terça-feira, 25 de março de 2014

Como curamos quem não está doente?

Teatro Pedagógico 10
baitasar
Nestes tempos de esquecimentos, comemorações de golpes contra a democracia, palavras obscenas de amor às torturas e desaparecimentos, eu quero comemorar os meus 50 anos de amor histórico. Entrei em março de 64, com 7 anos completos. Nunca mais sai da escola. Outras ficaram desaparecidas para sempre no universo em expansão. Estrelas esfriando sem corpos. O big bang enrugando o tempo e expandindo o espaço. Subi todos os degraus, um a um. Nas grandes empresas da educação privada seria alguma coisa parecida como ter vindo lá debaixo e vencido. Ralando os olhos, as mãos, os sapatos e a paciência. Corrigindo, explicando, conversando, sorrindo, algumas vezes chorando, amando, lendo e escrevendo. Acho que ainda estou em expansão como o universo. Expandindo e esfriando até o colapso.
Não vi nem senti o uso da palmatória, mas vi sem compreender os coturnos nos corredores; ouvi os murmúrios de professores, pequenos resmungos. E tenho a pálida lembrança de um ou outro que não retornou. Nunca foi dito nada. Hoje, eu sei, para muitos, eles desapareceram; para alguns, sumiram; e para outros, fugiram. Quando? Para onde? Nunca soube. Essas são algumas das tatuagens que tenho sob a pele. Lembranças infantis de um tempo duro e cinzento. Decidi que vou tatuar seus nomes e rostos sobre a pele. Quem sabe alguém os reconhece em mim? Não quero esquecer.
Argumentos teóricos são apenas sonhos? Direitos e desejos veementes são homens e mulheres que não se acovardaram? Sonhamos apenas com o que podemos acreditar? Mesmo sem entender? Nunca sonhei com Deus. É por que não acredito? Mas tenho muitos sonhos com a escola. Quem não submeteu à realidade adequada do relógio suas vontades inquietas? São pesadelos? Gramáticas, mapas, datas, heróis, bolas, tabuadas, células, indivíduos sem prazer no coletivo e fugindo dos compromissos solidários, sem tempo, silenciosos, condições de trabalho ruins, pó de giz, salários indignos, 60 horas, 25 anos, sala de aula, planos, avaliações, boletim escolar, sábados, pares zoológico, pais, mães, reuniões. Há falta de sonhos possíveis? O que dizer da fé e dos sonhos impossíveis?
Quero ser uma mulher voadora normal
—        Colegas!
Voltamos nossa atenção para o Aguinaldo. Levo o cantinho da unha do meu polegar direito à boca, sou uma roedora. Tento ser alguém normal sentada na fórmica, que não voa, chamando uma a uma, olhando cadernos com cópias do quadro de giz. Dando uma estrelinha, duas ou três, talvez. Deve existir alguma razão para colecionar certos e errados.
Nenhuma de nós quer transformar crianças em bonecos. Nem acredito que todas devam ser progressistas ou modernistas, ou pós-modernistas, ou, ou, ou, mas precisamos fazer o nosso trabalho da melhor maneira que sabemos, honestamente, sem fingimentos, com ética.
Minha atenção voa e pousa, sai e volta, se a minha intenção não está aqui, estou sendo desonesta? Sinto vontade de sair e fumar, tragar-me. Têm dias em que me sinto terrivelmente apaixonada, em outros sou um castelo na beira do mar. Quem guarda um beijo meu e vem me salvar, quem
—        Gostaria de trazer à reunião uma questão do nosso cotidiano. Os atrasos. O início do turno está muito difícil...
Tento me concentrar nos atrasos, mas meus segredos continuam apaixonados, colados em meu corpo
—        Não vejo maiores problemas. É simples, basta que alguém da equipe diretiva leve os alunos à sala de aula.
A bondade da Acemira. Depois, será a primeira reclamando a falta de apoio e abandono, Onde está o SOE? Onde está o SSE?, esquecida das suas boas intenções. Memória curta, cobertor curto.
Sinto meus músculos levemente amassados, doloridos, uma deliciosa preguiça deixa meu corpo sair de mim, ser outra que não reconheço
—        Acemira, pegar a turma e fazer o quê?
—        Dar aula, Aguinaldo. Afinal, somos todas professoras.
