Teatro Pedagógico 10
baitasar
Nestes
tempos de esquecimentos, comemorações de golpes contra a democracia, palavras obscenas de amor às torturas e
desaparecimentos, eu quero comemorar os meus 50 anos de amor histórico. Entrei em março de 64,
com 7 anos completos. Nunca mais sai da escola. Outras ficaram desaparecidas
para sempre no universo em expansão. Estrelas esfriando sem corpos. O big bang
enrugando o tempo e expandindo o espaço. Subi todos os degraus, um a um. Nas grandes empresas da
educação privada seria alguma coisa parecida como ter vindo lá debaixo e
vencido. Ralando os olhos, as mãos, os sapatos e a paciência. Corrigindo,
explicando, conversando, sorrindo, algumas vezes chorando, amando, lendo e
escrevendo. Acho que ainda estou em expansão como o universo. Expandindo e
esfriando até o colapso.
Não
vi nem senti o uso da palmatória, mas vi sem compreender os coturnos nos
corredores; ouvi os murmúrios de professores, pequenos resmungos. E tenho a
pálida lembrança de um ou outro que não retornou. Nunca foi dito nada. Hoje, eu
sei, para muitos, eles desapareceram; para alguns, sumiram; e para outros,
fugiram. Quando? Para onde? Nunca soube. Essas são algumas das tatuagens que
tenho sob a pele. Lembranças infantis de um tempo duro e cinzento. Decidi que
vou tatuar seus nomes e rostos sobre a pele. Quem sabe alguém os reconhece em
mim? Não quero esquecer.
Argumentos
teóricos são apenas sonhos? Direitos e desejos veementes são homens e mulheres
que não se acovardaram? Sonhamos apenas com o que podemos acreditar? Mesmo sem
entender? Nunca sonhei com Deus. É por que não acredito? Mas tenho muitos
sonhos com a escola. Quem não submeteu à realidade adequada do relógio suas vontades inquietas? São pesadelos? Gramáticas, mapas, datas, heróis, bolas,
tabuadas, células, indivíduos sem prazer no coletivo e fugindo dos compromissos
solidários, sem tempo, silenciosos, condições de trabalho ruins, pó de giz,
salários indignos, 60 horas, 25 anos, sala de aula, planos, avaliações, boletim
escolar, sábados, pares zoológico, pais, mães, reuniões. Há falta de sonhos
possíveis? O que dizer da fé e dos sonhos impossíveis?
Quero
ser uma mulher voadora normal
— Colegas!
Voltamos
nossa atenção para o Aguinaldo. Levo o cantinho da unha do meu polegar direito
à boca, sou uma roedora. Tento ser alguém normal sentada na fórmica, que não
voa, chamando uma a uma, olhando cadernos com cópias do quadro de giz. Dando
uma estrelinha, duas ou três, talvez. Deve existir alguma razão para colecionar
certos e errados.
Nenhuma
de nós quer transformar crianças em bonecos. Nem acredito que todas devam ser
progressistas ou modernistas, ou pós-modernistas, ou, ou, ou, mas precisamos
fazer o nosso trabalho da melhor maneira que sabemos, honestamente, sem
fingimentos, com ética.
Minha
atenção voa e pousa, sai e volta, se a minha intenção não está aqui, estou
sendo desonesta? Sinto vontade de sair e fumar, tragar-me. Têm dias em que me
sinto terrivelmente apaixonada, em outros sou um castelo na beira do mar. Quem
guarda um beijo meu e vem me salvar, quem
— Gostaria de trazer à reunião uma questão
do nosso cotidiano. Os atrasos. O início do turno está muito difícil...
Tento
me concentrar nos atrasos, mas meus segredos continuam apaixonados, colados em
meu corpo
— Não vejo maiores problemas. É simples,
basta que alguém da equipe diretiva leve os alunos à sala de aula.
A
bondade da Acemira. Depois, será a primeira reclamando a falta de apoio e
abandono, Onde está o SOE? Onde está o SSE?, esquecida das suas boas intenções.
Memória curta, cobertor curto.
Sinto
meus músculos levemente amassados, doloridos, uma deliciosa preguiça deixa meu corpo sair de mim, ser outra que não reconheço
— Acemira, pegar a turma e fazer o quê?
— Dar aula, Aguinaldo. Afinal, somos todas
professoras.
Sonho
com as mãos mágicas que me enfeitiçam as vontades, fico sem as minhas vontades, tiras de mim o que nem eu mesma sabia que queria dar. Teus olhos me fazem mostrar o que nem mesmo sabia que queria mostrar, tua boca me faz pedir o que não sabia que queria pedir
— Até seria possível, mas temos nossas
tarefas no cotidiano da escola. E junto aos atrasos temos os afastamentos por
saúde. A soma desta conta torna inviável o início do turno. Já tivemos que
iniciar o turno da tarde sem sete ou oito professores.
