Teatro Pedagógico 03
baitasar
As
palavras marcam as ideias das histórias feitas ou desfeitas com um timbre de destacado
ou irrelevante. Eu continuava parada com a térmica na mão, no abrigo, insignificante irrelevante, calada, o palavrório ia e vinha, livre e desobediente, queria ouvir um desfecho
com um final romântico. Sou o meu espelho, a inflexão das minhas combinações
acredita no desenlace poético, na virtude das palavras que revelam outras
harmonias, arranjos com outras vontades. Precisava ficar. Sair seria deserção
— Cabayba, qual a utilidade do nosso
trabalho?
Queria
possuir essa insistência suave e decidida, ser assim, resistente ao ódio e a
raiva das caras feias, vozes aterradoras anunciando o fim do mundo. Elas não me
assustam, mas me causam uma profunda tristeza. Não tenho medo do fim do meu
corpo nem da indisciplina dele, como não me assustam as poesias e os romances que não irei ler,
necessito a poesia e os romances que já tive. Sou assim mesma, gosto demais daquilo que já tenho, mas não me impedem de abrir outros livros.
O
Marko não busca desacreditar qualquer reflexão, repete que precisamos olhar de
frente a cruz, enfrentar o sorriso fabricado, têxtil, o elogio hipócrita,
afrontar a desumanidade de maneira radical, sem concessões destravancar o caminho do entendimento até que as ideias se desvestem do ódio para acariciar e ensinar
— Ajudar essa gente se tornar gente. — ela
não parecia querer sair do seu cinismo e torpor natural. A zombaria e a
indiferença marcavam suas ideias, tramavam suas palavras com um pequeno
sorriso, disfarçado pelo rumorejo rouco da voz carcomida. Não quero esse teatro de desistências para mim, vou embora antes
— Estamos obrigados a educar o cidadão que
a nossa sociedade precisa. E o que a sociedade necessita?
— Marko... — virou-se para mim, um professor doce e determinado
— Sim... — continuei calada, nos olhamos,
recebi um sorriso afetuoso de acolhimento, a Camila ao meu lado continuou
— Precisamos médicos, engenheiros,
advogados, professores, mas... — o Marko sentou, escutava Camila, atento a cada
palavra e inflexão da voz. Numa de tantas conversas que tivemos, ele me disse, não para ensinar ou narrar algum feito espetacular, apenas para explicar-se, desculpar-se dos seus silêncios, Minha amiga, dialogar com a outra pessoa é mergulhar nas palavras que são ditas e naquelas que ficam travadas na garganta, conformadas, separadas da concretude
— Com licença, Camila... — essa voz
reconheceria em qualquer lugar: Abigail — ... médicos, engenheiros, no meio
dessa gente, feia, pobre, se não é impossível, é muito pouco provável. Tenha dó. — não
podemos negar nosso DNA, podemos lutar, mas no primeiro descuido ele se
manifesta firme e forte, desfocado de humanidade imagina que se importa, mente pra si mesma que sabe o que não sabe, o foco sempre são os líderes, eles caminham enquanto outros se escondem ou sentam para um chimarrão. E os que nem sabem que não sabem ficam pelo caminho, morrem no chão frio, desassistidos
— Abigail, só um instante. Entendo o
Marko, mas a questão é que já temos muitos médicos, engenheiros, advogados,
veterinários, etc etc etc, essa gente precisa parar de fazer filhos. Pobre e a
filharada só cria mais miséria e desgraça.
— Não é verdade Cabayba. — somente o Marko
para denunciar um pedacinho dessa história mal contada, a cilada da história contada pelo meio, as meias verdades que não escondem, mas não deixam que apareça o embuste da história — No mundo dos pobres
não têm médicos... ah, faltam condições de trabalho para os médicos, parte da
verdade, Cabayba, precisamos de médicos que antes de entenderem de exames,
entendam de gente... ah, mas existem médicos maravilhosos, parte da verdade,
Cabayba, não há tantos médicos maravilhosos quanto necessitam os que não podem
pagar, os pobres. Essa é a questão, quais as características, conduta e qualidade de
personalidade dessa mão de obra qualificada? O projeto da personalidade como
produto da educação deve estar baseado nas exigências da procura da sociedade... — eu não sei das outras, mas eu gostaria de ficar escutando o Marko, a reunião
que precisamos é essa, o amálgama das ideias é a discussão das ideias, a
prática e a discussão da prática, o que deu certo, o que não deu certo, o que
precisamos mudar, buscar nas ideias as revoluções da prática. Eu continuo
fixada no mesmo lugar, ao lado do fogão, a térmica na mão.
