Teatro Pedagógico 04
baitasar
Está
faltando humildade para admitir que frustrei meus sonhos em uma humanidade
amorosa, solidária com o sofrimento, indignada com as injustiças. No máximo
consigo ficar indignada com as injustiças que sofro na própria pele. Convivemos
moldados por televisões, acostumados por rádios, desenhados por jornais,
esculpidos por revistas com caras e bocas, imbecilizados em homens e mulheres
egoístas hábeis ávidos, no uso das palavras asseadas depuradas, sem
amorosidade. Cuidamos muito pouco uns dos outros, de maneira desinteressada
afeiçoada cuidadosa, estamos descuidadas desapaixonadas indiferentes. Queremos
reconhecimento, o segundo da fama
— Marko, na faculdade, nem faz tanto tempo
assim, precisei ler Paulo Freire, é verdade, li porque necessitava, foi um dos
pensadores da educação que precisei ler, e lembro minha professora
questionando, Quem consegue evocar as necessárias qualidades do bom professor,
recordo que amorosidade me pegou de jeito. Todos na turma relacionavam o amor ao
romance, rosas vermelhas, mãos dadas, comportamento, responsabilidade, caras
bonitas e dessujadas, inteligentes, e me ocorreu, quando falamos do amor,
dificilmente, pensamos em caras sujas, deficiências, dificuldades, molecagens,
rebeldias, gritos berros empurrões...
Outro
silêncio no abrigo, Eliza não fez discurso, não faz discursos, mas é nela que as
crianças penduram seus afetos como argolas nas orelhas, se enfeitam com beijos
babados, abraços suados, beliscam apenas para saber se é de verdade
— Mas Eliza, é difícil olhar com amor para
um nariz com ranho, a boca desdentada, birrenta gritona mimada, tapas, os
cabelos dos piolhos, crianças jogadas no chão, os chutes, e o banho Eliza é uma
questão de higiene, cria o estado de bem-estar, têm dias que a sala de aula
cheira...
— Layla, esses são nossos desafios, muitos
são previsíveis, mas existem os acidentais inesperados repentinos, mas como eu
posso ser amorosa se já esqueci ou não entendi o que é ser criança?
— Isso é Rubem Alves! — pronto, falei. É
um autor que gostamos de ler, pelo menos algumas frases, nada muito comprido.
Sinto os olhares, resolvo continuar — Por que não enterramos o pé na poça
d’água? Não era bom? Por que sufocamos a nossa própria criança? Estamos velhas
demais?
— O problema é a dor nas costas!
Todas
sorriem da observação da Cabayba, eu também tenho dias insuportáveis com meus
cigarros
— Bobagem, a alma não sente dor nas
costas. Ela até pode estar ferida dolorida desencantada desvalorizada, mas não
são dores nas costas... são espasmos de decepção, lamentos e formigamentos por
que deixamos de fazer travessuras? Como posso deixar pular se não pulo mais?
Como permitir levantarem da cadeira se não levanto mais? Adoro o silêncio. Ah,
minhas dores de cabeça. — meus olhos fecham, um corpo sente amolecendo minhas
partes. Não sinto que tenho corpo. Falei demais: boca fechada não come mosca.
Procuro experimentar os pés contraindo os dedos, já não os encontro, deve estar
caminhando por aí, perdidos de mim, desistidos da minha humanidade.
O
abrigo silencioso parece esperar um desfecho dramático para os discursos. Eu,
da minha parte, queria estar encantada, por dentro, esperando uma filha,
brotando e florescendo afluída em mim, no balanço da maré, com novos sabores,
refletindo luz liberdade, esclarecendo a ignorância, fazendo desaparecer a
opressão e escravidão humana. Fico parada com a garrafa térmica nas mãos
Por
que me dei esta vida?
Sou
uma mulher frágil, oculta pela altura das árvores que eu mesma plantei. Não
consigo mais cegar, fazer de conta que não vi. O meu anda que anda pelo
desamparo largado, caminhos de sorveteiros virados sorvetes, quem sabe à morte
chegue, na será a primeira vez
— A reunião não vai começar?
— Cala a boca...
— Quanto antes começa mais antes
termina...
Desapareci.
Encontrei
o chimarrão no banco, na sombra da aroeira, esperando a água da térmica.
OProfessor retirou-se. Larguei o vasilhame térmico ao lado do chimarrão. Sentei
aliviada. Pensei na vontade que sentia de fumar. Não lembro o meu primeiro fumo
enrolado em folha de seda, mas vou lembrar do último. Acho que vou acabar
roendo todas as minhas unhas. Não quero engordar. Dizem que quem para de fumar engorda.
A
Lia está sentada em outro banco à sombra daquela imensa aroeira, estamos
imersas naquela sombra refrescante. A Lia faz algum comentário que respondo,
não lembro nem um ou outro, submergi.
