Teatro Pedagógico 02
baitasar
Abigail
entrou nervosa no abrigo, espichava e encolhia, ora o olho gordo, ora o olho
vivo, ora o olho d’água, examinava e não enxergava, virava e revirava o nariz,
procurava procurava e procurava, não achava, ninguém reparava ou fingiam que
não notavam sua impaciência, só eu... não, para falar a verdade, nem eu me
importava descrente deste mundo
— Alguém viu minha bolsa... acabei de
comprar... meu Jesus, me ajuda...
Camila
foi a única que olhou Abigail com atenção e paciência, fechou seu armário e
circulou o redondo dos olhos pelo abrigo, parecia incomodada, mas gostava de
servir, ajudar, mitigar, tudo em nome da paz e do sossego
— Não é aquela ali? — apontou para uma
bolsa de couro falso, preta, com detalhes dourados, caída no chão, perdida
entre sapatos de couro e lona
— É! — abriu o sorriso, talvez para
Camila, talvez à bolsa — O que vocês acham gurias, não é a minha cara?
Pôs
a bolsa a tiracolo.
Olharam
descuidadas para o rosto vermelho da Abigail e a bolsa falsa preta no tiracolo
do colo. Grande para caber tudo e não encontrar nada, vazia de angústia ou
cheia de solidão. Não agradeceu.
Comprou
na feirinha do corredor. As mercadorias não variam muito das bolsas, blusas,
roupas da intimidade: calcinha, sutiã (taça, meia-taça, tomara que caia),
livros didáticos, histórias infantis e autoajuda. O pagamento com cheque
pré-datado facilita a conveniência
— Gurias! Hoje não tem reunião?
Pronto.
Conseguiu a atenção das abrigadas, paramos para uma reunião que não queremos,
mas parar é bom — Fica quieta, Abigail...
Saio
desenganada para o pátio. Caminho desembrulhada das fantasias pedagógicas. Olho
para os lados e o vejo sentado com seu chimarrão, falamos com os olhos, Preciso
fugir das tentativas para acalmar minha consciência, cansei das orações
purgativas, ele me responde, A fúria do pensamento inconformado, respondo que
não quero acomodar dores que nunca acabam, não quero calmantes para confortar a
miséria e a fome que sempre existiu, o homem dos meus olhos, me diz, Calma,
professora, um pouco de água de melissa e tudo se ajeita, tenho vontade de lhe
dar uma mordida, paro de respirar, É tudo premeditado, você não vê, pergunto,
não me responde, seus olhos parecem que dizem outras coisas, outras vontades, Esqueci
o vinho, respondo que não quero ser a sua comida, mais uma mentira. Não é bem
uma mentira, é quase uma indecisão, Será que o meu corpo pode ser controlável,
tem vezes que me acho o lugar de todas as proibições, outras quero ser a
paragem de todas as solturas do atrevimento. Continuo desenterrando ossos
miseráveis da realidade inacabada e imperfeita que as pessoas envinagradas usam
para deitar o prumo nas vontades dos mansos.
A
estrada se mexe sob os meus pés, eles cansam, são poucas idas e muitas voltas,
tenho os pés machucados. As brincadeiras da estrada são de morrer.
A
reunião não começa.
Aceito
outro chimarrão, a água está morna, reclamo que o gosto parece com um prato de
arroz sem feijão, Vou aquecer mais água, volto ao abrigo
— Tudo bem, Samuel, é válido. Mas utópico.
Exige tempo para elaborar, refletir... não tenho esse tempo.
— É uma grande contradição, Abigail. Pedes
ações práticas dos outros, mas não queres conviver... — discursos vazios não
sobrevivem ao cotidiano que se reinventa sem limites, é preciso à práxis.
Abigail
é reconhecida pelos seus suspiros de impaciência
— Samuel, já parou para contar? É muita
criança... gurias, alguém viu minha bolsa? Não é possível, perdi de novo.
— É muita confusão na terça-feira. —
sentencia Lélia, despedaçando seu bolinho de batata recheado com carne, sempre
impecavelmente sóbria e séria. O cabelo Channel, sem demasias no vestir ou
pinturas no rosto. Não se permite voos fantásticos e imaginários há muito
tempo, está pronta para a parcialidade da paixão, como eu mesma sinto a
necessidade da invasão desordenada, a sede do afeto ardente, descuidado e
perfeito, o doce que seduz
— Só na terça-feira? — essa é a Cabayba,
sua origem é bancária, o sarcasmo parece confirmar que continua bancária com
seu iogurte de morango e granola. O que se diz dela: maluca. Sinto no seu olhar
o desprezo pelas ideias de todos, parece nascer todos os dias um pouquinho pior
— Abigail... — viro-me na direção daquela
voz inconfundível — ... o coletivo não deve parar na sua desenvolução, pois a
forma de existência do coletivo humano livre é o seu desenvolvimento.
É
o Marko, um professor recrutado entre o povo nômade, invasor como a cavalaria
dos cosacos
— Hahaha... o movimento coletivo deles é a
destruição, uma maçã podre e tudo se perde. — tive vontade de perguntar se a
reunião já havia iniciado
— Abigail, e qual o exemplo que
oferecemos? Parecemos predadores? Parecemos perdidas de um sentido que não seja
o da sobrevivência na selva? Perdemos a poesia? Parecemos constantemente
crescendo para baixo, feito pão-de-pobre? — tenho vontade de rir do olhar
confuso da Abigail, quase sinto dó, pão-de-pobre é mais conhecido como mandioca
ou aipim. Planta leitosa, rica em amido, largo emprego na alimentação, serve
para farinhas de mesa, mais é bom estar atenta, existem espécies venenosas.
Silêncio. Os chás, cafés e bolos continuam sendo engolidos
— Marko... — o pequeno professor se volta
na direção da Camila — e o que dizer das LV?
— O que é isso?
— Licença Vingança são licenças que não
precisamos usar, mas gozamos como desforra às colegas que se esbaldam em faltas
e omissões. O coletivo da doença...
— Façamos o mesmo, Camila. E aos poucos
deixamos de existir, insatisfeitas. Viramos reclamações, conversas vazias de
tangos e tragédias sobre o dia da aposentadoria: a inatividade será o começo da
nossa vida e o chá de boldo. Esse é um bom jeito de consentir-se uma das vítimas,
misericordioso consigo mesmo, pouco rigorosa no cumprimento com as obrigações.
A
água ferveu, encho a térmica enquanto o Marko é interrompido pela zombaria da
Cabayba que largou o copo com iogurte na mesa para aplaudir
— Coletivo, por aqui? Alguém sabe o que é
um coletivo? Coletivo humano livre? Marko pega mais leve, isso tudo é um
teatro.
O
refúgio do abrigo já teve tardes mais tranquilas.
_________________
Leia também:
Teatro Pedagógico 01 - A poesia da sobrevivênciaTeatro Pedagógico 03 - O livro que quero ler na eternidade?
Nenhum comentário:
Postar um comentário