Paulo Freire
“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar
continuando...
AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO
E AOS QUE NELES SE
DESCOBREM E, ASSIM
DESCOBRINDO-SE, COM ELES
SOFREM, MAS, SOBRETUDO,
COM ELES LUTAM.
4. A teoria da ação antidialógica
continuando...
Se uma liderança revolucionária, encarnando, desta forma, uma visão humanista – de um humanismo concreto e não abstrato – pode ter dificuldades e problemas, muito maiores dificuldades e problemas terá ao tentar, por mais bem-intencionada que seja, fazer a revolução para as massas oprimidas. Isto é, fazer uma revolução em que o com as massas é substituído pelo sem elas, porque trazidas ao processo através dos mesmos métodos e procedimentos usados para oprimi-las.
Estamos convencidos de que o diálogo com as massas populares é uma exigência radical de toda revolução autêntica. Ela é revolução por isto. Distingue-se do golpe militar por isto. Dos golpes, seria uma ingenuidade esperar que estabelecessem diálogo com as massas oprimidas. Deles, o que se pode esperar é o engodo para legitimar-se ou a força que reprime.
A verdadeira revolução, cedo ou tarde, tem de inaugurar o diálogo corajoso com as massas. Sua legitimidade está no diálogo com elas, não no engodo, na mentira [1]. Não pode temer as massas, a sua expressividade, a sua participação efetiva no poder. Não pode negá-las. Não pode deixar de prestar-lhes conta. De falar de seus acertos, de seus erros, de seus equívocos, de suas dificuldades.
[1] “Se algum beneficio se pudesse obter da dúvida (disse Fidel Castro ao falar ao povo cubano, confirmando a morte de Guevara), nunca foram armas da revolução a mentira, o medo da verdade, a cumplicidade com qualquer ilusão falsa, a cumplicidade com qualquer mentira.” Fidel Castro, Gramma, 17-10-1967. (Os grifos são nossos.)
A nossa convicção é a de que, quanto mais cedo comece o diálogo, mais revolução será.
Este diálogo, como exigência radical da revolução, e responde a outra exigência radical – a dos homens como seres que não podem ser fora da comunicação, pois que são comunicação. Obstaculizar a comunicação é transformá-los em quase “coisa” e isto é tarefa e objetivo dos opressores, não dos revolucionários.
É preciso que fique claro que, por isto mesmo que estamos defendendo a práxis, a teoria do fazer, não estamos propondo nenhuma dicotomia de que resultasse que este fazer se dividisse em uma etapa de reflexão e outra, distante, de ação. Ação e reflexão e ação se dão simultaneamente.
O que pode ocorrer, ao exercer-se uma análise crítica reflexiva, sobre a realidade, sobre suas contradições, é que se perceba a impossibilidade imediata de uma forma determinada de ação ou a sua inadequacidade ao momento.
Desde o instante, porém, em que a reflexão demonstra a inviabilidade ou a inoportunidade de uma forma tal ou qual de ação, que deve ser adiada ou substituída por outra, não se pode negar a ação nos que fazem esta reflexão. É que esta se está dando no ato mesmo de atuar – é também ação.
Se, na educação como situação gnosiológica, o ato cognoscente do sujeito educador (também educando) sobre o objeto cognoscível, não morre, ou nele se esgota, porque, dialogicamente, se estende a outros sujeitos cognoscentes, de tal maneira que o objeto cognoscível se faz mediador da cognoscibilidade dos dois, na teoria da ação revolucionária se dá o mesmo. Isto é, a liderança tem, nos oprimidos, sujeitos também da ação libertadora e, na realidade, a mediação da ação transformadora de ambos. Nesta teoria da ação, exatamente porque é revolucionária, não é possível falar nem em ator, no singular, nem apenas em atores, no plural, mas em atores em intersubjetividade, em intercomunicação.
Negá-la, no processo revolucionário, evitando, por isto mesmo, o diálogo com o povo em nome da necessidade de “organizá-lo”, de fortalecer o poder revolucionário, de assegurar uma frente coesa é, no fundo, temer a liberdade. É temer o próprio povo ou não crer nele. Mas, ao se descrer do povo, ao temê-lo, a revolução perde sua razão de ser. É que ela nem pode ser feita para o povo pela liderança, nem por ele, para ela, mas por ambos, numa solidariedade que não pode ser quebrada. E esta solidariedade somente nasce no testemunho que a liderança dá a ele, no encontro humilde, amoroso e corajoso com ele.
