quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O livro que quero ler na eternidade?

Teatro Pedagógico 03
baitasar
As palavras marcam as ideias das histórias feitas ou desfeitas com um timbre de destacado ou irrelevante. Eu continuava parada com a térmica na mão, no abrigo, insignificante irrelevante, calada, o palavrório ia e vinha, livre e desobediente, queria ouvir um desfecho com um final romântico. Sou o meu espelho, a inflexão das minhas combinações acredita no desenlace poético, na virtude das palavras que revelam outras harmonias, arranjos com outras vontades. Precisava ficar. Sair seria deserção
—        Cabayba, qual a utilidade do nosso trabalho?
Queria possuir essa insistência suave e decidida, ser assim, resistente ao ódio e a raiva das caras feias, vozes aterradoras anunciando o fim do mundo. Elas não me assustam, mas me causam uma profunda tristeza. Não tenho medo do fim do meu corpo nem da indisciplina dele, como não me assustam as poesias e os romances que não irei ler, necessito a poesia e os romances que já tive. Sou assim mesma, gosto demais daquilo que já tenho, mas não me impedem de abrir outros livros.
O Marko não busca desacreditar qualquer reflexão, repete que precisamos olhar de frente a cruz, enfrentar o sorriso fabricado, têxtil, o elogio hipócrita, afrontar a desumanidade de maneira radical, sem concessões destravancar o caminho do entendimento até que as ideias se desvestem do ódio para acariciar e ensinar
—        Ajudar essa gente se tornar gente. — ela não parecia querer sair do seu cinismo e torpor natural. A zombaria e a indiferença marcavam suas ideias, tramavam suas palavras com um pequeno sorriso, disfarçado pelo rumorejo rouco da voz carcomida. Não quero esse teatro de desistências para mim, vou embora antes
—        Estamos obrigados a educar o cidadão que a nossa sociedade precisa. E o que a sociedade necessita?
—        Marko... — virou-se para mim, um professor doce e determinado
—        Sim... — continuei calada, nos olhamos, recebi um sorriso afetuoso de acolhimento, a Camila ao meu lado continuou
—        Precisamos médicos, engenheiros, advogados, professores, mas... — o Marko sentou, escutava Camila, atento a cada palavra e inflexão da voz.  Numa de tantas conversas que tivemos, ele me disse, não para ensinar ou narrar algum feito espetacular, apenas para explicar-se, desculpar-se dos seus silêncios,  Minha amiga, dialogar com a outra pessoa é mergulhar nas palavras que são ditas e naquelas que ficam travadas na garganta, conformadas, separadas da concretude
—        Com licença, Camila... — essa voz reconheceria em qualquer lugar: Abigail — ... médicos, engenheiros, no meio dessa gente, feia, pobre, se não é impossível, é muito pouco provável. Tenha dó. — não podemos negar nosso DNA, podemos lutar, mas no primeiro descuido ele se manifesta firme e forte, desfocado de humanidade imagina que se importa, mente pra si mesma que sabe o que não sabe, o foco sempre são os líderes, eles caminham enquanto outros se escondem ou sentam para um chimarrão. E os que nem sabem que não sabem ficam pelo caminho, morrem no chão frio, desassistidos
—        Abigail, só um instante. Entendo o Marko, mas a questão é que já temos muitos médicos, engenheiros, advogados, veterinários, etc etc etc, essa gente precisa parar de fazer filhos. Pobre e a filharada só cria mais miséria e desgraça.
—        Não é verdade Cabayba. — somente o Marko para denunciar um pedacinho dessa história mal contada, a cilada da história contada pelo meio, as meias verdades que não escondem, mas não deixam que apareça o embuste da história  — No mundo dos pobres não têm médicos... ah, faltam condições de trabalho para os médicos, parte da verdade, Cabayba, precisamos de médicos que antes de entenderem de exames, entendam de gente... ah, mas existem médicos maravilhosos, parte da verdade, Cabayba, não há tantos médicos maravilhosos quanto necessitam os que não podem pagar, os pobres. Essa é a questão, quais as características, conduta e qualidade de personalidade dessa mão de obra qualificada? O projeto da personalidade como produto da educação deve estar baseado nas exigências da procura da sociedade... — eu não sei das outras, mas eu gostaria de ficar escutando o Marko, a reunião que precisamos é essa, o amálgama das ideias é a discussão das ideias, a prática e a discussão da prática, o que deu certo, o que não deu certo, o que precisamos mudar, buscar nas ideias as revoluções da prática. Eu continuo fixada no mesmo lugar, ao lado do fogão, a térmica na mão.
