quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Stanislaw PP - FeBeAPá: O diário de Muzema

O Festival de Besteira

O Maior Festival de Besteira que já Assolou e voltou Assolar o País


II Parte




O diário de Muzema







Muzema é um bairrozinho pequeno e pacato, ali pelas bandas da Barra da Tijuca. Pertence à jurisdição da 32a Delegacia Distrital e nunca dá bronca. Ou melhor, minto… não dava bronca porque esta que deu agora foi fogo. Diz que o delegado da 32a estava em sua mesa de soneca tirando uma pestana, feliz com o sossego, quando um bando de perto de duzentas pessoas invadiu a delegacia, carregando no ar um coitado, baixote e magrinho, com a cara mais amassada que para-choque de ônibus de subúrbio. E a turba fazia um barulho de acordar prontidão.

O delegado, que era o Levi, deu um pulo da cadeira e berrou:

— Chamem a polícia!!! — mas aí percebeu que ele mesmo é que era a polícia e perguntou que diabo era aquilo. Logo todo mundo começou a berrar ao mesmo tempo, o que obrigou o dr. Levi a berrar mais alto ainda, ordenando:

— Um de cada vez, pombas!

Aí um dos que carregavam o pequenino, ordenou que os companheiros pusessem “aquele rato” no chão (a expressão é lá do cara) e começou a explicar:

— Nós somos moradores do bairro de Muzema, doutor delegado.

— Sim. E esse pequenino aí?

— Pois é, doutor. Nós somos todos de lá e esse cretino aí também é. Imagine o senhor que ele tem m caderno grosso, que ele chama de “Meu diário”, onde escreve as maiores sujeiras sobre a gente.

— Como é que é? — estranhou o delegado.

Começou todo mundo a berrar outra vez e, enquanto um guarda dava um copo de água para o diarista arrebentado, o delegado viu-se outra vez a berrar mais alto:

— Calem-se! Um só de cada vez!

Foi aí que deram a palavra pro dono do caderno:

— É o seguinte, doutor: eu tenho um diário. Ando muito lá pela Muzema e ninguém nunca repara em mim. Assim eu posso ver o que os outros fazem sem ser importunado. Mas acontece que eu não sou fofoqueiro. Eu vejo cada coisa de arrepiar. Ainda ontem eu vi a mulher daquele ali (e apontou para um sujeito do grupo) num escurinho da praça, abraçada com aquele lá (e apontou um outro sujeito no canto da delegacia, que, ao ser apontado, encolheu-se todo). Esta informação bastou para que o assinalado marido partisse pra cima do encolhido e o tumulto se generalizasse. Coitado do delegado, já estava quase rouco, quando conseguiu reimplantar a ordem na 32a DD.

— Prossiga! — disse pro pequenino.

O pequenino pigarreou e prosseguiu:

— Como eu dizia, eu tenho o meu diário e anoto nele tudo que vejo. Não faço fofoca com ninguém. Tudo o que está escrito aqui é verídico.

— Como é o seu nome? Onde você mora?

— Edson Soares. Moro lá mesmo na Muzema. Lote A, casa 18.

O delegado Levi pediu o diário e folheou algumas páginas. Havia coisas mais ou menos assim, escritas nele: “D. Jurema, do lote B, casa 75, estava saindo de madrugada da casa 67 do mesmo lote, onde mora o Sebastião, que tem um cacho com ela há muito tempo”. Ou então: “Lilico continua fingindo que é noivo da filha de d. Júlia, mas se aquilo é noivado eu sou girafa. Como eles mandam brasa, atrás do muro da casa dela”.

O delegado Levi tossiu, embaraçado, e quis saber como é que os personagens daquele diário tinham descoberto o que estava escrito ali. O pequenino foi sincero:

— Eu dei azar, doutor. Eu esqueci o diário num banco da pracinha e fui jantar. Quando eu voltei estava todo mundo em volta desse garoto aí — e apontou um garoto sorridente, que se divertia com o bafafá —, e o miserável do garoto lendo em voz alta: “…o seu Osooo… Osorío não: Osório. O seu Osório quando sai pra o tral… tralba… para o trabalho, devia levar a muuu… a mulher dele. Ela é muito assada… assada não… muito assanhada”.

— Eu achei o diário dele — falou o garoto, mas calou-se logo ao levar um cascudo de um gordão que devia ser, na certa, o seu Osório.

Já ia saindo onda outra vez. O pessoal do bairro pacato estava mesmo disposto a beber o sangue de Edson Soares, o historiador da localidade. Sanada, todavia, mais esta tentativa, o delegado Levi perguntou ao dono do diário:

— O senhor também é poeta?

— Mais ou menos, né?

— Eu pergunto — esclareceu o delegado — porque este versinho aqui está interessante, e leu no diário: “Para o José Azevedo/ O futebol não cola/ Pois se for cabecear/ Na certa ele fura a bola”.

Pimba… mais uma bolacha premiou a cara do poeta. Ninguém conseguia segurar José Azevedo, residente na Muzema, lote J, casa 77. O pau roncou solto e só quando chegou reforço é que o delegado conseguiu botar em cana uns quatro ou cinco, inclusive o biógrafo muzemense. O resto mandou embora, aconselhando:

— Vocês vejam se não dão margem ao artista de se expandir tanto, em seu futuro diário, tá?

O pessoal prometeu.






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* As cédulas de um cruzeiro (Pedro Álvares Cabral) e cinco cruzeiros (Tiradentes).

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SÉRGIO PORTO nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e morreu na mesma cidade em 1968. Foi cronista, radialista, homem de teatro e TV, compositor. Conhecido nacionalmente por meio do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, publicou, além de Febeapá, coletâneas de crônicas, textos sobre futebol, entre outros.





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