A
Cabayba levanta, deixa seu copo de iogurte vazio sobre a mesa, caminha até a
porta do abrigo, faz uma careta, mais uma das suas máscaras
— Marko, educar quem não escuta e não quer
ouvir? Brigam, xingam, gozam em nossa cara, levantam, saem, os palavrões, os
xingamentos, o descontrole... não resisto mais, para mim, essa história acabou!
E não tem final feliz...
Antes
que pudesse sair do abrigo o Marko lhe perguntou, suave e direto
— E o que lhes mostramos? Um copo de
iogurte na mesa?
Muitos
crimes passionais seriam evitados se pudéssemos vigiar a solidão do próprio
egoísmo. A Cabayba não respondeu, saiu sorrindo.
Fico
para trás, desenterrando os meus sonhos da realidade sempre inacabada,
incessantemente inconclusa.
Queria
ter sido fecundada com a vida de uma filha, não sei por que não me dei esta
vida, sou uma mulher frágil, oculta pela altura das árvores que plantei. Não
sou boazinha nem bruxinha. Estou assustada com o último cigarro que fumei.
Venho decidindo parar, mas não será hoje. A práxis que pode me fecundar, outra
filha, outra mulher. Sinto que não quero morrer, quero te amar. Nossa pele
macia sem as rugas que chegam mais tarde. As lambidas da tua língua molhada e
quente. Os avisos para ter cautela. O teu corpo aprendendo o meu, sumindo no
meu. Amo muito, tudo isso. Delícia. Adoro a sinfonia dos teus amares em mim. A
tua boca me faz querer os teus beijos. Necessito teu colo, mas há horas que,
todavia, mais indigente e miserável me sinto. Quando de pertinho, fico olhando
tua boca e sinto crescendo aquela vontade de te devorar, mas se te procuro na
aurora só vou te encontrar no crepúsculo, o apaixonamento do reencontro. Queria
que o amor fosse a obra-prima da minha vida.
— As ações na escola, Camila, não têm esse
alcance histórico... — pronto, perdi alguma coisa, mas continuo em pé, a
garrafa térmica na outra mão — ... senão estaríamos formando jovens sem
iniciativa crítica, criativa e humana, mas grandes ecos de declinações, códigos
gramaticais, fórmulas matemáticas. Por graças, sabe-se lá do que, conseguimos
sobreviver às inquietações críticas do cotidiano.
A
Cabayba retorna ao abrigo, pega o copo vazio e coloca na lixeira. Agora,
enfrenta o discurso do Marko, em silêncio
— A realidade é maior que a escola.
— É isso, Samuel, caminhamos a reboque.
Fazemos história contando as histórias.
— A escola somos todos... precisamos
reconhecer o que é necessário ensinar e educar.
— Que grande novidade, Camila!
— As duas têm razão, uma banalidade que
não fazemos não é modernidade, a inovação seria escutar o aluno, indo além de
pegar em sua mão.
Continuo
escutando, não quero atrapalhar, sei que é besteira, poderia contribuir, mas
continuo na minha preguiça. O Marko, físico esbelto, cabelos curtos, óculos
sobre o nariz, estatura mediana, impõem-se nos gestos exatos. A voz
perfeitamente modulada, cordial, sem nenhuma vaidade, sorriso bondoso. A
energia da vida está mergulhada em seus sonhos que iluminam e incendeiam a sua
volta. Sinto que terei saudades do tempo em que conversamos sobre essa confusão
que é viver.
— Marko, você acredita que a nossa vida
social está se desenvolvendo e aperfeiçoando? E os nossos jovens? — a Cabayba é
um desafio constante, mas é preciso escutá-la,
assim, podem-se confrontar ideias, concepções e práticas, penoso é acarear o
silêncio que só espera o momento do bote, não se arrisca, quando muito
mexerica.
O
Marko se mantém serenamente firme e disposto no embate. Os meus pensamentos se
transportam das suas palavras. Recordo acusações que a educação socialista
tornaria a escola sem gosto, sem cores democráticas. Vejo a mim e meus colegas,
todos crescidos e educados nos preceitos mais significativos da Academia;
severos, conservadores e preconceituosos. Afinal, quem uniformiza quem? Desde
quando decorar é ser feliz? Quem deforma quem?
Não
tenho medo da morte, não quero ficar pelos cantos, tortinha. Peço que me acabem
num gesto de humanidade, libertem as dores da minha alma solidária. Enterrem
meu corpo balzaquiano com alguma novela balzaquiana. A leitura não será só um
passatempo, me fará ver o que sou, escutar o que não sei, o que não quero ou
necessito, o amor na plenitude, dona de mim.
Que livro quero ler na eternidade?
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Teatro Pedagógico 02 - Iogurte na mesaTP 04 - Maldito ou bendito, eu não sei
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