Teatro Pedagógico 09
baitasar
Para enfrentar uma escola de
gritos e silêncios não basta falar da esperança, precisamos da ação com
esperança. Incrível como o rock me devolveu a esperança justamente porque não
era uma esperança, mas uma oportunidade de gritar e desaforar, sendo diferente
do papai e da mamãe que depois me tornei
—
Muita conversa, muita teoria sobre dinossauros e seres invasores de corpos.
Isso é fantasia muito boa como roteiro de cinema. Quero ver na prática com 25
pequenos demônios, queridos, amados que precisam ser alfabetizados. Pais
ansiosos, estatísticas, choros, incapacidades, as ditas inclusões.
—
Ensinar a ler e escrever os pequenos? Moleza, Acemira. Quero ver construir o
diálogo da consciência e da boniteza dos números no 6º, 7º ano, e por aí a fora.
Não sei se foi resmungo de
indignação ou comentário provocador. Ninguém diz ou disse que é fácil, mas
parece que só temos ouvidos para as lamúrias. Decido sair do meu silêncio e
arriscar me contradizer
—
Não basta falarmos em esperança com fé ou sem fé na esperança, precisamos agir
esperançosas. O Marko nos lembra de dois coletivos que precisam se reeducados
como um só coletivo pedagógico. Como ter esperança na educação de um coletivo
que não se enxerga agressor? Opera o poder na escola e se diz vítima?
Parei.
Preciso respirar e fechar os olhos.
Minhas mãos tremem. O Paulo continua voltado para o fundão da sala, seus
olhinhos sorriem. Ou quero pensar que aquele sorriso afetuoso é para mim.
Procuro pelo Marko, ele me olha sério, por trás dos óculos de aro fino escondeu
seu sorriso distante e enigmático. Descobri que além de respeito por mim mesma,
dos meus alunos e alunas, quero o respeito dos dois
—
É bem assim, Anita. É urgente lutar por nossos sonhos. Uma educação que educa
para a ruptura dos paradigmas cultiva decisões éticas por opção e não por
imposição. Uma educação que educa com o coração encara o difícil e o fácil,
frente a frente, sem medo de estar ao lado dos oprimidos, dos feios e das
feias. Aliás, feios ou feias para quem?
—
Sem deixar de ser uma educação boa e gostosa para os adocicados com perfume
importado, hein Paulo?
—
Não desistindo de transformar em poesia cada novo dia, Anita. Como? Invente a
sua poesia. Reescreva a sua história. Eu acredito no carinho e na alegria para
fazer uma educação interessada e criativa.
—
E quem acredita no silêncio e na disciplina? Faz isso tudo como?
Silêncio.
O silêncio é uma das nossas
características marcantes. Até mesmo ótimas professoras têm seu dia não, no
qual nada sai como deveria e a aula parece um umbral. Somos humanos. Também já
dei muitas aulas que não convenceram nem a mim. Já desencarrilhei e louqueei.
Sobrevivi. Todos sobreviveram. E a vida continua. O sol sempre retorna e
continuamos interessadas e criativas
—
A amorosidade requer disciplina, entrega riscos e convive com silêncios, mas
tudo isso precisa ser uma preocupação inventiva que não venha apenas da boca
para fora. — o Arthur interrompeu o Paulo com a impetuosidade da sua juventude,
fala sem alterar a voz, não olha para os lados, apenas diz o que não quer — Não
queremos uma educação metafórica, queremos?
—
Quem sabe, Arthur, o que nos espera dessa educação feita com o coração, mas não
apenas com o coração, seja aquela que não prega o medo, nem se apresente
cansada com a vida.
Olho à nossa volta, uns
conversam, outras fecham os olhos, bocejam, escrevem em seus cadernos de
frequência, quase peço ao Paulo, Chega, Paulo. Basta de falar para ouvidos que
não escutam. Não querem ou não conseguem ouvir além das queixas. Encontro o
olhar do Paulo. Silêncio. Quando ele fala parece me dirigir seu afeto
—
Sendo necessário, caminhemos sozinhos os primeiros passos. Aproximando ou
permitindo que se aproximem outros já não estaremos desacompanhados, mas
tecendo a teia de fazer diferente, construindo outra história com os sabores
intensos e coletivos da vida, longe dos choros desimaginativos e das
reclamações áridas. O poder não está dentro da escola, mas a sua força
opressora tem paredes fortes e mecânicas.
O Paulo para, a Lia está com a
mão erguida e impaciente
—
Desculpe, Paulo, mas isso do poder dentro e fora da escola é muito importante.
Eu demorei a perceber que me ensinaram a vida toda a ser espantalho. O poder
fora da escola espera do nosso trabalho uma reprodução assexuada e fragmentada,
para suprir as necessidades do emprego. Mais bonecos e bonecas de paus para
mais consumo, mais produção, mais acúmulo de riqueza entre os donos dos bonecos
de pau. Os espantalhos de palha vão continuar de braços abertos enxotando os
passarinhos?
—
Lia, a escola não muda a sociedade.
—
Muito bem, professora Acemira. Concordo consigo. — essa sou eu — Mas a escola
pode ajudar a desvelar alguns tons escondidos. A greve dos trabalhadores do
transporte coletivo, por exemplo, sem julgar ou antecipar, nem neutralizar
minha opinião, mas gostaria de fazer uma pergunta.
Minhas mãos continuavam tremendo.
Senti vontade de roer as unhas. E a minha voz estava rouca, não sei, mas fiz a
pergunta
—
Se o transporte público é uma concessão pública por que não se pode ver
claramente a planilha de custos das empresas do transporte coletivo? Por que
isso não é uma obrigação sistemática. Um dever? Por que precisamos do
Ministério Público para ver números que interessam a todos e todas? — não
estava mais tremendo, outros que tremam
—
Anita, Anita. São os lucros exorbitantes dos empresários!
—
Não sei, Samuel. Pode ser. Acho que é isso e outras coisas mais. Mas na escola
não podemos provocar a discussão sobre o que acontece fora dos nossos muros de proteção?
Percebo o Marko e o Paulo me
olhando. Depois olham para o Samuel com um pequeno sorriso nos lábios. A
Cabayba não vai perder muito tempo para berrar que os comunistas estão às
nossas portas. Entraram na escola, coitadas das criancinhas. Um coletivo
cúmplice de mentes educadoras com a esperança de formar pensamentos e ações
coletivas. Somos um time, mas não sei se um dia chegaremos a ser um coletivo
—
Que linda aula de matemática sobre planilhas, custeio, salários, lucros! Dar
significado para os números.
Incluindo nas almas educadoras,
que não se colocam antecipadamente contra qualquer atitude de pensar mudanças,
a possibilidade de se educarem numa perspectiva diferente, no sentido da
solidariedade amorosa, não no sentido da solidariedade ingênua, em que um
afago, um sorriso, um olhar, irá acabar com o sofrimento e a dor da fome, que
não é fome só de comida, falta de saúde, de moradia, de se ver e ser visto como
ser humano da humanidade histórica. Precisamos nos educar na solidariedade participativa
e libertadora, pensando nós mesmos e o mundo. Agindo entre nós e com nossos
alunos no mundo. Refletir sobre os gritos e os silêncios que nos fazem passar
de fora para dentro, penetrando e continuando em mudança. Fugindo da
mistificação do real, a mastigação do social, olhar e enxugar
—
Não aceitar a cegueira fácil da acomodação e da resposta simples, dócil,
ingênua e propensa a confiar que no fim tudo se ajeita.
—
Isso, Anita. Necessitamos contrariar conceitos seculares, que, ainda hoje, se
arrastam entre nossos pés e vendam com tarjas invisíveis nossos olhos, quando
aceitamos sussurros e insinuações estabelecendo que os pobres, que encontramos
em nossas escolas, só o são pobres porque preferem pedir a trabalhar. Na
hipótese de realmente acreditarmos nisso, pensamento mágico fascistoide que
acusa os miseráveis de serem miseráveis porque desejam viver do lixo dos não
miseráveis, sugiro que, como forma de protesto, os não miseráveis parem de
produzir lixo. E passem a comer o próprio lixo no caso de se tornar impossível
deixarem de produzir lixo. Até não sobrar mais nada. — foi a primeira vez que
percebi no olhar e na voz do Paulo a cruel e desconcertante mágoa com a indiferença elitista, preconceituosa, autoritária e desigual — Precisamos enxergar o nosso entorno
como nunca antes o fizemos e fazer perguntas simples a nós mesmos.
—
Calma, Paulo. A reunião nem mesmo começou e você já quer nos transformar em
réus confessos.
O Paulo continuou como se a
Acemira não o tivesse interrompido
—
Quantos quilômetros o papeleiro anda por dia puxando o seu carrinho, como se
fosse o cavalo? Por certo, faz mais que eu e o meu carro, entre a escola dos
sonhos e a minha casa. Quanto do lixo, resíduos das nossas casas, aquela mulher
e a menina conseguem recolher por dia de trabalho, tocando o cavalo que puxa a
carroça? Alguém precisa se ocupar dessas perguntas.
—
É disso que eu falo, Paulo. O consumo das vidas é tão intenso que obrigamos os
catadores a se especializarem. Nos dias de hoje, temos os catadores de lata,
outros só catam papelão, vidros quebrados ou não, temos também os catadores dos
restos de comida.
O desprezado e apanhado no lixo
deveriam ser destinados à reciclagem e aos animais. Galinhas. Porcos. O puxador
da carroça. Mas o lixo que sai das nossas casas e vai para a lixeira é usado
para alimentar gente, depois os animais. Se preferir não enxergar e não
acreditar, como transformar essas mortes em opção pedagógica e material de
reflexão didática?
Retorno dos meus delírios a tempo
de continuar escutando o Marko
—
O coletivo é um organismo social vivo e, por isso mesmo, é trabalho social útil
aos fundamentos de uma proposta educativa coletiva, onde cada um desempenha um
papel no contexto da construção do todo, na perspectiva de que não é nem o
melhor nem o pior, mas um componente humano importante e fundamental para a
felicidade coletiva. Como organizar na escola um sistema de interligação
coletiva? Como possibilitar que todos pertencentes a este universo não se
percebam isoladamente? Como ter a exata noção do todo que fazemos parte?
Distribuindo responsabilidades com disciplina, afeto, em uma permanente
discussão coletiva que busca a liberdade. Desoprimindo, livramo-nos da opressão
e da solidão.
Penso nas palavras do Marko e me
pergunto sobre quem faria esse papel, os gestores da escola? Compreenderão
esses personagens o papel que precisam desempenhar? Ah, esses sonhos enfiados
em mim
—
Conheço sonhos que são reais nas tentativas individuais dos professores, alguns
alunos, poucas escolas e suas comunidades, mas precisamos avançar para mais,
muitas mais professoras, milhares de mais alunas, multiplicar nas escolas o pão
e o vinho da esperança que brota em nossas pequenas ações do dia após dia.
Gente colorida.
—
Lia, precisamos investir contra o egoísmo e o cinismo. Acolher os ingênuos para
dizer-lhes que nos queiram bem, mas urge acordar e caminhar. Saboreio pequenos
jornais escolares comandados por alunos e professores, a distribuição rotativa
e coletiva das funções: fotógrafos, editores, digitadores, repórteres,
colunistas.
—
Ai, o Paulo acorda! O Aguinaldo reclama que não tem papel e cotas de cópias
para o jornal.
O velhinho olha Cabayba com a
seriedade que a resposta lhe pede
—
Quem sabe, aprendamos dar nossas aulas sem as mágicas folhinhas xerográficas?
Talvez possamos diminuir coletivamente o seu uso e possibilitar aumentar a cota
do jornal da escola. Podemos ter pequenas hortas cultivadas pela enxada
empunhada por alunos e alunas. Grupo de teatro, cinema, música, dança, vigílias
literárias. Precisamos comprometer a todos com o ser mais, tendo mais
humanidade. Semear e proteger a vida, inclusive dos cínicos. Chega de deixarmos
que nos roubem quem queremos ser.
____________________
Leia também:
TP 08 - Ensinação é ineficazTeatro Pedagógico 10 - Como se cura quem não está doente?
Nenhum comentário:
Postar um comentário