sábado, 29 de março de 2014

histórias davóinha: A cavalaria está saindo! 06cp

casarão canela preta


A cavalaria está saindo! 
Ensaio 06cp – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar




o redemoinho da vida é incontrolável, rompe resistências. tanto pode acagaçar bravos como acabaçar covardes. encanta-se nas encruzilhadas com as oferendas, trouxas e carregos. não faz perguntas nem procura respeito ou submissão. a sua fome come todos, é uma fome sem tamanho. a vida é assim, um descontrole 

arrumei o passo à passo e entrei com o pé direito na empresa. afinal, toda ajuda sempre é bem-vinda. gosto de ter a ajuda dos amuletos e simpatias, benzedeiras e benzeduras, mais as ervas na prevenção e cura das doenças. e para os esconde-esconde da vida tenho a proteção da quantidade sem conta das novidades que acontece, mas que já tinha acontecido. já era sabido. vivam os orixás! avoinha gostava de avisar, Os doutô não credita nisso, inté ficá difice entendê. Eles nunca foi pretu.

o tiuzin batata ao meu lado. o rodamoinho me atraindo como o novo contratado temporário da Viação Anônima. o cobrador das passagens. era o fim da vida de fartura com a miséria. tinha um emprego de respeito. minha primeira missão de importância fora do casarão Canela Preta. começava o turbilhão dos ventos contra e a favor, uma tarefa de gente grande

ainda não havia aprendido que nessas horas a prudência é um consenso

naquela madrugada, durante o caminho até a garagem da empresa dos ônibus, o tiuzin batata enunciava suas últimas recomendações. sussurrava pequenos conselhos, perguntei se ele estava arrependido, Preocupado, sobrinho... só preocupado.

alguns passos em silêncio e mais recomendações, avisos que achava importante. as lembranças lhe traziam outros aconselhamentos e mais preocupações. queria ter todas as certezas de não estar me levando para uma luta de morte, caminhava temendo o caminho à sua direita e o outro à sua esquerda, Moleque, trabalha certinho... dá conta da féria do dia... cuida o troco, se precisá contá de novo, é só contá, até ficá com certeza... no fim tem as conta do dinheiro e da roleta, elas tem qui chegá junta, pode até sobrá, mais se faltá dinheiro vai saí do bolso do moleque, até a conta fechá... se trabalhá direitinho, logo, logo, o moleque recebe os benefício do patrão.

O tiuzin pode botá confiança.

O tiuzin sabe... eu sei...

na primeira semana, fiquei na reserva. entrava na falta de algum colega cobrador das passagens. o reservista precisa ficar no alcance do largador. um sujeito que organiza as saídas dos ônibus e das parelhas que vão fazer o serviço de transportar as pessoas. ele tem uma planilha, um telefone e uma cara de poucos amigos. mandou, está mandado, João Torto!

Pronto, chefe...

Pega o 69 e faz a rota do Paulão... acabou de quebrar. O Fumacinha vai ao poleiro, o poleiro vocês já devem ter adivinhado que é o meu lugar de cobrador das passagens, minha pequena torrezinha. um lugar para controlar as entradas e saídas, e claro, cobrar as passagens

Já to embarcando... Moleque!... Você mesmo... soldado no quartel quer trabalho, esse é pra nóis! Qué?

Já to indo!

o coração subiu pela boca enquanto corria atrás do joão torto. o saquinho com o troco numa das mãos, a guia de controle na outra. o joão abriu a porta do 69 e subimos. o largador subiu pediu a guia e anotou o número do último passageiro na roleta. deu-me um último olhar que deve ter sido para me encorajar, mas me pareceu um adeus. não fez nenhuma piada obscena, e aquele, Podem ir, me soou muito sério e medíocre

Tudo bem, moleque?

Tudo bem, João...

A cavalaria está saindo!


gritou o torto

depois da primeira viagem a afobação diminuiu, o troco ficou mais fácil de calcular. acostumei com o poleiro. quase sobrava tempo para olhar às ruas com suas casas e pessoas desconhecidas ficando para trás. um passado que podia ver de longe, desaparecendo. um acontecido de desconhecidos visto de perto e deixados ignorados pelo caminho. continuariam anônimos. havia tanto para ser visto do poleiro: pessoas, ruas, esquinas, carros, buracos, curvas, freios, lugares por onde só passamos... nunca descemos

meus novos heróis eram grandes. bebiam. falavam aos gritos. tinham sempre uma piada suja e indecente escorregando no canto da boca. a barriga crescendo, engravidando da cerveja. a bunda sumindo. já perceberam? o motorista tem muita barriga e pouca bunda, quase nenhuma. o cigarro amarelando os dedos, os dentes, a tosse, o pigarro, o perfume, eu continuava me forjando na fumaça cinza dos meus heróis. saia do canela preta com o tiuzin batata, às 4 horas da manhã, chegava à garagem pontualmente, já eram 4 e meia. às vezes, recebia o troco e embarcava, outras esperava pelos infortúnios dos colegas. parece que existe uma roda de compensações na vida que faz com que a tristeza de uns possa trazer alegrias para outros. rei morto, longa vida ao rei. a primeira viagem saia às 4 e 45 minutos. para e anda. sobe e desce. todas as luzes animadas. o dia acordando as ruas, as casas espreguiçando. a minha confiança aumentando, Um passinho mais pra frente, por favor, não tinha muitos arrependimentos, esse não seria um remorso a mais. era um bom emprego

Segura João, tá subindo... feeecha!


é isso, vamos levando todos, ninguém fica para trás, como um rodo puxando a água derramada. limpando as paradas das ruas, derramando no curral das fábricas. a minha missão era cobrar as passagens, se possível, sendo gentil, Bom dia, senhora.

nem tudo é tão bom que não possa melhorar, Um passinho mais à frente, por favor. Feeecha!

é isso, ninguém fica para trás. amontoadinhos.

o largador fixava a tabela com os horários às 4 e meia. Os soldados rasos sem nenhuma posição estratégica tocam o horário até às 11 horas, com intervalo até às 4 da tarde, depois finalizando às 10 horas da noite. os peixes do patrão – peixe é o empregado com serviço de importância que só o patrão reconhece – finalizam às 8 da noite. perguntei ao tiuzin como se explica esse grande companheirismo entre o patrão com um ou outro funcionário, O moleque já ouviu falá sobre o acontecido do favô qui se paga com outro favô?


fez um olhar de acomodação, abriu os braços discretamente, antes de continuar, Manda quem pode e obedece quem tem juízo.

Uma mão lava a outra.

Isso é o qui pensa o ajudado e o ajudante, mais também pode acontecê qui a mão suja emporcalha a outra.

entendi o recado. preciso ficar com os olhos e ouvidos atentos. a boca fechada que as moscas não entram e não saem palavras de arrependimento. quase não carrego nas lembranças remorsos de muito peso, uma ou outra coisinha. lembro a primeira comunhão, não quis ser coroinha, achei que uma coisa levava à outra, não queria ser padre. depois chegou o tempo das imaginações com a professora da geografia. o cabelo nas mãos. ainda hoje, acho que tive sorte dela não ter se envolvido com esse rabanete preto. todas sonham em casar e ter filhos, naqueles dias tinha ímpetos aventureiros muito sórdidos. teve o beijo no galego, um descuido que me atrasou mais que podia imaginar. também não me apeteceu o lugar do tigão no tráfico, não queria minha boca cheia de ouro ou entupida de terra, melhor não arriscar. o arrependimento não mata, mas se pudesse matar, hoje tava morto. não sei, têm horas que tenho arrependimento, em outras não tenho. vai entender essa vontade de tudo, até de ser bandido. no fim, ninguém nota diferença no rabo da sereia

na segunda semana continuava na reserva. queria um itinerário fixo antes de terminar o contrato de temporário. um feito muito difícil, nunca dantes feito. repetir o caminho e as pessoas. conhecido. famoso. o torto e o anão preto

a tiazin vanda ficava acordada, esperando. não estava perdida da razão, desconfiava daquele prodígio sem desafio, Eita emprego de cobrá qui não tem nenhuma graça.

eu não queria nenhuma guerra na família, mas pareceu que a tiazin vivia enciumada porque o tiuzin fez o arranjo do emprego. continuava parada, em pé, na cozinha, uma das mãos apoiada na ilha. não tinha quem a curasse. não tinha curativo para o seu zelo demasiado. continuava me repreendendo. só fazia silêncio quando percebia que nem toda água e torneira da chuva ia me afogar. voltava suas baterias aéreas para o tiuzin, Batata, com esse horário maluco o moleque não vai estudá!

É tudo temporário...

depois da primeira semana de serviço, o largador espalhou na garagem que o pequeno batatinha era competente no ofício de cobrador. não dava para ficar bem de vida, mas já tinha emprego, logo, recebia o dinheiro, Tiazin Vanda...

Fumaça, não tem escola qui ensina no meio-dia até metade da tarde, ela tinha preocupação nos olhos. foi a primeira vez que olhei a tiazin e concordei que ela tava envelhecendo, Tudo tem jeito certo de fazê.

Tiazin, aprendi com davó que não tem só um jeito certo. E que as pessoas precisam escutar com a atenção do coração. Isso tudo é temporário. É só ficar conhecido como o tiuzin Batata.

a tiazin pareceu perder a sua paciência. eu também estava no mesmo ponto do desencontro. queria que ela num pequeno esforço pudesse me entender, mesmo que fosse uma compreensão aos frangalhos, com os trancos e barrancos da desvontade que temos para enxergar os outros. ainda achava que os egoístas estão lá fora, nunca estão dentro de nós mesmos, O teu tio é o caso do famoso qui é desconhecido. O preto com preparo na corrida qui tem um treinadô ditadô: o motorista branco do caminhão do lixo. Ninguém pode sê mais malvado no cumprimento do horário. Só estanca o caminhão sê fô cruzamento ou perigo da pessoa na frente. Os preto lá atrás, pega no latão, vira no caminhão e corre pra devolvê. Pega outro latão, vira e corre pra devolvê. Tudo sem perdê a imundícia dos outro pra fora do caminhão. Se perdê tem qui voltá e ajuntá, se não voltá vai escutá reclamação, se repetí, pega gancho. Vai pra reserva. O teu tiuzin Batata não perdia nem farelo do latão. Corria mais qui o caminhão. Nos torneio de corrida ganhô sempre. Era melhó qui os outro. Abriu os caminho correndo. Fez conhecido bão. Um ajuda daqui, outro dali. Saiu do caminhão e virô cobradô das passagem. Num outro pulo já ficô de motorista. O carregadô de gente. E ocê, moleque? Vai corrê? Chutá bola?


me olhava de um jeito sem pena, sem dó. media a minha força, o tamanho da minha vontade. queria me fazer ver o que ela pressentia, o medo de não dar certo, mirar no alvo errado, Ocê vai se enterrá sentado. Adormecido da bunda. E enriquecendo o patrão da Anônima.

a tiazin falava a verdade como se a verdade só fosse aquela verdade. até a mentira pode virar verdade. a lorota só precisa encontrar algum ouvido desatento ou com maldade. e pronto, vira uma verdade verdadeira. não tem empregado rico, só fica rico se roubar do patrão. tem sempre alguém roubando. é isso, o dinheiro é incontrolável, corrompe as resistências. não faz perguntas. não responde perguntas. a sua fome come todos, come a fome. o empregado morre. o patrão morre. o homem morre. a mulher morre. o doutor morre. o traficante morre. mas o dinheiro continua comendo. o dinheiro come a morte e cospe na nossa cara, continua comendo até que a vida morre, Merda!

O que foi moleque?

Esqueci a guia no bolso...




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