quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Iogurte na mesa

Teatro Pedagógico 02
baitasar
Abigail entrou nervosa no abrigo, espichava e encolhia, ora o olho gordo, ora o olho vivo, ora o olho d’água, examinava e não enxergava, virava e revirava o nariz, procurava procurava e procurava, não achava, ninguém reparava ou fingiam que não notavam sua impaciência, só eu... não, para falar a verdade, nem eu me importava descrente deste mundo
—        Alguém viu minha bolsa... acabei de comprar... meu Jesus, me ajuda...
Camila foi a única que olhou Abigail com atenção e paciência, fechou seu armário e circulou o redondo dos olhos pelo abrigo, parecia incomodada, mas gostava de servir, ajudar, mitigar, tudo em nome da paz e do sossego
—        Não é aquela ali? — apontou para uma bolsa de couro falso, preta, com detalhes dourados, caída no chão, perdida entre sapatos de couro e lona
—        É! — abriu o sorriso, talvez para Camila, talvez à bolsa — O que vocês acham gurias, não é a minha cara?
Pôs a bolsa a tiracolo.
Olharam descuidadas para o rosto vermelho da Abigail e a bolsa falsa preta no tiracolo do colo. Grande para caber tudo e não encontrar nada, vazia de angústia ou cheia de solidão. Não agradeceu.
Comprou na feirinha do corredor. As mercadorias não variam muito das bolsas, blusas, roupas da intimidade: calcinha, sutiã (taça, meia-taça, tomara que caia), livros didáticos, histórias infantis e autoajuda. O pagamento com cheque pré-datado facilita a conveniência
—        Gurias! Hoje não tem reunião?
Pronto. Conseguiu a atenção das abrigadas, paramos para uma reunião que não queremos, mas parar é bom — Fica quieta, Abigail...
Saio desenganada para o pátio. Caminho desembrulhada das fantasias pedagógicas. Olho para os lados e o vejo sentado com seu chimarrão, falamos com os olhos, Preciso fugir das tentativas para acalmar minha consciência, cansei das orações purgativas, ele me responde, A fúria do pensamento inconformado, respondo que não quero acomodar dores que nunca acabam, não quero calmantes para confortar a miséria e a fome que sempre existiu, o homem dos meus olhos, me diz, Calma, professora, um pouco de água de melissa e tudo se ajeita, tenho vontade de lhe dar uma mordida, paro de respirar, É tudo premeditado, você não vê, pergunto, não me responde, seus olhos parecem que dizem outras coisas, outras vontades, Esqueci o vinho, respondo que não quero ser a sua comida, mais uma mentira. Não é bem uma mentira, é quase uma indecisão, Será que o meu corpo pode ser controlável, tem vezes que me acho o lugar de todas as proibições, outras quero ser a paragem de todas as solturas do atrevimento. Continuo desenterrando ossos miseráveis da realidade inacabada e imperfeita que as pessoas envinagradas usam para deitar o prumo nas vontades dos mansos.
A estrada se mexe sob os meus pés, eles cansam, são poucas idas e muitas voltas, tenho os pés machucados. As brincadeiras da estrada são de morrer.
A reunião não começa.
Aceito outro chimarrão, a água está morna, reclamo que o gosto parece com um prato de arroz sem feijão, Vou aquecer mais água, volto ao abrigo
—        Tudo bem, Samuel, é válido. Mas utópico. Exige tempo para elaborar, refletir... não tenho esse tempo.
—        É uma grande contradição, Abigail. Pedes ações práticas dos outros, mas não queres conviver... — discursos vazios não sobrevivem ao cotidiano que se reinventa sem limites, é preciso à práxis.
Abigail é reconhecida pelos seus suspiros de impaciência
—        Samuel, já parou para contar? É muita criança... gurias, alguém viu minha bolsa? Não é possível, perdi de novo.
—        É muita confusão na terça-feira. — sentencia Lélia, despedaçando seu bolinho de batata recheado com carne, sempre impecavelmente sóbria e séria. O cabelo Channel, sem demasias no vestir ou pinturas no rosto. Não se permite voos fantásticos e imaginários há muito tempo, está pronta para a parcialidade da paixão, como eu mesma sinto a necessidade da invasão desordenada, a sede do afeto ardente, descuidado e perfeito, o doce que seduz
—        Só na terça-feira? — essa é a Cabayba, sua origem é bancária, o sarcasmo parece confirmar que continua bancária com seu iogurte de morango e granola. O que se diz dela: maluca. Sinto no seu olhar o desprezo pelas ideias de todos, parece nascer todos os dias um pouquinho pior
—        Abigail... — viro-me na direção daquela voz inconfundível — ... o coletivo não deve parar na sua desenvolução, pois a forma de existência do coletivo humano livre é o seu desenvolvimento.
É o Marko, um professor recrutado entre o povo nômade, invasor como a cavalaria dos cosacos
—        Hahaha... o movimento coletivo deles é a destruição, uma maçã podre e tudo se perde. — tive vontade de perguntar se a reunião já havia iniciado
—        Abigail, e qual o exemplo que oferecemos? Parecemos predadores? Parecemos perdidas de um sentido que não seja o da sobrevivência na selva? Perdemos a poesia? Parecemos constantemente crescendo para baixo, feito pão-de-pobre? — tenho vontade de rir do olhar confuso da Abigail, quase sinto dó, pão-de-pobre é mais conhecido como mandioca ou aipim. Planta leitosa, rica em amido, largo emprego na alimentação, serve para farinhas de mesa, mais é bom estar atenta, existem espécies venenosas. Silêncio. Os chás, cafés e bolos continuam sendo engolidos
—        Marko... — o pequeno professor se volta na direção da Camila — e o que dizer das LV?
—        O que é isso?
—        Licença Vingança são licenças que não precisamos usar, mas gozamos como desforra às colegas que se esbaldam em faltas e omissões. O coletivo da doença...
—        Façamos o mesmo, Camila. E aos poucos deixamos de existir, insatisfeitas. Viramos reclamações, conversas vazias de tangos e tragédias sobre o dia da aposentadoria: a inatividade será o começo da nossa vida e o chá de boldo. Esse é um bom jeito de consentir-se uma das vítimas, misericordioso consigo mesmo, pouco rigorosa no cumprimento com as obrigações.
A água ferveu, encho a térmica enquanto o Marko é interrompido pela zombaria da Cabayba que largou o copo com iogurte na mesa para aplaudir
—        Coletivo, por aqui? Alguém sabe o que é um coletivo? Coletivo humano livre? Marko pega mais leve, isso tudo é um teatro.

O refúgio do abrigo já teve tardes mais tranquilas.
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Leia também:
Teatro Pedagógico 01 - A poesia da sobrevivência


Teatro Pedagógico 03 - O livro que quero ler na eternidade?

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