quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (4b.) Afanássii Ivánovitch...

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


4b.



Afanássii Ivánovitch era, a esse tempo, homem de cinquenta anos; seu caráter estava mais que formado e seus hábitos estratificados, a sua posição no mundo e na sociedade tendo sido, desde muito, estabelecida nas mais seguras bases. Prezava a sua paz e o seu conforto acima de tudo neste mundo, como se dá com as pessoas de educação refinada. Nenhum elemento duvidoso e demolidor poderia ser tolerado nesse esplêndido edifício que tinha levado toda a vida a construir. Por outro lado, a experiência profunda e a visão ampla tinham ensinado Tótskii de forma absoluta e ao mesmo tempo correta como se teria de haver com uma criatura fora do comum, uma criatura que não somente ameaçaria mas certamente também agiria e, o que é mais, não se prenderia a nada, especialmente não ligando, como ela não ligava, a coisa alguma na vida, não devendo, portanto, ser provocada.

Evidentemente, além de tudo isso, ainda havia mais qualquer outra coisa: o prenúncio já de um fermento caótico em trabalho no seu espírito e no seu coração, algo proveniente de uma indignação romântica (Deus sabia por que e contra quem!), prenúncio esse transformado em um insaciável e exagerado paroxismo de desprezo; enfim, algo altamente ridículo e inadmissível na alta sociedade e prestes a prejudicar qualquer homem bem-educado.

De mais a mais, com a sua riqueza e as suas ligações comerciais, Tótskii poderia se livrar desse incômodo se se quisesse servir de um golpe perdoável e pequenino de vilania. Por outro lado, era evidente que Nastássia Filíppovna não teria facilidades, por exemplo, para o prejudicar, digamos, no terreno ou no sentido legal, não conseguindo mesmo criar um escândalo de grande projeção, porque fácil lhe seria iludi-la. Mas tudo isso só valeria se Nastássia Filíppovna estivesse armada para se comportar como certas pessoas se comportam em tais circunstâncias, isto é, sem sair muito abertamente do curso regular de uma conduta possível e provável.

Mas ainda aí a perspicácia de Tótskii lhe serviria de muito, sendo bastante esperto, como era, para ver que Nastássia Filíppovna já se capacitara de que não o poderia prejudicar por vias legais, através da lei, e sim por outros meios que já descobrira em seu espírito e em seus olhos brilhantes. Como não dava valor a coisa alguma e, muito menos, a si própria (era preciso muita inteligência e visão, em um mundano cético e totalmente cínico como ele, para perceber que ela havia desde muito deixado de se importar com o próprio futuro e de acreditar na valia de tal sentimento), Nastássia Filíppovna era mulher para enfrentar a ruína sem esperança, e até a própria desgraça, a prisão e a Sibéria, somente pelo prazer de humilhar o homem pelo qual sentia aversão, tamanha que chegava a ser desumana.

Afanássii Ivánovitch jamais escondera o fato de que era de um certo modo covarde, ou melhor altamente conservador. Se soubesse, por exemplo, que seria assassinado no altar, no dia em que se casasse, ou que qualquer coisa análoga, aliás excessivamente improvável, ridícula e impossível na sociedade, lhe pudesse acontecer, certamente ficaria alarmado, e bastante! Mesmo que não fosse morto ou ferido, mas que tão somente alguém lhe escarrasse em público na cara, qualquer gesto desse gênero, como forma anômala e chocante de escândalo. E isso era justamente o que Nastássia Filíppovna ameaçava, embora não tivesse dito uma só palavra a respeito. Ela o tinha estudado e compreendido cabalmente, e portanto sabia como feri-lo. E, como o casamento não passara até então de mera probabilidade, Afanássii Ivánovitch renunciou ao seu projeto e se submeteu a Nastássia Filíppovna.

