domingo, 16 de março de 2014

02 - General Calçacurta

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada
baitasar
Se o General não fosse um cadáver levantava para urrar contra os comunistas. Diga-se em defesa do homem que está ali deitado, caso ele tenha alguma possibilidade de defesa, que eu também não simpatizo com esses comunistas. O General me explicou, entre gritos e palavras obscenas, eles queriam fechar o Congresso Nacional, acabar com toda e qualquer liberdade no nosso País, enfim, eles queriam implantar uma ditadura sanguinária, com torturas e fuzilamentos, esses russos não gostam de serem contrariados
—        Chupa-racha, se é para ser feito que seja feito por nós! — e nós fizemos, né General?
Eu sempre gostei dos americanos gringos mais que dos russos. Greta Garbo, Marilyn, Rita, John Wayne, esse matou mais índios e bandidos que todo o exército americano, Tom Cruise, se a missão é impossível chama o top gun Tom, o Tarzan, SuperMan, Batman, Mulher Maravilha. Ah, meu bom Deus, são tantos heróis maravilhosos para amar, eles me fazem sonhar com um mundo melhor. A casa deles parece que é sempre minha. Não posso esquecer o Rambo Stallone, ele fez sozinho aquilo que o US Army não conseguiu: venceu a guerra do Vietnã. Matou muito vietnamita comunista. Temos as corridas de carro sempre velozes e furiosas. Filmes inesquecíveis que me fazem querer ter nascido de outra barriga, uma barriga gringa. Acho que assim ficaria mais perto do tapete vermelho da Academy Awards, dos dinossauros, dos animais animados por consciências humanas. Chego a pensar que nos faltou uma Guerra de Secessão vencida pelo Sul