Aproximam-se
a Lélia e a Layla, sentam no banco que apoia as pernas da Lia. Escuto o que não
quero ouvir — A Ághata já voltou da biometria? — a Lélia come um bolinho de
batata recheado com carne, olho o bolinho, me parece uma delícia. Lembro os
bolinhos de batata recheados com pequeninos camarões que mamãe cozinhava na
Sexta-feira Santa. E o molho refogado com azeite, vinagre, pimenta, cebola,
louro, tomate, coentro, que o papai usava para temperar a traíra. Adorava o
molho. Ficava atraída pelo peixe, mas tinha que ouvir tantas recomendações
avisos alertas, que o prazer era substituído pelo medo, Mastiga bem, tem muitas
espinhas, O seu avô quase se foi por causa de uma traíra, se salvou com miolo
de pão, alguns tapas nas costas, e vinho, muito vinho.
Foi
uma delícia ser criança.
Acendo
o fogo de mais um cigarro.
Fritura
gordura doçura nicotina alcatrão, uns asfixiados, outras fritas ou açucaradas,
O que nos leva para esses vícios de morrer pela boca com artérias obstruídas,
pulmões sufocados, não sei responder. Olho o rastro de fumaça que sobe monta
goza desaparece. Desejo e necessidade. Volto ao meu silêncio. O cigarro não me
anima, abrevia alguma coisa
— Acho que não.
A
Lia está colorida, suas roupas são alegres, ela é o próprio contentamento e
satisfação. Faz questão de mostrar que não se perdeu da sua menina. Caminha com
prazer, sobe e desce sorrindo
— O que aconteceu com a Ághata?
— Não foi com ela... os gêmeos: um com
catapora, outro com caxumba.
A
última mordida no bolinho, outra observação de preocupação
— Meu Deus! Essa biometria promete...
— E o que não me venham com as turmas da
Ághata, sempre os mesmos tapando os furos! — não vi que o Eduardo estava em pé,
afundado na sombra. O rosto avermelhado, as sardas, o nariz, um pimentão
maduro. Um bufão com o nariz vegetal
— E as férias?
— Mas que férias, Eduardo?
— Comecei a contagem regressiva.
Ficamos
pasmas, boquiabertas
— Mas, Eduardo... estamos em agosto! — ele
não se intimida com nossa incredulidade, naquele veranico de agosto
— Eu sei, eu sei, eu sei, mas depois que o
agosto passa parece que o tempo voa.
Não
me afogo na fumaça graças aos anos de prática com o cigarro. Lembro minha vó
Bem-vinda, Minha neta, esqueça o tempo, tem coisa que você não vai entender,
viva da vida o que puder vivê, o tempo não existe, o que existe é a vida que
você tem
— Quando escuto o sinal da sirene,
avisando aos gritos mais um começo de tarde, sinto um desânimo, uma vontade de
não ir para o pátio, encontrar os alunos para mais um tarde de gritos e
ofensas, mal-entendidos, súplicas ignoradas, ameaças. Engolindo engolindo, enganado,
sendo engolido. Envenenando-se aos poucos.
A
Layla adere com entusiasmo de uma náufraga nas profundezas geladas do Eduardo.
Precisa dizer e diz, enquanto prende os cabelos na sua piranha plástica, um
rabo de cavalo
— Eu descobri que sou alérgica com as
crianças...
— Engraçado, eu também.
— ... fico toda empipocada só de ouvir o
zunido das vozinhas afiadas, alastradas nas paredes, no chão.
Não
quero deixar o chimarrão e a térmica sozinhas, espero OProfessor, mas quero
outro cigarro... não, eu não preciso, tenho que terminar esse
— Eu adoro abelhas, mas odeio as formigas.
Ontem tive um crise de pânico. No recreio sai para o pátio. Elas estavam lá,
correndo pelo chão, subindo minhas pernas, agarrando meus braços, invadindo meu
corpo, olhos, ouvidos e boca, meu cérebro... suas anteninhas, as mãos inúteis,
não existem fugas para os peixes fora do aquário ou final feliz, uma batalha
perdida.
— Professora: quero fazer xixi, quero
fazer cocô, eu to com sede, ele me bateu, professora ele me mostrou o dedo do
meio.
Olho
para os lados, não tenho por onde escapar silenciosa. Fico sentada. Encurralada
pelas próprias escolhas, me negando cegar aos pouquinhos, uma sujeita normal
num caminho que parece não ter onde ir, até que as pedras se movem umas sobre
as outras.
Hoje,
já são doze anos, daquele primeiro beijo. Maldito ou bendito, não sei. Mas
continuo enfeitiçada. Adoro teus beijos, às vezes, os evito para conseguir
aguentar tantas despedidas. Sempre os quero. Perdão ficar atrapalhando tua
vida. Queria tanto te escutar. Tenho uma saudade súbita, incontrolável vontade
de te ver, resmungar bem baixinho, como se estivesse provocando, confessando,
Só há um modo de sairmos de nós: é amando alguém. A lua estará linda, cheia
tanto quanto o meu coração de amor. A saudade é como uma estrada longa,
enquanto salvamos o mundo não vemos o que se passa ao nosso lado, quando nos
viramos tudo já aconteceu.
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