Houve ainda uma outra consideração que o ajudou em sua decisão: era difícil calcular quão diferente de rosto esta nova Nastássia Filíppovna era da antiga! Tinha sido até então uma lindíssima rapariga, mas agora... como havia Tótskii de se perdoar por não ter reparado o que havia debaixo daquele rosto! Malograra, durante esses quatro anos, em conhecê-la. Muito, sem dúvida, dessa mudança, viera de dentro; e essas atitudes provavam uma repentina alteração! Lembrou-se, contudo, que momentos tinha havido, mesmo no passado, em que aqueles olhos, certas vezes, lhe despertavam estranhas ideias. Havia neles, já naquela época, uma promessa de alguma coisa demasiado profunda. Ah! A expressão escura e misteriosa daqueles olhos! Pareciam estar pedindo que lhe interpretassem o enigma.

Também se admirara muitas vezes, nesses últimos dois anos, da assustadora mudança de compleição de Nastássia Filíppovna, que além disso se tornara pavorosamente pálida, talvez ainda mais formosa, por isso. Tótskii, como todo cavalheiro que tinha vivido seus dias livremente, a menoscabara por lhe ter conseguido tão barato a alma virginal. A seguir, porém, sentira uma certa apreensão. Resolvera até, na primavera seguinte, não perder tempo e casar logo Nástássia Filíppovna, mercê de um bom dote, com algum indivíduo decente e de bons sentimentos, que trabalhasse em alguma recuada província. (Oh! De que forma horrível e maliciosa ela não se riu dessa nova ideia!) Mas agora, Afanássii Ivánovitch, fascinado pelo que de novo descobrira nela, positivamente imaginou que ainda se poderia utilizar dessa mulher. Decidiu instalá-la em Petersburgo, cercando-a de luxo e conforto. Se não pudesse ter uma coisa, teria a outra. Poderia até gratificar a própria vaidade e ganhar glória à custa dela, em certos círculos, estimando como estimava a própria reputação em tais assuntos.

Tinham-se seguido cinco anos de vida em Petersburgo e naturalmente muitas coisas se tornaram claras nesse tempo. A situação de Tótskii não era lá das mais agradáveis. E o pior de tudo foi que, tendo ficado intimidado, nunca mais pôde recuperar a confiança em si mesmo. Tinha medo de Nastássia Filíppovna, mas nem sequer poderia dizer o que temia. Por algum tempo, pelo menos nos dois primeiros anos de Petersburgo, pensou que ela quisesse desposá-lo, não tendo falado nisso apenas devido ao seu orgulho congênito, permanecendo obstinadamente à espera de que ele a pedisse. Estranho pedido, não havia dúvida, mas suspeitou isso. Meditava e examinava.., e cada vez ficava mais preocupado.

Para sua grande e de certo modo desagradável surpresa, descobriu (assim é o coração do homem!) e ficou convencido, por uma coisa que aconteceu, que mesmo que lhe pedisse a mão receberia um contra! Levou muito tempo para entender o porquê disso. No fim de contas só descobriu uma explicação: que o orgulho dessa “mulher fantástica e suscetível” tinha atingido um tal ápice de frenesi que preferia expressar-lhe o seu desdém de uma vez por todas, recusando-o, a assegurar o seu futuro e até mesmo o seu acesso às alturas da grandeza.

O pior de tudo era que Nastássia o estava dominando totalmente. Não que estivesse, ao menos, influenciada por considerações mercenárias, pois, apesar de ter aceito o luxo, e com o luxo o engodo, vivia modestamente, e quase nada poupara para si, durante aqueles cinco anos. Tótskii aventurou uma tática sutil para quebrar as suas cadeias: começou, com habilidade, experimentando tentá-la com toda a sorte de tentações da espécie mais idealística possível. Mas tais ideias, em forma de príncipes, hússares, secretários de embaixada, poetas, romancistas e até mesmo socialistas, não causaram em Nastássia Filíppovna o menor interesse. Teria no coração uma pedra, ou todos os seus sentimentos estariam murchos e secos para sempre?