Sonho com as mãos mágicas que me enfeitiçam as vontades, fico sem as minhas vontades, tiras de mim o que nem eu mesma sabia que queria dar. Teus olhos me fazem mostrar o que nem mesmo sabia que queria mostrar, tua boca me faz pedir o que não sabia que queria pedir
—        Até seria possível, mas temos nossas tarefas no cotidiano da escola. E junto aos atrasos temos os afastamentos por saúde. A soma desta conta torna inviável o início do turno. Já tivemos que iniciar o turno da tarde sem sete ou oito professores.
Silêncio.
Fico em silêncio, também. Essa discussão não me interessa. Não falto, não chego atrasada. Não quero ser diretora da escola. Quero casar contigo. Reivindicar minha presença no teu mundo. Minha saúde não é de ferro e minha eternidade amadurece, enquanto vou me expandindo vou me esfriando. Quero tua boca, desejo teu beijo doce. Estou presa no cativeiro do cotidiano e das tuas escolhas
—        Puxa, Aguinaldo! Não dá pra exigir professor substituto?
Um suspiro invisível. Eu pareço invisível para você, meu amor
—        Ofélia, também é possível, mas não acredito nesta solução.
Um suspiro de espanto
—        Por que?
Ele para, a resposta parece que hesita, não quer sair e se comprometer
—        Ela inviabiliza nossos salários.
Silêncio
—        É?
—        Acredito que sim.
—        E a corrupção?
—        Também.
Resisto com todas as minhas forças para não ir procurar o professor do corredor. Assim como entrou, ele saiu. Em silêncio. Ele, como eu, também se cala. Abre seu armário e procura por algo que não está lá. Está aqui. Sou eu. Volta muito silenciosamente. Quase triste. Eu já sei da sua tristeza, Estou cansado da repetição, falta imaginação
—        Lélia, o raciocínio é simples. Se eu e você precisamos de outro professor para dividirmos as mesmas tarefas da nossa incumbência, deveríamos saber que esse novo colega entra na divisão do bolo que nos paga, ou finge que nos paga, ou diz que nos paga. Adianta sim, reclamar. Apontar erros mal-intencionados ou ingênuos, mas precisamos fazer a parte que nos cabe. Progressistas ou não, precisamos fazer nosso trabalho bem feito, o nosso melhor jeito.
Novo silêncio e já estou em teus braços. Corri como louca, mas cheguei. O que me resta são meus sonhos. Invento um modo de reinventar a dor, penso na possibilidade impossível, sei que te amo, duvido do teu amor
—        Aguinaldo, isso é conversinha do patrão. Você parece querendo enfiar o medo no ânimo da gente, o rabo entre nossas pernas.
—        É isso mesmo, você não falava assim antes da eleição. O que aconteceu? Quem mudou?
Estamos perto, mas não sentimos o que vemos. A realidade dos que estão fora
—        Não sei quem mudou mais. O fantástico é que tudo sempre muda. Todos os dias, a cada instante. Esse é o nosso caráter humano, a certeza da renovação. O trágico é que não mudamos a escola. O que posso dizer de mim mesmo? Descobri que sai do meu mundo particular da sala de aula, me deparei com o mundo da escola, necessidades administrativas, pedagógicas humanas. Preciso realizar as tarefas às quais me propus de maneira crítica, engajado no presente e no futuro. Não vejo ninguém impedindo meu trabalho.
Murmúrios
—        E as esquerdistas vão se calar? Quem ouve o Aguinaldo e cala, concorda que não queremos trabalhar. Na verdade, o que não se diz é que está cada vez mais difícil e complicado ensinar. Não querem aprender.
Não chego nem perto de um computador fora da escola. Meu peito incha com teu grito em silêncio. Eu mesma já morri muitas mortes. Apesar de tudo, o eterno recomeço. Sou teimosa, mas tem limite essa teimosia. Paro de te pensar. Pergunto-me se somos duas repetições de erros antigos, tentativas sem convicção. Bobagem, eu tenho convicção no meu amor. Em minha ideia de vida não deixo de me reviver e te conquistar. Meus sonhos me queimam enquanto fico jogada de costas na cama, olhando meu teto limpo e asseado. Suando, gemendo, escavoucando
—        Mas aprender o quê, Jacobina? Aprender que têm o direito de escutar calados para repetir o que ouvem? A palavra reforça um poder, o nosso. E uma servidão, a deles. — o Marko e suas perguntas invagina na rotina da escola a necessidade da concepção do mundo além do próprio umbigo
—        Como assim aprender o quê, Marko? Para começo dessa conversa, não consigo um mínimo de diálogo sereno sem as interrupções dos gritos, muitas vezes, obscenos. E não são os meus gritos. Eles não exercem o direito de escutar calados. Nem escutam!
Continuo por aqui, sofrendo. A vontade de fumar lateja em minhas têmporas. Meus dedos segurando um cigarro acesso, os pequenos rolos da fumação subindo suavemente. Dispersos. Quero me perder dentro do teu abraço apertado
—        Quem consegue fazer a chamada sem crises de gritos e pedidos de silêncio? O começo já é insuportável.
—        Mas Ofélia, a lista da chamada dos alunos não pode ser feita no final da aula? — a Lia fez a pergunta num tom muito baixo, parecendo mais uma reflexão para ela mesma que uma pergunta com intenção deliberada
—        Os cadernos da frequência são documentos oficiais que precisam credibilidade. Por isso, precisam ser preenchidos com cuidado. Por exemplo, podem determinar a reprovação por infrequência. Esse mesmo controle da frequência é usado para sabermos se os alunos cadastrados no programa Bolsa Família estão vindo à escola, ou não.
Uma intervenção técnica da Camila. Precisamos de anotações técnicas, mas acompanhadas de adendos apaixonados, éticos, críticos e inteligentes, para, quem sabe, um dia emergir um mundo diferente e possível, onde a palavra libertará o silêncio imposto e exigido da garganta
—        Talvez precisemos um pouquinho mais de sorte.
—        Não podemos contar com a sorte, arroubos de magia, explosões de inspiração no nosso cotidiano. Precisamos interferir com o pleno uso da nossa razão no conjunto das ações propostas.
Uma delícia, um cansaço. Sinto que é possível compor a letra e a música que será a nossa vida. Uma vida nova para diante
—        Isso, Arthur. A nossa escola. A escola do povo. Pode estar longe, pode estar perto, não apenas para ver, mas para fazer com ética e competência interessada, comprometimento e alegria, silêncios e cantorias, avanços e saudades. Uma, duas, três, dezenas, centenas, muita e muitas escolas com a cara dos eu povo...
—        Cara suja, ranhosa, banguela e...
—        Cuidado! Pense bem o que vai dizer.
Essa sou eu. Não pude evitar. A Acemira tem razão, o seu olhar me fez enrubescer
—        E pobre.
Fiquei desprotegida. Fiz o que condeno, pensei pelo outro. Coloquei os meus pensamentos na cabeça da Acemira. Mereci a chinelada. Fui salva pelo Marko, ele continuou conversando, afinal, era isso que fazíamos
—        A escola dialética. A escola sem mágoas ou caras de nojo, assustadas. A escola que não derrota, mas transforma. A escola dos fatos e da poesia. Das etnias. A escola histórica que não para e não trai. A escola dos amores da nossa vida. Exagerada na resistência à intolerância e ao mau humor. A escola das diferenças. A escola da Pátria imensa.
Silêncio.
O Marko aquietou a própria voz, sabia que a reação aos sonhos possíveis não espera o tempo de dormir, muito menos, o tempo de acordar. Estava pronto para escutar
—        Marko, essa escola eu quero conhecer!
Pronto, foi rápida no gatilho. Não foi ingênua. Eis Acemira, correndo, ombro a ombro. Sempre em defesa da família e dos bons costumes na pedagogia sem contradições, a intenção de habilitar e amestrar. A beleza insustentável do silêncio. O poder da palavra usado para decompor as inteligências em notas que aprovam ou reprovam. Libertam ou aprisionam
—        Professora, feche os olhos. Imagine outro jeito, outro feitio de educar. O desajeitamento lúdico, os jogos, as brincadeiras nos aproximam da beleza de estarmos juntos. Aprendendo. Consideramos que a criança deve brincar, mas estamos convencidos que para o divertimento deve haver um lugar separado. Acredite, raros são os momentos, dentro do nosso fazer pedagógico, que nos permitem tanta intensidade que as circunstâncias dos jogos e brincadeiras. Uma entrega que dificilmente haverá em outras atividades.
Nada impede que Neruda ou Saramago apareçam na matemática, num ambiente lúdico e cúmplice pelo encontro da minha vida com a vida do outro, esse é o encanto da vida, encontros.
—        Bobagem, pura bobagem! Minha mensagem educativa vem da minha formação acadêmica, bem específica. Fui treinada para ensinar os conteúdos disciplinares do currículo. Sei o que faço, não preciso ficar declamando versinhos. Os jovens é que não sabem o que estão fazendo na escola.
É verdade, os jovens não querem fazer parte deste pensamento cartesiano, um vírus herdado de muitas gerações, mas nós acreditamos que existe cura. Continuamos usando a vacina dos verbos, equações, datas, mapas e heróis, para curar quem não está doente.
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