—        Chupa-racha, você está delirando. Isso é só cinema.
Acho que, por tudo isso, ia ser mais fácil pegar em armas contra os russos do que contra os irmãos ianques. Eles têm alma de campeão e uma rebeldia indomável. Os russos são uma realidade de mentira e monstros. Não sei, mas acho que tenho mais boa vontade de matar russos que americanos. Na minha mira não ia estar um ianque mas a Jessica Biel, como ia ser difícil apertar o gatilho e disparar. A consciência do bem se junta de muitas histórias e palavra soltas da garganta que os olhos veem ou imaginam que enxergam. Até que o cheiro da fumaça de óleo diesel de tanques que esconde a esteira de aço nos sobem como se fossemos paralelepípedos.
Não acho que o General ficou mais decidido por um lado que pelo outro de repente. O senhor me contou que fez um Curso de Aperfeiçoamento e Outros Métodos de Interrogatório, na terra dos ianques. Foi quando se decidiu em que lado estava
—        Chupa-racha!
—        Continuo aqui, General!
Espero que o senhor não comece a cheirar mal. Sei que ninguém acaba consigo mesmo se estiver com a cabeça no lugar. Não queria ser eu a lhe contar, mas tem gente morrendo de rir
—        Deixa estarem como estão. As guerras não acabam. Sempre teremos algum motivo para lutar. Somos grandes filhos-da-puta como seres humanos. A raça humana não é um poço de bondade. Os mais fodidos gostam de te diminuir, se não sou nada, você é menos ainda.
O exército e os inimigos são os mesmos. Precisamos dos generais. Eles não perdem a memória dos desacertos. Não acho que isso seja uma sina, mas a tristeza de lidar com gente que  não aprende que o preço da felicidade é a eterna vigilância. Cuidar e castigar. É a luta do bem contra o mal que nunca termina. É a cruz que carregamos. A incompreensão de muitos com a nossa missão de proteger e matar se preciso for. É o nosso jeito de sair em defesa da nossa aparência de acostumar à vida. Não jogamos bosta, lançamos pólvora. O exército e os inimigos são os mesmos, a diferença é que os bandidos fogem ao perigo iminente, nós somos feitos de outro barro, fincamos pé e não fugimos, morremos se preciso for
—        Chupa-racha!
—        Ainda aqui, General!
—        Vamos fazer um brinde.
—        O senhor não pode beber.
—        Foda-se, soldadinho de merda! Erga um brinde como estou mandando!
—        Vamos brindar o quê?
—        Viva o nosso jeito de viver!
Isso mesmo, General.
Viva.
Eu também o acompanho nesse brinde. Viva Greta, Rita, Marilyn e Jessica. O que o senhor está procurando? Eu sei, eu sei, estão faltando os castiçais, as velas e a cruz. Ainda não tive tempo para providenciar o embelezamento da sua vigília de corpo presente. E já sem alma
—        Bobagem, chupa-racha.
Bobagem nada, General. O senhor merece, mas acho que a sua alma já estava perdida faz muito tempo. Lá atrás, quando o senhor se decidiu pelo caminho das confissões e revelações pelo sofrimento. Tudo em nome da nossa segurança
—        Bobagem, chupa-racha. Ninguém entrega nada se não é convencido que é melhor abrir o bico. Não existe interrogador santo.
—        General...
—        O que foi chupa-racha?
—        Quanto tempo o senhor levou para  se acostumar com as torturas?
—        Foi amor à primeira vista. Sentia que havia nascido pra tudo aquilo. O homem certo, no lugar certo, no tempo certo. Viva a Revolução! Tinha vez que ficava sem voz.
Ouço zumbidos e boatos que acusam o senhor de assassino. Vejo nisso um pouco de exagero, mesmo que um ou outro comunista subversivo continue desaparecido. Dois ou três erros não podem desconstruir a imagem do homem justo
—        Chupa-racha! Tem safado que escapou e vive escondido. Borrando nas calças. E entrou nessa conta dos desaparecidos. Fugiram por decisão própria.
Entendo, são desertores da luta armada
—        Não tinham culhões. Crianças brincando de guerra. O problema para eles é que os soldadinhos não eram de chumbo. Foram precipitados, não precisavam desertar. E sabe como é, né? Longe de casa é tudo mais complicado.
Eu da minha parte, desde que fui convocado para os seus serviços, nunca vi defunto falecido. Mas não posso evitar lembrar que o senhor sempre foi louco pelas marxistas
—        Uma feijoada completa. Elas têm fogo, chupa-racha. São umas cadelinhas cabeludas de domar.
—        É mesmo, General?
—        Às vezes, era preciso engrossar. Elas combatiam o tempo inteiro. Então, era preciso mandar tirar toda roupa e colocar no pau de arara. Gostava dessas aulas de esclarecimento para os jovens, tudo ao vivo.
Acredito que a lenda, em volta do General, foi recheada de inverdades ditas pelos hóspedes do calabouço. Gente anônima. Eu acho que nunca lhe entenderam. O senhor procurava sua Iara, mulher linda, pele alva e cabelos cor de ouro, que vive nos lagos, nos rios e nos igarapés. Pena que o General nunca procurou com o coração. Usou o pau como um porrete enquanto comia com duas mordidas toda a maçã. Saia dos interrogatórios alisando o bigodinho, resmungando sobre maçãs e serpentes venenosas
—        Um homem de bem tem precisão de tirar do mundo esses comunistas subversivos, o outro dever é esgotar as esquerdistas na cama. Quando saia do interrogatório com o bigode esfoliado alguma cabritinha ficava reclamando de assadura. Reclamavam das porradas e dos carinhos. Tempos bons.
Muita lenda, General. Não houve tantas que justificasse tanto carnaval. Foi mais guerra de dizer quem podia mais que o outro. Pelo bem da minha consciência, nunca matei nas suas ordenanças enraivecidas e descontroladas. Minha missão foi levar e trazer o General das suas caçadas. O senhor teve a sabedoria e a prudência de matar apenas o indispensável às suas necessidades. O diabo é que acusam o senhor de matar por gosto. Os boatos sobre a volta do General não param. Têm os que rezavam por sua morte e os que não acreditam que o senhor morreu. O telefone não para de tocar, se eu não tivesse tanta coisa para providenciar contava algumas histórias
—        E por que não conta?
—        Posso contar a história do Curupira? Lembra, General?
—        Não lembro bem, mas desembucha!
Certa vez, já tinha tempo essa correria atrás dos comunistas, aconteceu do General enfrentar o Curupira. Foram atrás do senhor para delatarem que o guri tinha os cabelos vermelhos, o corpo coberto de pelos e os pés voltados para trás. Um monstro! Foram lhe contar que o moleque não tolerava estragos na mata e os nossos planos de abrir estrada na floresta corria perigo. Foi o que bastou. O guri parecia bom guerrilheiro e um inimigo terrível. O pequenino diabo vermelho não queria sair da mata. Assim que o General soube do guri se enfiou nos matos, gritando
—        Vim te pegar, vermelho!
Pelo visto, o senhor lembra
—        Cada detalhe, continua... continua...
Os relatos e detalhamentos desta guerrilha estão soterrados por um culto secreto. As histórias foram silenciadas pelo som das metralhadoras. As trilhas alargadas pelos facões sumiram. O tal quri apareceu e sumiu. Virou lenda. Folclore. Nas cidades ainda se fala nas safadezas do Curupira, mas se faz sigilo das diabruras do General. Os índios encontraram um esqueleto que eles dizem ser do Curupira. Foi enterrado sem os pés. Uns juram que é o Curupira, outros afirmam que sem os pés virados para trás não se pode afirmar nada. No fim de tudo, o General voltou da excursão com uma vontade danada de baixar o cacete. Demorei a lhe reconhecer
—        Chupa-racha, estávamos em guerra!
—        Com quem, senhor?
—        Os comunistas esquerdistas queriam mudar tudo! Queriam atear fogo no campo! Logo no campo, onde todos viviam e vivem muito bem acolhidos. Carrapatos!
—        Liberdade para falar, General?
—        Fale! Parece que chegou o tempo do poste mijar no cachorro...
—        Sinceramente, nunca vi razão para tanto.
—        Chupa-racha! Cuidado! Tu tá perturbado?
Jamais duvidei que a boca fechada fosse o caminho da salvação da minha lavoura. Dirigir sem trocar mais palavras que o indispensável. Jamais olhar pelo retrovisor. Sem pressas ou atrasos os horários foram cumpridos e as missões acabaram para o senhor. Eu fiquei à deriva de mim mesmo, acovardado de descobrir o que sou ou o que fui. O senhor, General, tocou no meu destino. Não há resgate enquanto afundo no profundo mangal. A lama me gruda os pés desde que aceitei conduzir seu carro de passeios secretos.
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Leia também:
O cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 01 - General Calçacurta

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 03 – General Calçacurta

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