Vivia uma vida apartada, lendo, estudando, ou apreciando música. Tinha poucos amigos, ligava-se a esposas de funcionários inferiores, gente pobre e ridícula; dava-se com duas artistas; recebia algumas velhotas, gostava muito da família de um velho e respeitável mestre-escola; e o numeroso pessoal dessa família a estimava, recebendo-a com efusão. Tinha, à noite, sempre meia dúzia de amigos para vê-la; o próprio Tótskii a visitava com regularidade e frequência. O General Epantchín fizera recentemente seu conhecimento, com certa dificuldade, ao passo que quase ao mesmo tempo um jovem serventuário governamental chamado Ferdichtchénko, que se fazia de engraçado, um bufão bêbado e sem educação, lhe tinha merecido acolhida sem dificuldade alguma.

Outra pessoa do seu círculo era um homem esquisitão. chamado Ptítsin, modesto, sensato, de maneiras altamente polidas. que tinha vindo da mais extrema pobreza, sendo agora um agiota. Por último lhe fora apresentado Gavríl Ardaliónovitch, e já Nastássia Filíppovna desfrutava de estranha fama. Todos tinham ouvido gabar a sua beleza e era tudo. Ninguém poderia jactar-se de favores seus nem tinha o que dizer contra ela, a sua reputação, maneiras e juízo, confirmando bem em um certo ponto a opinião de Tótskii.

E fora a essa altura que o General Epantchín começara a tomar uma parte ativa no caso. Quando Tótskii cortesmente se aproximou dele, pedindo o seu conselho como amigo, a propósito de uma de suas filhas, fizera, da maneira mais nobre, uma completa e sincera confissão ao general. Afirmara-lhe que jamais lhe passara pelo espírito apoiar-se em meios equívocos para recuperar a liberdade. Que não se sentiria salvo mesmo que Nastássia Filíppovna lhe jurasse que o deixaria em paz no futuro, pois para ela as palavras significavam pouco, não lhe bastando nem mesmo maiores garantias. Trocaram impressões a respeito e resolveram agir juntos. Ficou resolvido que se experimentariam os meios mais gentis, primeiro, tocando, por exemplo, por assim dizer, nas mais finas cordas do coração dela.

Foram ter juntos a Nastássia Filíppovna; e Tótskii falou, com toda a sinceridade, na intolerável miséria da sua situação. Censurou-se por tudo. Disse que quanto à primitiva ofensa não diria que estava arrependido porque era um sensual inveterado e não se pudera Conter; mas que, no momento, desejava se casar e que toda a possibilidade deste altamente viável e distinto casamento estava nas mãos dela. Em uma palavra, depunha todas as suas esperanças em seu generoso coração. Depois, então, o General Epantchín, como pai, começou a falar. E a verdade é que falou razoavelmente, evitando sentimentalismo. Apenas disse que de certo modo admitia plenamente o direito dela decidir o destino de Afanássii Ivánovitch: e fez uma hábil exibição de sua própria humildade, acentuando, operante ela, que o destino de sua filha e, talvez até das outras duas, estava agora dependendo dela.

À pergunta de Nastássia Filíppovna quanto ao que dela desejavam, nesse caso, Tótskii logo com rude sinceridade confessou que ela durante esses cinco anos o tinha apavorado e posto em permanente pânico, não podendo pois ficar tranquilo enquanto Nastássia Filíppovna por sua vez não se casasse. Acrescentou que essa sua proposição aliás seria absurda da sua parte, se ele não tivesse alguma base para isso. Tinha observado e se capacitara como coisa certa que ela era amada por um jovem de bom nascimento e de respeitável família, Gavríl Ardaliónovitch Ívolguin, uma relação que ela aceitara de bom grado em sua casa desde muito. Sim, esse rapaz a amava apaixonadamente, sendo que até daria de bom grado a metade da sua vida pela só esperança de ganhar a sua afeição, conforme, na simplicidade do seu puro e jovem coração, lhe confessara, em hora amistosa. E que Iván Fiódorovitch, protetor do jovem, desde muito sabia dessa paixão. E acrescentou por fim que se ele, Tótskii, não estava equivocado, ela, Nastássia Filíppovna, parecia, desde muito, se ter dado conta do amor do jovem, pois todos tinham percebido que ela realmente o olhava com certa indulgência.

