O cadáver
do Calçacurta – 3ª edição
revisada
baitasar
Esse
é o seu cadáver, General. Não acreditava na própria morte, mas ela chegou.
Sempre chega. Tudo acaba, General. Até os desmandos. Eu sei, ordens são ordens,
mas cá entre nós, General, algumas ordens que o senhor diz que apenas cumpriu,
nunca existiram. Invencionice da sua vontade de abuso. Gostava de abrir feridas
novas e reabrir as velhas. As cicatrizes ainda não cicatrizaram, essas demoram
mais. No fim de tudo, todos se vão, inclusive a dor dos vivos que continuam
esperando. Não tenho certeza, nem quero lhe faltar com o respeito em hora tão
solene, mas não deixar fechar as feridas dos vivos esperando esclarecimento, explicação, menção,
qualquer informação do desaparecido, foi safadeza
— Oficiais são cavalheiros, não mentem.
— Eu sei, senhor. Por isso, fez silêncio.
Não podia contar a verdade, ou não quis, vá saber o que se passava na sua
cabeça. Não quis a desonra da mentira. Então, é como se não tivesse
acontecido. Morreu negando. Lembro das suas palavras inflamadas, explosivas,
ameaçadoras
— Não se mexe na fera com vara curta!
Não
pedi, mas fui testemunha de tudo aquilo, até que o Calçacurta foi deitado
abaixo. Não acreditava que poderia ser derrotado, mas subestimou a ferida
dolorida. Em carne viva. A sangria do passado precisava ter um descanso.
Esqueceu que nem sempre o tempo apaga tudo, tem vez que ele corrói por dentro.
Não adianta espalhar as cinzas nem afogar a memória, cortar dedos, arrancar línguas e vísceras. Não se enterram sonhos
para sempre, mas é possível imaginar os mesmos pesadelos
— O senhor ia gostar dessa parte dos
pesadelos, eu tenho certeza. O lodo onde enfiamos as botas é um abismo que não
afunda, por isso, talvez o tempo de outro general retorne. O seu acabou.
Mas
ele conseguiu. Queria morrer dormindo de pijama. E conseguiu
— Né, General?
Morreu
tranquilo com o dever cumprido. Não gritou como os passageiros das suas
prisões. Eram berros e queixas para todos os gostos. É isso, morreu dormindo.
Mas lambuzou de sangue irmão a memória de outros generais que morreram lutando,
frente a frente, no campo heroico das batalhas
— O senhor nunca seria o primeiro homem no
campo sagrado da luta e jamais o último soldado que sairia.
— Soldado!
— Sim senhor, general!
Silêncio.
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo. Amém. Estamos aqui para implorarmos que a Tua bondade recaia sobre todos
nós, acolhe a alma desse homem, seja justo, Senhor.
Mais
um que o senhor conseguiu desaparecer e que assombrava
— E as pedras!
— No lugar, senhor!
Nem
precisava revisar o serviço feito, mas sempre fez questão. Afinal, é o olho do
dono que engorda o boi
— Já abriram?
— Não tem mais nada, tá limpo! Esse não sobe!
— Joguem!
Eu
sei, é difícil. Ainda descrê do acontecido, mas nesse ataúde não sou eu. Essa é
a sua carcaça inconveniente, depositada imóvel. Não tem mais jeito, e parece
que nem luto oficial o senhor ganha. Mas se serve de consolo, sempre vai surgir
algum pacóvio para gritar que o senhor foi um herói.
Li
nos jornais, lá no assoalho da página, pequenas notas do seu passamento. Muitos
dos colegas de farda lhe querem ver deitado de costas, sob a lápide da
história, outros anseiam pegar seu estandarte para sair em marcha pelas ruas em nome do inferno das torturas, afogamentos, esquartejamentos. A tortura em
nome de Deus, da Família e do Capital. Bons tempos aqueles, podíamos matar em
nome de um Paraíso que não queríamos destruído pelos comunistas. Às mentiras
basta saber contar
Permite, como a Virgem Maria, abençoada
Mãe de Deus...
— E agora, senhor!
— Vamos voltar.
Eu
sou a última voz que escuta, a força se desmancha dessa cobertura de carne
condecorada com as cicatrizes da adoração. Quem não lhe conhece que acredite
que o senhor foi um santo. Isso mesmo, o seu entusiasmo com as comunistas se
desarranja como a cera das velas que, por certo, algum distraído ou viúva irá
acender. Morto sem vela não é morto, é alma que vai ficar penando na escuridão.
Tem que ter vela para iluminar o caminho da subida. Ou descida. E o senhor,
sobe ou desce? É, tem que ter a vela. Azar o meu, odeio velas. Tenho asma. A
sua doença era outra
Os Apóstolos e os Santos de todos os
dias que viveram na Tua amizade...
— Bom trabalho, rapazes.
— Senhor! Obrigado, senhor!
É,
sou a sua sentinela. Mas sempre posso abandonar tudo. Não recebi ordens para
assumir esse posto. Não foi preciso nenhuma ordem. É melhor assim, se eu
atravessar a rua e sumir, não dá nada. O único que não pode mais renunciar é o
General. A vida livrou-se do dominador. Existem outros, eu sei
— Soldado! Não dá para ir vivendo e ver no
que vai dar!
No
seu caso, eu e o senhor sabemos no que deu, né? Muita porrada e gente
desaparecida até das eternidades
— Senhor, mas precisa ter um sentido!
Perderam
o controle do General quando lhe deixaram solto para fazer o que bem
entendesse. Era preciso quebrar o espírito dos subversivos, então o senhor
aumentou a pressão do terror. Não percebeu que um vício cada vez mais aprimorado
e esquisito penetrava calmamente no vazio da sua alma, perdida da dignidade,
esmagada e destruída pelo prazer de provocar o medo nas pessoas. Afogadas,
extenuadas, cadavéricas, mas resistindo perder a alma, pensamentos ou vontade.
Sejamos contemplados com a Vida eterna e
cantemos em Teu louvor...
Eu
acredito que dessa vida só levamos a nostalgia das saudades com a nossa
ausência. Isso mesmo, General, no nosso caso, perceba que não estou lhe
deixando sozinho, carregamos para o túmulo apenas o pesar dos bêbados que ficam.
Não ganhamos nem o respeito das putas. Essas mentem, mas já sabemos quanto
custam os elogios antes de usarmos os serviços. Fingem que precisam e querem nossos
carinhos e beijos, nos deixam entrar e aguardam até sairmos. O sorriso é sempre
o mesmo, já decorei. Antes de abrir a porta, agarram o preço concordado sobre a
cômoda, embaixo do abajur sujo e empoeirado. Não tem adeusinho nem acenos, só a
saudade do General gritando, encostado no balcão
— Essa rodada é por minha conta. Pode
servir!
Todos
levantavam e saudavam o seu coração libertário.
A Ti, Deus Pai todo poderoso, na unidade
do Espírito Santo...
Os
arruaceiros comunistas apostam que nem isso o senhor vai levar para o túmulo.
Logo o senhor, adorava arranjar as coisas segundo às suas vontades, babava com
desprezo sobre os destroços em suas mãos, macilentos, inertes, fantasmas
obedientes.
Toda honra e toda glória, agora e para
sempre. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Vai em paz e que o
senhor os acompanhe de perto.
Não
é um ótimo dia, mas é um bom dia. Afinal, tem dia para tudo, até para morrer.
Isso, General. Todos têm o dia de morrer. Esse é o seu dia. A vida desistiu da
sua vida. Eu mesmo não desisti do senhor por dever de ofício. O General e os
seus colegas esperam que eu abandone o meu posto. Não me conhecem. Nem eu me
conheço, mas a farda nos mostra aonde ir. O fardamento e a vida militar é que
podem me julgar.
Não
sei o que seria de mim longe do alojamento dos soldados. Sempre recebi missão
do meu tamanho. Aprendi a ser homem dentro das paredes do quartel. Lavar,
passar a ferro, cozinhar e limpar os banheiros é código de comportamento que
carrego para o resto da vida. A disciplina e o respeito, daqueles que poderão
morrer ao seu lado, são tudo nas histórias de um homem guerreiro. Uma
associação para proteger nossa pátria. Nosso modo de viver. Tenho muito orgulho
dessa missão: lutar, defender e obedecer. Uns ajudando os outros, todos por um
e por todos
— Morrer se preciso for.
Hoje,
sou o guardião da cerimônia de despedida do General Calçacurta. Está chegando a
hora do seu enterramento. Um dever da minha missão como seu motorista. Repito, não
recebi nenhuma ordem. Fui voluntário. Chamei o Jacaré para me ajudar nessa
última missão. Não sinto alegria nem tristeza. Espero o passamento dessas
últimas horas, como sempre esperei o seu retorno das missões, muita paciência e
sem maiores sobressaltos. Deixo para o além-túmulo do comandante os traumas e
as insônias com fantasmas sem fisionomia, vazios, sem mortalha ou um corpo
caduco. Afinal das contas, todo general deve assumir as lesões da dor moral
daqueles que matam sob suas ordens. E sofrer quando algum companheiro morre por
seus descuidos e vaidade.
O
soldado apenas confia que o seu general é o mocinho, o camarada por quem morre
lutando contra o inimigo perverso, vazio de inteligência, imbecil. As estrelas
apoiadas em seus ombros atestam o caráter divino da sua infalibilidade.
Cavaleiros das terras.
Sempre
gostei de acreditar nisso.
Quando
me sonhava era um desses cavaleiros, gentil e suave, pronto para salvar vidas
matando-as. Consegui distinguir meus delírios da ficção, não cheguei a tanto.
Fiquei pelo posto de cabo. Logo, não sou um soldadinho raso qualquer, mereço
respeito. Isso nos deixa parecido, eu tenho em quem mandar.
Não
precisei matar nenhum inimigo conhecido ou desconhecido. Ainda hoje, me
pergunto se eu mataria. Acho que sim, em uma guerra é matar ou morrer. Guerras
justas. Aniquilar ou salvar. Rezava em silêncio todas as noites.
Eu quero a paz, eu vos suplico a paz, eu
vos desejo a paz.
Como
já lhe disse General, como cabo tenho autoridade de mando sobre o Jacaré. Esse
é boa gente, mas precisa do comando. Não toma decisão estratégica. Volta e meia
é preciso ensinar o rapaz a pensar. Cumprir ordens ele sabe, e muito bem. Não
adianta lutar ou negar as qualidades que recebemos no berço. Tem uns que nascem
para mandar, a maioria nasce para obedecer.
Aprendi
com o senhor que existe um tempo de reparos, pequenos oásis de calmaria, e
outro de sangrias. As pessoas cantam sobre liberdades que não compreendem e não
existem. Não sabem como foi dura a guerra contra os subversivos comunistas.
Gente cheia de ódio. Não tenho certeza, mas acho que comiam criancinhas,
gritavam que Deus não existia. Quem esses vagabundos pensam que são? Acham que
são melhores que nós? Somos todos farinha do mesmo saco.
Não
podemos diminuir o nível do alerta. Guerra é guerra, fria ou não. Somos
admoestados por vivermos embrutecidos no seio da igreja. Acusam os padres de
comerem criancinhas. Pura maldade. Assim, como não se pode julgar a armada de
guerreiros pelo desertor, não se julga a igreja pelos padres tarados.
Esses
comunistas são merda.
— Chupa-racha! Comunista e merda para mim
é a mesma coisa!
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Leia também:
O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / II - General Calçacurta
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