O Cadáver
do Calçacurta – 3ª edição
revisada
baitasar
Se
o General não fosse um cadáver levantava para urrar contra os comunistas.
Diga-se em defesa do homem que está ali deitado, caso ele tenha alguma
possibilidade de defesa, que eu também não simpatizo com esses comunistas. O
General me explicou, entre gritos e palavras obscenas, eles queriam fechar o
Congresso Nacional, acabar com toda e qualquer liberdade no nosso País, enfim,
eles queriam implantar uma ditadura sanguinária, com torturas e fuzilamentos,
esses russos não gostam de serem contrariados
— Chupa-racha, se é para ser feito que
seja feito por nós! — e nós fizemos, né General?
Eu
sempre gostei dos americanos gringos mais que dos russos. Greta Garbo, Marilyn,
Rita, John Wayne, esse matou mais índios e bandidos que todo o exército
americano, Tom Cruise, se a missão é impossível chama o top gun Tom, o Tarzan,
SuperMan, Batman, Mulher Maravilha. Ah, meu bom Deus, são tantos heróis
maravilhosos para amar, eles me fazem sonhar com um mundo melhor. A casa deles
parece que é sempre minha. Não posso esquecer o Rambo Stallone, ele fez sozinho
aquilo que o US Army não conseguiu: venceu a guerra do Vietnã. Matou muito
vietnamita comunista. Temos as corridas de carro sempre velozes e furiosas.
Filmes inesquecíveis que me fazem querer ter nascido de outra barriga, uma barriga
gringa. Acho que assim ficaria mais perto do tapete vermelho da Academy Awards,
dos dinossauros, dos animais animados por consciências humanas. Chego a pensar
que nos faltou uma Guerra de Secessão vencida pelo Sul
— Chupa-racha, você está delirando. Isso é
só cinema.
Acho
que, por tudo isso, ia ser mais fácil pegar em armas contra os russos do que
contra os irmãos ianques. Eles têm alma de campeão e uma rebeldia indomável. Os russos são uma realidade de mentira e monstros. Não
sei, mas acho que tenho mais boa vontade de matar russos que americanos. Na minha
mira não ia estar um ianque mas a Jessica Biel, como ia ser difícil apertar o
gatilho e disparar. A consciência do bem se junta de muitas histórias e palavra
soltas da garganta que os olhos veem ou imaginam que enxergam. Até que o cheiro da fumaça de óleo diesel de tanques que esconde a esteira de aço nos sobem como se fossemos paralelepípedos.
Não
acho que o General ficou mais decidido por um lado que pelo outro de repente. O senhor me contou que fez um Curso de Aperfeiçoamento e Outros Métodos de Interrogatório,
na terra dos ianques. Foi quando se decidiu em que lado estava
— Chupa-racha!
— Continuo aqui, General!
Espero
que o senhor não comece a cheirar mal. Sei que ninguém acaba consigo mesmo se
estiver com a cabeça no lugar. Não queria ser eu a lhe contar, mas tem gente
morrendo de rir
— Deixa estarem como estão. As guerras não acabam. Sempre teremos algum motivo para lutar. Somos grandes
filhos-da-puta como seres humanos. A raça humana não é um poço de bondade. Os
mais fodidos gostam de te diminuir, se não sou nada, você é menos ainda.
O
exército e os inimigos são os mesmos. Precisamos dos generais. Eles não perdem
a memória dos desacertos. Não acho que isso seja uma sina, mas a tristeza de
lidar com gente que não aprende que o
preço da felicidade é a eterna vigilância. Cuidar e castigar. É a luta do bem
contra o mal que nunca termina. É a cruz que carregamos. A incompreensão de
muitos com a nossa missão de proteger e matar se preciso for. É o nosso jeito
de sair em defesa da nossa aparência de acostumar à vida. Não jogamos bosta,
lançamos pólvora. O exército e os inimigos são os mesmos, a diferença é que os
bandidos fogem ao perigo iminente, nós somos feitos de outro barro, fincamos pé
e não fugimos, morremos se preciso for
— Chupa-racha!
— Ainda aqui, General!
— Vamos fazer um brinde.
— O senhor não pode beber.
— Foda-se, soldadinho de merda! Erga um
brinde como estou mandando!
— Vamos brindar o quê?
— Viva o nosso jeito de viver!
Isso
mesmo, General.
Viva.
Eu
também o acompanho nesse brinde. Viva Greta, Rita, Marilyn e Jessica. O que o
senhor está procurando? Eu sei, eu sei, estão faltando os castiçais, as velas e
a cruz. Ainda não tive tempo para providenciar o embelezamento da sua vigília
de corpo presente. E já sem alma
— Bobagem, chupa-racha.
Bobagem
nada, General. O senhor merece, mas acho que a sua alma já estava perdida faz
muito tempo. Lá atrás, quando o senhor se decidiu pelo caminho das confissões e
revelações pelo sofrimento. Tudo em nome da nossa segurança
— Bobagem, chupa-racha. Ninguém entrega
nada se não é convencido que é melhor abrir o bico. Não existe interrogador
santo.
— General...
— O que foi chupa-racha?
— Quanto tempo o senhor levou para se acostumar com as torturas?
— Foi amor à primeira vista. Sentia que
havia nascido pra tudo aquilo. O homem certo, no lugar certo, no tempo certo.
Viva a Revolução! Tinha vez que ficava sem voz.