Fez-lhe ver quanto para ele, mais que para qualquer outro, era difícil falar sobre isso. Mas que se Nastássia Filíppovna permitisse que ele tivesse por ela, no mínimo, algum pensamento bom, assim como um constante desejo de prover ao seu conforto, deveria já ter percebido quanto lhe tinha sido penoso vê-la na solidão. Solidão essa que só podia ser causada por uma vaga depressão acrescida de uma completa descrença na possibilidade de uma vida nova, que podia muito bem ter seus novos rumos no amor e no casamento. Disse que atirar fora talentos dos mais brilhantes e enveredar por uma desajuizada marcha para a ruína era, pensando bem, nem mais nem menos do que uma variação de sentimentalismo incompatível com o bom senso e o nobre coração de uma mulher como Nastássia Filíppovna.

Repetindo quão penoso era para ele, mais do que para qualquer outro, ter de lhe falar nisso, afirmou que não desejaria que Nastássia Filíppovna o olhasse com desprezo se ele lhe expressasse, como agora estava expressando, a sincera resolução de garanti-la no seu futuro, oferecendo-lhe a soma de setenta e cinco mil rublos. Categoricamente, afirmou que essa quantia, aliás, já lhe estava assegurada no seu testamento, não se tratando, absolutamente, de uma questão de recompensa, de maneira alguma... não tendo ela, de mais a mais, o direito de impedir que ele satisfizesse um desejo bem humano de fazer algo para aliviar a consciência, etc, etc, o que era sempre o remate mais eloquente em tais circunstâncias. Afanássii Ivánovitch falou com elegância moral, alongando-se até. Juntou, como que de passagem, a categórica informação de que não deixara cair uma só palavra a quem quer que fosse a respeito dos setenta e cinco mil rublos ninguém, nem mesmo Iván Fiódorovitch, ali sentado, tendo sido, antes, sabedor disso.

A resposta de Nastássia Filíppovna surpreendeu os dois amigos.

Não mostrou nenhum traço da antiga ironia nem do primitivo ódio, E em vez daquela gargalhada cuja só lembrança punha calafrios glaciais na espinha e Tótskii, pareceu alegrar-se com a oportunidade que lhe era dada de falar a alguém com franqueza e camaradagem. Fez saber que desde muito estivera desejando pedir um conselho amigo e que só o seu orgulho fora empecilho para isso. Mas, já que o gelo estava rompido, nada podia ser melhor. Primeiro com um sorriso morno, depois com uma risada alegre e jovial, garantiu que em caso algum poderia haver mais a tempestade de antes. Que, desde muito tempo para cá, passara a encarar as coisas de modo muito diverso e que, embora não tivesse havido mudança em seu coração, fora compelida a aceitar muitas coisas como fatos definitivos. Que o que tinha sido feito não poderia ser desfeito, que o que tinha passado, o fora de vez, tanto que se admirava de Afanássii Ivánovitch estar ainda sobressaltado.

Depois voltou-se para Iván Fiódorovitch e, com ar de muita deferência, disse que sempre só ouvira falar bem de suas filhas, pelas quais entretinha em profundo respeito. Que só ideia de poder vir a ser útil a elas de qualquer modo, lhe seria uma fonte de orgulho e satisfação. Verdade era que estava deprimida e melancólica; muito melancólica. Afanássii Ivánovitch não tinha feito mais, agora, do que adivinhar os seus sonhos: desejava, de fato, uma vida nova, novos rumos, um novo itinerário, tendo como alvo os filhos e a vida doméstica, senão o amor. Que, relativamente a Gavríl Ardaliónovitch, pouco podia falar. Julgava que fosse verídico que ele a amasse, estando também crente de que poderia se interessar por ele, caso viesse a acreditar na sinceridade desse apego. Mas que, mesmo havendo sinceridade da parte dele, era muito moço ainda, sendo essa sua opinião a tal respeito bem categórica. Que o que mais apreciava nele era estar trabalhando para sustentar uma família sem recursos. Que já ouvira dizer que era um homem de energia e de orgulho, sequioso de abrir o seu caminho e fazer a sua carreira. Também ouvira falar muito bem a propósito da mãe dele, Nina Aleksándrovna, excelente mulher, muito estimada; e que, quanto à irmã, Varvára Ardaliónovna, também lhe haviam garantido ser notável moça de muito caráter, todas essas coisas lhe tendo chegado através de Ptítsin, principalmente a brava maneira com que encaravam o infortúnio. Teria muito prazer em travar conhecimento com elas, mas que era uma interrogação saber se a receberiam bem, dentro da família. Não faria nada que dificultasse a possibilidade de um tal casamento, mas que precisava pensar nisso um pouco mais. Pedia-lhes pois que a não apressassem.

E que, quanto aos setenta e cinco mil rublos, não necessitava Tótskii de falar tanto a tal respeito. Sabia bem o valor do dinheiro e certamente o aceitaria, desde já lhe agradecendo não ter tocado nesse particular a Gavríl Ardaliónovitch nem mesmo ao general, o que não deixava de ser uma delicadeza. Mas, por que não deveria o jovem ser sabedor disso? De que tinha ela que se envergonhar se, ao entrar para essa família, levasse esse dinheiro? Pondo as coisas bem claras, não era ela que tinha de pedir desculpas a quem quer que fosse de coisíssima alguma, e desejava até que isso ficasse bem patenteado. Que enquanto não se certificasse de que Gavríl Ardaliónovitch, ou a sua família, não tinham nenhum secreto sentimento a seu respeito, não se casaria com ele. E reiterava a afirmação de que não se julgava culpada de nada censurável. Gavríl Ardaliónovitch sabia muito bem em que pé ela havia vivido esses cinco anos em Petersburgo, em que condições estava perante Afanássii Ivánovitch, e se porventura fora levada por dinheiro em tudo isso. Se agora aceitava dinheiro, não o fazia como cobrança pela perda da sua honra de donzela, do que não tinha por que ser censurada, e sim como compensação de sua vida arruinada.

Dizendo isso, inflamou-se tanto e ficou tão nervosa (o que aliás era natural), que o General Epantchín se deu por satisfeito e considerou o caso solucionado. Mas Tótskii, que já certa vez fora penosamente assustado, não ficou lá muito confiante, levando algum tempo com receio de que uma áspide estivesse escondida entre flores. Todavia, pelo menos, negociações tinham sido abertas. O ponto esquemático dos dois amigos era contarem ambos com a possibilidade de Nastássia Filíppovna ser atraída por Gánia, e as coisas começaram a decorrer de tal forma que o próprio Tótskii acreditava, às vezes, na possibilidade de êxito. No entanto, Nastássía Filíppovna teve um entendimento com Gánia. Entendimento curto porque o assunto era penoso e delicado. Ela reconheceu e sancionou o seu amor, insistindo, porém, em não se comprometer de forma alguma, reservando o direito, até ao casamento (se casamento houvesse) de poder dizer “não” até ao último momento, dando a Gánia igual direito e liberdade. Pouco depois veio Gánia a saber, acidentalmente, que ela estava a par, e com todas as minúcias, da hostilidade da família dele quanto ao casamento e à pessoa dela, bem como das cenas que isso ocasionava em casa. Mas não lhe disse palavra, muito embora diariamente ele esperasse tal assunto.

Há muito mais a relatar sobre todo o murmúrio e consequentes complicações que surgiram do caso proposto e respectivas negociações. Mas estamos a antecipar coisas e a maioria dessas complicações mais não eram do que meros boatos. Falou-se, por exemplo, que Tótskii descobriu ter Nastássia Filíppovna tido um encontro secreto e vago com as filhas do general, história decerto improvável e disparatada. Mas em um outro episódio não pôde ele deixar de acreditar, o que o obcecou como um pesadelo ouviu dizer, como verdade incontestável, que Nastássia Filíppovna estava certa de que Gavríl Ardaliónovitch se casava com ela por causa do dinheiro; que era um coração mercenário, ávido, trêfego e invejoso, sendo a sua vaidade, além de grotesca, ilimitada; que, embora realmente estivesse apaixonadamente se empenhando em conquistá-la (mesmo depois dos dois respeitáveis homens de idade haverem determinado explorar a sua incipiente paixão por ambos os lados, para seus próprios fins, comprando-o para o venderem a Nastássia Filíppovna por intermédio do matrimônio), começara a detestá-la como um pesadelo, paixão e repulsa estando estranhamente associados em sua alma. E que, conquanto, depois de dolorosa hesitação, tivesse consentido em vir a se casar com a “desacreditada rameira”, jurara, em seu coração, fazê-la pagar amargamente, abandonando-a depois, como, segundo afirmaram, dissera mais de uma vez. Transpirou que Nastássia Filíppovna soube de tudo isso e que tinha certo plano “enfiado na manga”. Tótskii ficou em tal pânico que não confiou mais suas inquietudes a Epantchín, mas como homem fraco, momentos havia em que recuperava a calma e a confiança, munindo-se mesmo de ânimo. Ficou sobremaneira aliviado, por exemplo, quando Nastássia Filíppovna prometeu aos dois amigos que lhes daria a palavra final e decisiva na noite do seu aniversário.

Mas, por um outro lado, apareceu um boato ainda mais estranho e incrível, relativamente ao não menos honrado Iván Fiódorovitch e que (pobre dele!) mais e mais se foi fundamentando à medida que o tempo passava. Ao primeiro exame, soava perfeitamente falso. Era difícil acreditar que Iván Fiódorovitch já em seu venerável fim de vida, com sua excelente compreensão prática pelas coisas do mundo, e tudo o mais, pudesse se enfeitiçar por Nastássia Filíppovna e descesse por tais declives abaixo a ponto de um mero capricho se ter tornado quase paixão. Com o que contava para isso, é difícil imaginar-se; possivelmente com a ajuda do próprio Gánia.

Tótskii suspeitou de qualquer coisa, nesse sentido, muito por alto. Suspeita essa suscitada pela probabilidade de um mútuo acordo entre o general e Gánia. Mas é notoriamente sabido que um homem movido pela paixão, especialmente se se trata de um homem de idade avançada, se torna completamente cego e propenso a encontrar fundamentos para sua esperança justamente onde não os há. Daí perder o senso e agir como criança doidivanas, por maior intelecto que possa ter. Veio a público que o general tinha procurado umas pérolas magníficas para o dia do natalício de Nastássia Filíppovna, pérolas que custaram uma soma imensa. E que vivia pensando nesse seu presente, muito embora estivesse perfeitamente informado de que ela não era uma mulher venal. Já na véspera do aniversário andava ele em perfeita febre, apesar de habilmente ter escondido a sua emoção. Era, justamente, daquelas pérolas que a Sra. Epantchiná tinha ouvido falar. Lizavéta Prokófievna tinha, na verdade, muitos anos de experiência a propósito da inconstância do esposo; estava, de fato, quase acostumada com isso, mas lhe seria impossível deixar passar em silêncio esse incidente O zunzum sobre as tão faladas pérolas lhe tinha feito uma grande impressão. E o general pressentira isso, muito de antemão, pois certas palavras já vinham sendo pronunciadas dias antes e principalmente na véspera, tendo ele receado que uma explicação estivesse, inesperadamente, em vias de ser pedida.

Eis por que não estava querendo de muito bom grado, ir almoçar com a família na manhã em que a nossa história começa. Antes do aparecimento de Míchkin tinha resolvido escapulir a pretexto de um negócio urgente. Escapulir muitas vezes, significava, no caso do general, apenas pôr-se ao fresco. Precisava ter esse dia livre para si, ou no mínimo, de qualquer maneira, essa noite, e bem distante de dissabores advindos de desassossegos. E eis que inesperadamente, e de modo tão propício, surgira o príncipe. “Um verdadeiro enviado de Deus!” pensou o general ao entrar para se defrontar com a esposa.

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