Nem todos temos a coragem deste encontro e nos enrijecemos no desencontro, no qual transformamos os outros em puros objetos. E, ao assim procedermos, nos tornamos necrófilos, em lugar de biófilos. Matamos a vida, em lugar de alimentarmos a vida. Em lugar e buscá-la, corremos dela.
Matar a vida, freá-la, com a redução dos homens a puras coisas, aliena-los, mistificá-los, violentá-los são o próprio dos opressores.
Talvez se pense que, ao fazermos a defesa deste encontro dos homens no mundo para transformá-la, que é o diálogo [2], estejamos caindo numa ingênua atitude, num idealismo subjetivista.
[2] Sublinhemos mais uma vez que este encontro dialógico não se pode verificar entre antagônicos.
Não há nada, contudo, de mais concreto e real do que os homens no mundo e com o mundo. Os homens com os homens, enquanto classes que oprimidas e classes oprimidas.
O que pretende a revolução autêntica é transformar a realidade que propicia este estado de coisas, desumanizante dos homens.
Afirma-se, o que é uma verdade, que esta transformação não pode ser feita pelos que vivem de tal realidade, mas pelos esmagados, com uma lúcida liderança.
Que seja esta, pois, uma afirmação radicalmente consequente, isto é, que se torne existenciada pela liderança na sua comunhão com o povo. Comunhão em que crescerão juntos e em que a liderança, em lugar de simplesmente autonomear-se, se instaura ou se autentica na sua práxis com a do povo, nunca no des-encontro ou no dirigismo.
Muitos, porque aferrados a uma visão mecanicista, não percebendo esta obviedade, a de que a situação concreta em que estão os homens condiciona a sua consciência do mundo e esta as suas atitudes e o seu enfrentamento, pensam que a transformação da realidade se pode fazer em termos mecânicos [3]. Isto é, sem a problematização desta falsa consciência do mundo ou sem o aprofundamento de uma já, menos falsa consciência dos oprimidos, na aço revolucionária.
[3] “The epochs during which the dominant classes are stable, epochs in which the worker's movement must defend itself against a powerful adversary, which is occasionally threatening and is in every case solidLyseated in power, produce naturally a socialist literature which emphasizes the “material” element of reality, the obstacles to be overcome, and the scant efficaly of human awareness and action.” Lucien Goldman, The Human Sciences cnd Philosophp, Jonathan Cape Ltd. London, 1969, págs. 80-81.
Não há, realidade histórica – mais outra obviedade – que não seja humana. Não há, história sem homens como não há, uma história para os homens, mas uma história de homens que, feita por eles, também os faz, como disse Marx.
E é, precisamente, quando – às grandes maiorias – se proíbe o direito de participarem como sujeitos da história, que elas se encontram dominadas e alienadas. O intento de ultrapassagem do estado de objetos para o de sujeitos – objetivo da verdadeira revolução – não pode prescindir nem da aço das massas, incidente na realidade a ser transformada, nem de sua reflexão.
Idealistas seríamos se, dicotomizando a aço da reflexão, entendêssemos ou afirmássemos que a simples reflexão sobre a realidade opressora, que levasse os homens ao descobrimento de seu estado de objetos, já, significasse serem eles sujeitos. Não há, dúvida, porém, de que, se este reconhecimento ainda não significa que sejam sujeitos, concretamente, “significa, disse um aluno nosso, serem sujeitos em esperança” [4]. E esta esperança os leva à busca de sua concretude.
[4] Fernando Garcia, hondurenho, aluno nosso, num curso para latino-americanas em Santiago, Chile, 1967.
Falsamente realistas seremos se acreditarmos que o ativismo, que não é ação verdadeira, é o caminho para a revolução.
Críticos seremos, verdadeiros, se vivermos a plenitude da práxis. Isto é, se nossa aço involucra uma crítica reflexão que, organizando cada vez o pensar, nos leva a superar um conhecimento estritamente ingênuo da realidade. Este precisa alcançar um nível superior, com que os homens cheguem à razão da realidade. Mas isto exige um pensar constante, que não pode ser negado às massas populares, se o objetivo visado é a libertação.