Ouço
zumbidos e boatos que acusam o senhor de assassino. Vejo nisso um pouco de
exagero, mesmo que um ou outro comunista subversivo continue desaparecido. Dois
ou três erros não podem desconstruir a imagem do homem justo
— Chupa-racha! Tem safado que escapou e
vive escondido. Borrando nas calças. E entrou nessa conta dos desaparecidos. Fugiram
por decisão própria.
Entendo,
são desertores da luta armada
— Não tinham culhões. Crianças brincando
de guerra. O problema para eles é que os soldadinhos não eram de chumbo. Foram
precipitados, não precisavam desertar. E sabe como é, né? Longe de casa é tudo
mais complicado.
Eu
da minha parte, desde que fui convocado para os seus serviços, nunca vi defunto
falecido. Mas não posso evitar lembrar que o senhor sempre foi louco pelas
marxistas
— Uma feijoada completa. Elas têm fogo,
chupa-racha. São umas cadelinhas cabeludas de domar.
— É mesmo, General?
— Às vezes, era preciso engrossar. Elas combatiam
o tempo inteiro. Então, era preciso mandar tirar toda roupa e colocar no pau de
arara. Gostava dessas aulas de esclarecimento para os jovens, tudo ao vivo.
Acredito
que a lenda, em volta do General, foi recheada de inverdades ditas pelos
hóspedes do calabouço. Gente anônima. Eu acho que nunca lhe entenderam. O
senhor procurava sua Iara, mulher linda, pele alva e cabelos cor de ouro, que
vive nos lagos, nos rios e nos igarapés. Pena que o General nunca procurou com
o coração. Usou o pau como um porrete enquanto comia com duas mordidas toda a
maçã. Saia dos interrogatórios alisando o bigodinho, resmungando sobre maçãs e
serpentes venenosas
— Um homem de bem tem precisão de tirar do
mundo esses comunistas subversivos, o outro dever é esgotar as esquerdistas na
cama. Quando saia do interrogatório com o bigode esfoliado alguma cabritinha
ficava reclamando de assadura. Reclamavam das porradas e dos carinhos. Tempos
bons.
Muita
lenda, General. Não houve tantas que justificasse tanto carnaval. Foi mais
guerra de dizer quem podia mais que o outro. Pelo bem da minha consciência,
nunca matei nas suas ordenanças enraivecidas e descontroladas. Minha missão foi
levar e trazer o General das suas caçadas. O senhor teve a sabedoria e a
prudência de matar apenas o indispensável às suas necessidades. O diabo é que
acusam o senhor de matar por gosto. Os boatos sobre a volta do General não
param. Têm os que rezavam por sua morte e os que não acreditam que o senhor
morreu. O telefone não para de tocar, se eu não tivesse tanta coisa para providenciar
contava algumas histórias
— E por que não conta?
— Posso contar a história do Curupira?
Lembra, General?
— Não lembro bem, mas desembucha!
Certa
vez, já tinha tempo essa correria atrás dos comunistas, aconteceu do General
enfrentar o Curupira. Foram atrás do senhor para delatarem que o guri tinha os
cabelos vermelhos, o corpo coberto de pelos e os pés voltados para trás. Um
monstro! Foram lhe contar que o moleque não tolerava estragos na mata e os
nossos planos de abrir estrada na floresta corria perigo. Foi o que bastou. O
guri parecia bom guerrilheiro e um inimigo terrível. O pequenino diabo vermelho
não queria sair da mata. Assim que o General soube do guri se enfiou nos matos,
gritando
— Vim te pegar, vermelho!
Pelo
visto, o senhor lembra
— Cada detalhe, continua... continua...
Os
relatos e detalhamentos desta guerrilha estão soterrados por um culto secreto.
As histórias foram silenciadas pelo som das metralhadoras. As trilhas alargadas
pelos facões sumiram. O tal quri apareceu e sumiu. Virou lenda. Folclore. Nas
cidades ainda se fala nas safadezas do Curupira, mas se faz sigilo das
diabruras do General. Os índios encontraram um esqueleto que eles dizem ser do
Curupira. Foi enterrado sem os pés. Uns juram que é o Curupira, outros afirmam
que sem os pés virados para trás não se pode afirmar nada. No fim de tudo, o
General voltou da excursão com uma vontade danada de baixar o cacete. Demorei a
lhe reconhecer
— Chupa-racha, estávamos em guerra!
— Com quem, senhor?
— Os comunistas esquerdistas queriam mudar
tudo! Queriam atear fogo no campo! Logo no campo, onde todos viviam e vivem
muito bem acolhidos. Carrapatos!
— Liberdade para falar, General?
— Fale! Parece que chegou o tempo do poste
mijar no cachorro...
— Sinceramente, nunca vi razão para tanto.
— Chupa-racha! Cuidado! Tu tá perturbado?
Jamais
duvidei que a boca fechada fosse o caminho da salvação da minha lavoura.
Dirigir sem trocar mais palavras que o indispensável. Jamais olhar pelo
retrovisor. Sem pressas ou atrasos os horários foram cumpridos e as missões
acabaram para o senhor. Eu fiquei à deriva de mim mesmo, acovardado de
descobrir o que sou ou o que fui. O senhor, General, tocou no meu destino. Não
há resgate enquanto afundo no profundo mangal. A lama me gruda os pés desde que
aceitei conduzir seu carro de passeios secretos.
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O cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 01 - General Calçacurta
O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 03 – General Calçacurta
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