A Cabayba levanta, deixa seu copo de iogurte vazio sobre a mesa, caminha até a porta do abrigo, faz uma careta, mais uma das suas máscaras
—        Marko, educar quem não escuta e não quer ouvir? Brigam, xingam, gozam em nossa cara, levantam, saem, os palavrões, os xingamentos, o descontrole... não resisto mais, para mim, essa história acabou! E não tem final feliz...
Antes que pudesse sair do abrigo o Marko lhe perguntou, suave e direto
—        E o que lhes mostramos? Um copo de iogurte na mesa?
Muitos crimes passionais seriam evitados se pudéssemos vigiar a solidão do próprio egoísmo. A Cabayba não respondeu, saiu sorrindo.
Fico para trás, desenterrando os meus sonhos da realidade sempre inacabada, incessantemente inconclusa.
Queria ter sido fecundada com a vida de uma filha, não sei por que não me dei esta vida, sou uma mulher frágil, oculta pela altura das árvores que plantei. Não sou boazinha nem bruxinha. Estou assustada com o último cigarro que fumei. Venho decidindo parar, mas não será hoje. A práxis que pode me fecundar, outra filha, outra mulher. Sinto que não quero morrer, quero te amar. Nossa pele macia sem as rugas que chegam mais tarde. As lambidas da tua língua molhada e quente. Os avisos para ter cautela. O teu corpo aprendendo o meu, sumindo no meu. Amo muito, tudo isso. Delícia. Adoro a sinfonia dos teus amares em mim. A tua boca me faz querer os teus beijos. Necessito teu colo, mas há horas que, todavia, mais indigente e miserável me sinto. Quando de pertinho, fico olhando tua boca e sinto crescendo aquela vontade de te devorar, mas se te procuro na aurora só vou te encontrar no crepúsculo, o apaixonamento do reencontro. Queria que o amor fosse a obra-prima da minha vida.
—        As ações na escola, Camila, não têm esse alcance histórico... — pronto, perdi alguma coisa, mas continuo em pé, a garrafa térmica na outra mão — ... senão estaríamos formando jovens sem iniciativa crítica, criativa e humana, mas grandes ecos de declinações, códigos gramaticais, fórmulas matemáticas. Por graças, sabe-se lá do que, conseguimos sobreviver às inquietações críticas do cotidiano.
A Cabayba retorna ao abrigo, pega o copo vazio e coloca na lixeira. Agora, enfrenta o discurso do Marko, em silêncio
—        A realidade é maior que a escola.
—        É isso, Samuel, caminhamos a reboque. Fazemos história contando as histórias.
—        A escola somos todos... precisamos reconhecer o que é necessário ensinar e educar.
—        Que grande novidade, Camila!
—        As duas têm razão, uma banalidade que não fazemos não é modernidade, a inovação seria escutar o aluno, indo além de pegar em sua mão.
Continuo escutando, não quero atrapalhar, sei que é besteira, poderia contribuir, mas continuo na minha preguiça. O Marko, físico esbelto, cabelos curtos, óculos sobre o nariz, estatura mediana, impõem-se nos gestos exatos. A voz perfeitamente modulada, cordial, sem nenhuma vaidade, sorriso bondoso. A energia da vida está mergulhada em seus sonhos que iluminam e incendeiam a sua volta. Sinto que terei saudades do tempo em que conversamos sobre essa confusão que é viver.
—        Marko, você acredita que a nossa vida social está se desenvolvendo e aperfeiçoando? E os nossos jovens? — a Cabayba é um desafio constante, mas é preciso escutá-la, assim, podem-se confrontar ideias, concepções e práticas, penoso é acarear o silêncio que só espera o momento do bote, não se arrisca, quando muito mexerica.
O Marko se mantém serenamente firme e disposto no embate. Os meus pensamentos se transportam das suas palavras. Recordo acusações que a educação socialista tornaria a escola sem gosto, sem cores democráticas. Vejo a mim e meus colegas, todos crescidos e educados nos preceitos mais significativos da Academia; severos, conservadores e preconceituosos. Afinal, quem uniformiza quem? Desde quando decorar é ser feliz? Quem deforma quem?
Não tenho medo da morte, não quero ficar pelos cantos, tortinha. Peço que me acabem num gesto de humanidade, libertem as dores da minha alma solidária. Enterrem meu corpo balzaquiano com alguma novela balzaquiana. A leitura não será só um passatempo, me fará ver o que sou, escutar o que não sei, o que não quero ou necessito, o amor na plenitude, dona de mim.
Que livro quero ler na eternidade?

_________________________
Leia também:
Teatro Pedagógico 02 - Iogurte na mesa

TP 04 - Maldito ou bendito, eu não sei


Nenhum comentário:

Postar um comentário