Se a liderança revolucionária lhes negar este pensar se encontrará, preterida de pensar também, pelo menos de pensar certo. É que a liderança não pode pensar sem as massas, nem para elas, mas com elas.
Quem pode pensar sem as massas, sem que se possa dar ao luxo de não pensar em torno delas, são as elites dominadoras, para que, assim pensando, melhor as conheçam e, melhor conhecendo-as, melhor as dominem. Dai que, o que poderia parecer um diálogo destas com as massas, uma comunicação com elas, sejam meros “comunicados”, meros “depósitos” de conteúdos domesticadores. A sua teoria da ação se contradiria a si mesma se, em lugar da prescrição, implicasse na comunicação, na dialogicidade.
Por que não fenecem as elites dominadoras ao não pensarem com as massas? Exatamente porque estas são o seu contrário antagônico, a sua “razão”, na afirmação de Hegel, já, citada. Pensar com elas seria a superação de sua contradição. Pensar com elas significaria já, não dominar.
Por isto é que a única forma de pensar certo do ponto de vista da dominação é não deixar que as massas pensem, o que vale dizer: é não o pensar com elas.
Em todas as épocas os dominadores foram sempre assim - jamais permitiram às massas que pensassem certo.
“Um tal Mr. Giddy, diz Niebuhr, que foi posteriormente presidente da sociedade real, fez objeções (refere-se ao projeto de lei que se apresentou ao Parlamento britânico em 1807, criando escolas subvencionadas) que se podiam ter apresentado em qualquer outro país: “Por especial que pudesse ser em teoria o projeto de dar educação às classes trabalhadoras dos pobres, seria prejudicial para sua moral e sua felicidade; ensinaria a desprezar sua missão na vida, em lugar de fazer deles bons servos para a agricultura e outros empregos; em lugar de ensinar-lhes subordinação os faria rebeldes e refratários, como se pôs em evidência nos condados manufatureiros; habilitá-los-ia ler folhetos sediciosos, livros perversos e publicações contra a cristandade; torná-las-ia insolentes para com seus superiores e, em poucos anos, se faria necessário à, legislatura dirigir contra eles o braço forte do poder’. [5]
[5] Reinold Niebhur, Moral Man and lmmoral Society, Nova Iorque, The Scribner Library, 1960, pp. 118-9.
No fundo, o que o tal Mr. Giddy, citado por Niebhur, queria, tanto quanto os de hoje, que não falam tão cínica e abertamente contra a educação popular, é que as massas não pensassem. Os Mr. Giddy de todas as épocas, enquanto classe opressora, ao não poderem pensar com as massas oprimidas, não podem deixar que elas pensem.
Desta forma, dialeticamente, se explica por que, não pensando com, mas apenas em torno das massas, as elites opressoras não fenecem.
Não é o mesmo o que ocorre com a liderança revolucionária. Esta, ao não pensar com as massas, fenece. As massas são a sua matriz constituinte, não a incidência passiva de seu pensar. Ainda que tenha também de pensar em torno das massas para compreendê-las melhor, distingue-se este pensar do pensar anterior. E distingue-se porque, não sendo um pensar para dominar e sim par libertar, pensando em torno das massas, a liderança se dá ao pensar delas.
Enquanto o outro é um pensar de senhor, este é um pensar de companheiro. E só assim pode ser. É que, enquanto a dominação, por sua mesma natureza, exige apenas um polo dominador e um polo dominado, que se contradizem antagonicamente, a libertação revolucionária, que busca a superação desta contradição, implica aa existência desses polos e mais numa liderança que emerge no processo desta busca. Esta liderança que emerge, ou se identifica com as massas populares, como oprimida também, ou não é revolucionária. Assim é que, não pensar com elas para, imitando os dominadores, pensar simplesmente em torno delas, não se dando a seu pensar, é uma forma de desaparecer como liderança revolucionária.
continua página 075...
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PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
23ª Reimpressão
PAZ E TERRA
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Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (a)
Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (b)
Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (c)
___________________
© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)
Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)
1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
-371.332
77-0064 CDD-371.3:376.76
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Conselho Editorial
Antonio Candido
Fernando Gasparian
Fernando Henrique Cardoso
(licenciado)
1994
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido
"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores."
Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (a)
Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (b)
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