Silêncio.
Fico
em silêncio, também. Essa discussão não me interessa. Não falto, não chego
atrasada. Não quero ser diretora da escola. Quero casar contigo. Reivindicar
minha presença no teu mundo. Minha saúde não é de ferro e minha eternidade
amadurece, enquanto vou me expandindo vou me esfriando. Quero tua boca, desejo
teu beijo doce. Estou presa no cativeiro do cotidiano e das tuas escolhas
— Puxa, Aguinaldo! Não dá pra exigir
professor substituto?
Um
suspiro invisível. Eu pareço invisível para você, meu amor
— Ofélia, também é possível, mas não
acredito nesta solução.
Um
suspiro de espanto
— Por que?
Ele
para, a resposta parece que hesita, não quer sair e se comprometer
— Ela inviabiliza nossos salários.
Silêncio
— É?
— Acredito que sim.
— E a corrupção?
— Também.
Resisto
com todas as minhas forças para não ir procurar o professor do corredor. Assim
como entrou, ele saiu. Em silêncio. Ele, como eu, também se cala. Abre seu
armário e procura por algo que não está lá. Está aqui. Sou eu. Volta muito
silenciosamente. Quase triste. Eu já sei da sua tristeza, Estou cansado da
repetição, falta imaginação
— Lélia, o raciocínio é simples. Se eu e
você precisamos de outro professor para dividirmos as mesmas tarefas da nossa
incumbência, deveríamos saber que esse novo colega entra na divisão do bolo que
nos paga, ou finge que nos paga, ou diz que nos paga. Adianta sim, reclamar.
Apontar erros mal-intencionados ou ingênuos, mas precisamos fazer a parte que
nos cabe. Progressistas ou não, precisamos fazer nosso trabalho bem feito, o
nosso melhor jeito.
Novo
silêncio e já estou em teus braços. Corri como louca, mas cheguei. O que me
resta são meus sonhos. Invento um modo de reinventar a dor, penso na
possibilidade impossível, sei que te amo, duvido do teu amor
— Aguinaldo, isso é conversinha do patrão.
Você parece querendo enfiar o medo no ânimo da gente, o rabo entre nossas
pernas.
— É isso mesmo, você não falava assim
antes da eleição. O que aconteceu? Quem mudou?
Estamos
perto, mas não sentimos o que vemos. A realidade dos que estão fora
— Não sei quem mudou mais. O fantástico é
que tudo sempre muda. Todos os dias, a cada instante. Esse é o nosso caráter
humano, a certeza da renovação. O trágico é que não mudamos a escola. O que
posso dizer de mim mesmo? Descobri que sai do meu mundo particular da sala de
aula, me deparei com o mundo da escola, necessidades administrativas,
pedagógicas humanas. Preciso realizar as tarefas às quais me propus de
maneira crítica, engajado no presente e no futuro. Não vejo ninguém impedindo
meu trabalho.
Murmúrios
— E as esquerdistas vão se calar? Quem ouve o Aguinaldo e cala, concorda que não queremos trabalhar. Na verdade, o que não
se diz é que está cada vez mais difícil e complicado ensinar. Não querem
aprender.
Não
chego nem perto de um computador fora da escola. Meu peito incha com teu grito
em silêncio. Eu mesma já morri muitas mortes. Apesar de tudo, o eterno
recomeço. Sou teimosa, mas tem limite essa teimosia. Paro de te pensar.
Pergunto-me se somos duas repetições de erros antigos, tentativas sem
convicção. Bobagem, eu tenho convicção no meu amor. Em minha ideia de vida não
deixo de me reviver e te conquistar. Meus sonhos me queimam enquanto fico
jogada de costas na cama, olhando meu teto limpo e asseado. Suando, gemendo,
escavoucando
— Mas aprender o quê, Jacobina? Aprender
que têm o direito de escutar calados para repetir o que ouvem? A palavra
reforça um poder, o nosso. E uma servidão, a deles. — o Marko e suas perguntas
invagina na rotina da escola a necessidade da concepção do mundo além do
próprio umbigo
— Como assim aprender o quê, Marko? Para
começo dessa conversa, não consigo um mínimo de diálogo sereno sem as
interrupções dos gritos, muitas vezes, obscenos. E não são os meus gritos. Eles
não exercem o direito de escutar calados. Nem escutam!
