos, de aceitá-las na cama: através da frustração física, sentem dia a dia mais cruelmente o abandono de que o ser humano nunca toma consciência senão com angústia.
(3) Em L'Orange bleue, Yassu Gauclère diz a propósito do pai: "Seu bom humor parecia-me tão temível quanto suas impaciências porque nada me explica o que o podia motivar. . . Incerta de seus movimentos de humor tanto quanto o fora dos caprichos de um Deus, eu o reverenciava com inquietação. . . Lançava palavras como teria jogado a cara ou coroa perguntando-me que acolhimento lhes seria dado". E mais adiante ela conta o caso seguinte: "Como um dia, depois de ter sido ralhada, começasse minha litania: mesa velha, escovão, forno, bacia, garrafa de leite, frigideira etc, mamãe ouviu e rebentou de rir. . . Dias depois, tentei utilizar a mesma litania para abrandar minha mãe que novamente havia ralhado comigo; triste ideia: ao invés de diverti-la, só consegui dobrar ainda a severidade, o que me acarretou uma punição suplementar. Disse a mim mesma que a conduta dos grandes era decididamente incompreensível".
Nesse ponto é que as meninas vão parecer, a princípio, privilegiadas. Uma segunda desmama, menos brutal, mais lenta do que a primeira, subtrai o corpo da mãe aos carinhos da criança; mas é principalmente aos meninos que se recusam pouco a pouco beijos e carícias; quanto à menina, continuam a acariciada, permitem-lhe que viva grudada às saias da mãe, no colo do pai que lhe faz festas; vestem-na com roupas macias como beijos, são indulgentes com suas lágrimas e caprichos, penteiam-na com cuidado, divertem-se com seus trejeitos e seus coquetismos: contatos carnais e olhares complacentes protegem-na contra a angústia da solidão. Ao menino, ao contrário, proíbe-se até o coquetismo; suas manobras sedutoras, suas comédias aborrecem. 'Um homem não pede beijos. . . um homem não se olha no espelho. . . Um homem não chora", dizem-lhe. Querem que ele seja "um homenzinho"; é libertando-se dos adultos que ele conquista o sufrágio deles. Agrada se não demonstra que procura agradar.
continua página 12...
_____________________
Leia também:
______________________
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário