domingo, 8 de dezembro de 2013

IX – Mitologia dos Orixás: Iroco [79]

Iroco

Reginaldo Prandi


Iroco castiga a mãe que não lhe dá o filho prometido

No começo dos tempos, a primeira árvore plantada foi Iroco.
Iroco foi a primeira de todas as árvores, mais antiga que o mogno, o pé de obi e o algodoeiro. Na mais velha das árvores de Iroco, morava seu espírito. E o espírito de Iroco era capaz de muitas mágicas e magias. Iroco assombrava todo mundo, assim se divertia. A noite saía com uma tocha na mão, assustando os caçadores. Quando não tinha o que fazer, brincava com as pedras que guardava nos ocos de seu tronco. Fazia muitas mágicas, para o bem e para o mal. Todos temiam Iroco e seus poderes e quem o olhasse de frente enlouquecia até a morte.
Numa certa época, nenhuma das mulheres da aldeia engravidava. Já não havia crianças pequenas no povoado e todos estavam desesperados. Foi então que as mulheres tiveram a ideia de recorrer aos mágicos poderes de Irodo. Juntaram-se em círculo ao redor da árvore sagrada, tendo o cuidado de manter as costas voltadas para o tronco. Não ousavam olhar para a grande árvore face a face, pois os que olhavam Iroco de frente enlouqueciam e morriam. Suplicaram a Iroco, pediram a ele que lhes desse filhos. Ele quis logo saber o que teria em troca. As mulheres eram, em sua maioria esposas de lavradores e prometeram a Iroco milho, inhame, frutas, cabritos e carneiros. Cada uma prometia o que o marido tinha para dar. Uma das suplicantes, chamada Olurombi, era a mulher do entalhador e seu marido não tinha nada daquilo para oferecer. Olurombi não sabia o que fazer e, no desespero, prometeu dar a Iroco o primeiro filho que tivesse.
Nove meses depois a aldeia alegrou-se com o choro de muitos recém-nascidos. As jovens mães, felizes e gratas, foram levar a Iroco suas prendas. Em torno do tronco de Iroco depositaram suas oferendas. Assim Iroco recebeu milho, inhame, frutas, cabritos e carneiros. Olurombi contou toda a história ao marido, mas não pôde cumprir sua promessa. Ela e o marido apegaram-se demais ao menino prometido. No dia da oferenda, Olurombi ficou de longe, segurando nos braços trêmulos, temerosa, o filhinho tão querido.
E o tempo passou.
Olurombi mantinha a criança longe da árvore, e assim, o menino crescia forte e sadio. Mas, um belo dia, passava Olurombi pelas imediações do Iroco, entretida que estava, vindo do mercado, quando no meio da estrada, bem na sua frente, saltou o temível espírito da árvore. À apavorada mulher do entalhador disse Iroco: “Tu me prometeste o menino e não cumpriste a palavra dada. Transformo-te então num pássaro, para que vivas sempre aprisionada em minha copa”. E transformou Olurombi num pássaro e ele voou para a copa de Iroco para ali viver para sempre. Olurombi nunca voltou para casa, e o entalhador a procurou em vão por toda parte. Ele mantinha o menino em casa, longe de todos. Mas os que passavam perto da árvore ouviam sempre um pássaro cantar uma estranha cantiga sobre oferenda feita a Iroco.
Até que um dia, quando o artesão se aproximou dali, ele próprio escutou o tal pássaro, que cantava assim: “Uma prometeu milho e deu o milho, outra prometeu inhame e trouxe inhames, uma prometeu frutas e entregou as frutas, outra deu o cabrito e outra, o carneiro, sempre conforme a promessa que foi feita. Só quem prometeu a criança não cumpriu o prometido”.
Ouvindo o relato de uma história que julgava esquecida, o marido de Olurombi entendeu tudo imediatamente. Sim, só podia ser Olurombi, enfeitiçada por Iroco. Ele tinha que salvar sua mulher! Mas como, se amava tanto seu pequeno filho? Ele pensou e pensou e teve uma grande ideia. Foi à floresta, escolheu o mais belo lenho de Iroco, levou-o para casa e começou a entalhar. Da madeira entalhada fez uma cópia do rebento, o mais perfeito boneco que jamais havia esculpido. Fez o boneco com os doces traços do filho, sempre alegre, sempre sorridente. Depois poliu e pintou o boneco com esmero, preparando-o com a água perfumada das ervas sagradas. Vestiu a figura de pau com as melhores roupas do menino e a enfeitou com ricas joias de família e raros adornos. Quando pronto, ele levou o menino de pau a Iroco e o depositou aos pés da árvore sagrada. Iroco gostou muito do presente. Era o menino que ele tanto esperava! E o menino sorria sempre, uma imutável expressão de alegria. Iroco apreciou sobremaneira o fato de que o garoto jamais se assustava quando seus olhos se cruzavam. Não fugia dele como os demais mortais, não gritava de pavor nem lhe dava as costas, com medo de o olhar de frente. Iroco estava feliz. Embalando a criança, seu pequeno menino de pau, batia ritmadamente com os pés no solo e cantava animadamente. Tendo sido paga, enfim, a velha promessa, Iroco devolveu a Olurombi a forma de mulher. Aliviada e feliz, ela voltou para casa, voltou para o marido artesão e para o filho, já crescido e enfim livre da promessa.
Alguns dias depois, os três levaram para Iroco muitas oferendas. Levaram ebós de milho, inhame, frutas, cabritos e carneiros, laços de tecido de estampas coloridas para adornar o tronco da árvore. Eram presentes oferecidos por todos os membros da aldeia, felizes e contentes com o retorno de Olurombi. Até hoje todos levam oferendas a Iroco. Porque Iroco dá o que os devotos pedem. E todos dão para Iroco o prometido. 

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Leia também:

VIII – Mitologia dos Orixás: Ossaim [72]

X – Mitologia dos Orixás: Orixá Ocô [82]

Reginaldo Prandi, paulista de Potirendaba e professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo, é autor de três dezenas de livros. Pela editora Hucitec publicou Os candomblés de São Paulo, pela Edusp, Um sopro do Espírito, e pela Cosac Naify, Os príncipes do destino. Dele, a Companhia das Letras publicou também Segredos guardados: orixás na alma brasileira; Morte nos búzios; Ifá, o Adivinho; Xangô, o Trovão; Oxumarê, o Arco-Íris; Contos e lendas afro-brasileiros: a criação do mundo; Minha querida assombração; Jogo de escolhas e Feliz Aniversário.

Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás / Reginaldo Prandi; ilustrações de Pedro Rafael. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.


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