Continuo
por aqui, sofrendo. A vontade de fumar lateja em minhas têmporas. Meus dedos
segurando um cigarro acesso, os pequenos rolos da fumação subindo suavemente.
Dispersos. Quero me perder dentro do teu abraço apertado
— Quem consegue fazer a chamada sem crises
de gritos e pedidos de silêncio? O começo já é insuportável.
— Mas Ofélia, a lista da chamada dos
alunos não pode ser feita no final da aula? — a Lia fez a pergunta num tom
muito baixo, parecendo mais uma reflexão para ela mesma que uma pergunta com
intenção deliberada
— Os cadernos da frequência são documentos
oficiais que precisam credibilidade. Por isso, precisam ser preenchidos com
cuidado. Por exemplo, podem determinar a reprovação por infrequência. Esse
mesmo controle da frequência é usado para sabermos se os alunos cadastrados no
programa Bolsa Família estão vindo à escola, ou não.
Uma
intervenção técnica da Camila. Precisamos de anotações técnicas, mas
acompanhadas de adendos apaixonados, éticos, críticos e inteligentes, para,
quem sabe, um dia emergir um mundo diferente e possível, onde a palavra
libertará o silêncio imposto e exigido da garganta
— Talvez precisemos um pouquinho mais de
sorte.
— Não podemos contar com a sorte, arroubos
de magia, explosões de inspiração no nosso cotidiano. Precisamos interferir com
o pleno uso da nossa razão no conjunto das ações propostas.
Uma
delícia, um cansaço. Sinto que é possível compor a letra e a música que será
a nossa vida. Uma vida nova para diante
— Isso, Arthur. A nossa escola. A escola
do povo. Pode estar longe, pode estar perto, não apenas para ver, mas para
fazer com ética e competência interessada, comprometimento e alegria, silêncios
e cantorias, avanços e saudades. Uma, duas, três, dezenas, centenas, muita e
muitas escolas com a cara dos eu povo...
— Cara suja, ranhosa, banguela e...
— Cuidado! Pense bem o que vai dizer.
Essa
sou eu. Não pude evitar. A Acemira tem razão, o seu olhar me fez enrubescer
— E pobre.
Fiquei
desprotegida. Fiz o que condeno, pensei pelo outro. Coloquei os meus
pensamentos na cabeça da Acemira. Mereci a chinelada. Fui salva pelo Marko, ele
continuou conversando, afinal, era isso que fazíamos
— A escola dialética. A escola sem mágoas
ou caras de nojo, assustadas. A escola que não derrota, mas transforma. A
escola dos fatos e da poesia. Das etnias. A escola histórica que não para e não
trai. A escola dos amores da nossa vida. Exagerada na resistência à intolerância e ao mau humor. A escola das diferenças. A escola da Pátria imensa.
Silêncio.
O
Marko aquietou a própria voz, sabia que a reação aos sonhos possíveis não
espera o tempo de dormir, muito menos, o tempo de acordar. Estava pronto para
escutar
— Marko, essa escola eu quero conhecer!
Pronto,
foi rápida no gatilho. Não foi ingênua. Eis Acemira, correndo, ombro a ombro.
Sempre em defesa da família e dos bons costumes na pedagogia sem contradições,
a intenção de habilitar e amestrar. A beleza insustentável do silêncio. O poder
da palavra usado para decompor as inteligências em notas que aprovam ou
reprovam. Libertam ou aprisionam
— Professora, feche os olhos. Imagine
outro jeito, outro feitio de educar. O desajeitamento lúdico, os jogos, as
brincadeiras nos aproximam da beleza de estarmos juntos. Aprendendo.
Consideramos que a criança deve brincar, mas estamos convencidos que para o
divertimento deve haver um lugar separado. Acredite, raros são os momentos,
dentro do nosso fazer pedagógico, que nos permitem tanta intensidade que as
circunstâncias dos jogos e brincadeiras. Uma entrega que dificilmente haverá em
outras atividades.
Nada
impede que Neruda ou Saramago apareçam na matemática, num ambiente lúdico e
cúmplice pelo encontro da minha vida com a vida do outro, esse é o encanto da
vida, encontros.
— Bobagem, pura bobagem! Minha mensagem
educativa vem da minha formação acadêmica, bem específica. Fui treinada para
ensinar os conteúdos disciplinares do currículo. Sei o que faço, não preciso
ficar declamando versinhos. Os jovens é que não sabem o que estão fazendo na
escola.
É
verdade, os jovens não querem fazer parte deste pensamento cartesiano, um vírus
herdado de muitas gerações, mas nós acreditamos que existe cura. Continuamos
usando a vacina dos verbos, equações, datas, mapas e heróis, para curar quem
não está doente.
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