sábado, 20 de fevereiro de 2021

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (5a.) A Sra. Epantchiná era muito ciosa...

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


5a.



A Sra. Epantchiná era muito ciosa da dignidade da sua família. Como a deveria ter chocado ouvir assim, sem o menor preparo, que esse Príncipe Míchkin, o último do nome, de quem já tinha ouvido falar, não passava de um pobre idiota, quase um pedinte, pronto até a aceitar a caridade alheia! O general muito propositadamente quis produzir efeito, impressionando-a de súbito, de modo que com a atenção volvida em outro rumo ela esquecesse o caso das pérolas, atraída por uma nova sensação. Sempre que alguma coisa acontecia de extraordinário, a Sra. Epantchiná dava em abrir desmesuradamente os olhos, derrubando o corpo para trás, ficando assim a fixar o que em frente dela estivesse, sem poder articular palavra.

Era uma mulher de compleição forte, da mesma idade do marido, com os cabelos negros ainda abundantes começando a pratear aqui e acolá. Mais alta do que baixa, tinha nariz aquilino, faces fundas amareladas e lábios finos e cerrados. Testa alta mas estreita, sob a qual os grandes olhos cinzentos mostravam, às vezes, uma inesperada expressão. Manifestara, em tempos, a fraqueza de supor esses olhos particularmente fascinantes, convicção essa de que ninguém jamais conseguira demovê-la.

- Recebê-lo? Queres que eu o receba agora, já? - e a dama estateladamente abriu os olhos, o mais que pôde, encarando Iván Fiodorovitch, que ficou logo sem jeito diante dela.

- Ora, tratando-se de quem se trata, não é necessário nenhuma cerimônia; se tu ao menos pudesses fazer uma ideia de como ele é, querida! - apressou-se o general a explicar. - É completamente uma criança, tem um feitio quase patético! Imagina tu que lhe dão ataques, de vez em quando. Acaba de chegar da Suíça, e veio diretamente da estação para aqui. Veste-se desajeitadamente, como um alemão, e está literalmente sem um copeque. Só lhe falta chorar. Dei-lhe vinte e cinco rublos e pretendo arranjar-lhe um lugarzinho de escrevente no nosso escritório. E lhes sugiro, madames que lhe ofereçam lanche, pois estou a jurar que está com fome.

- Tu me apavoras! - e a generala foi voltando a si, aos poucos. - Está com fome e tem ataques! Mas que espécie de ataques?

- Acalma-te, que os ataques não lhe sobrevêm assim amiúde. Além do que, é dócil como criança de colo e muito instruído. Gostaria de recomendar-lhes, madames (dirigiu-se outra vez às filhas), que o submetessem a um examezinho, a ver para o que dará.

- Um exame? - balbuciou a esposa. rolando os olhos, no máximo do espanto, do marido até às filhas e destas, outra vez, até ao general.

- Oh! Querida, não tomes as coisas intencionalmente... e sim de modo natural. Como já disse, passou-me pela cabeça tratá-lo amigavelmente; acho ser até um ato de caridade introduzi-lo um pouco em família.

- Introduzi-lo na família? Da Suíça?

- Agora já não se pode recuar. Convidei-o. Mas repito mais uma vez, seja como decidires. Pensei nisso por vários motivos: primeiro, ter ele o teu nome, ser talvez até parente teu; depois, a seguir, não ter ele onde pousar a cabeça. Supus que te fosse de certo modo interessante vê-lo, já que, de fato, pertences à mesma família.

- Naturalmente, mamãe. E se não é preciso fazer cerimônia com ele! E ainda por cúmulo está com fome e depois de uma viagem dessas! Por que não havemos de lhe dar alguma coisa a comer, já que não tem para onde ir? - opinou Aleksándra, que era a mais velha. - E se é uma criança, ainda! Podíamos até brincar de cabra-cega com ele!

- De cabra-cega? Que é que você está dizendo?

- Ora, mamãe, deixe de coisas! - interrompeu Agláia, zangando-se.

A segunda filha, Adelaída, que estava de ânimo alegre, não se pode conter e rompeu em uma risada.

- Mande-o buscar, papai. Mamãe já deu licença - decidiu Agláia.

O general tocou a campainha e mandou introduzir o príncipe.

- Está bem, mas com a condição de que vocês lhe passem um guardanapo em volta do pescoço, quando ele se sentar à mesa - obtemperou a generala. - E chamem Fiódor ou Mávra para ficarem atrás da cadeira dele tomando conta enquanto estiver comendo. Estará ao menos, no momento, a salvo desses ataques? É muito gesticulador?

- Oh! Não fales assim. É muito bem-educado, e tem maneiras encantadoras. Apenas é um pouco simplório, mas nem sempre. Mas, ei-lo que vem. Faça o favor de entrar. Deixa que te apresente o Príncipe Míchkin, último de seu nome, teu homônimo, ou melhor, xará e talvez até teu parente. Recebe-o bem e sê gentil para com ele. Como o almoço vai ser servido, príncipe, queira dar-nos a honra... E desculpe-me, pois tenho de me apressar, estou atrasado...

- Nós sabemos perfeitamente por que é essa sua pressa... - disse-lhe a esposa, com ênfase.

-Estou com pressa, estou com pressa, querida. Estou atrasado. Deem-lhe os álbuns, madames. Peçam-lhe que escreva qualquer coisa para vocês; tem uma letra que é um assombro. Vocês deveriam ver como ele escreveu para mim, em antigos caracteres: “O hegúmeno Pafnútii apôs aqui a sua assinatura”. Bem, adeus!

- Pafnútii? O abade? Espera um minuto, para um pouco. Aonde vais e quem é Pafnútii? - chamava-o a esposa, com franco aborrecimento que, ante a fuga do marido, se transformou em agitação.

- Sim, sim, querida, houve um hegúmeno chamado Pafnútii, que viveu há muito tempo. Mas tenho de sair, já devia estar na casa do conde; imagina tu que ele próprio marcou hora... Adeus, por enquanto, príncipe!

Em passadas largas, o general se retirou.

- Eu sei quem é o conde que ele vai ver! - disse com muita finura Lizavéta Prokófievna, volvendo os olhos irritadamente para o príncipe. - Que foi? - recomeçou ela, impaciente e amuada, tentando recordar-se. - Ora bem, que foi? Ah! Sim, falávamos do hegúmeno...

- Mamãe! - ia recomeçar Aleksándra, mas Agláia chegou a bater com o pé.

- Não me interrompam - falou a generala martelando cada palavra. - Também tenho o direito de saber. Sente-se aqui, príncipe, nesta poltrona. Aqui, em frente de mim. Não, aqui, perto do sol, mais para a claridade, para eu poder ver bem. Afinal, que hegúmeno foi esse?

- O hegúmeno Pafnútii - respondeu Míchkin, com atenção e seriedade.

- Pafnútii? Há!... Isto é interessante. Bem, e depois, que é que houve com ele? - fazia estas perguntas impacientemente, às pressas, de modo cortante, conservando os olhos fixos no príncipe. E, à medida que ele respondia, ela ia meneando a cabeça, a cada palavra.

- O hegúmeno Pafnútii do século XIV - começou Míchkin - era o Superior do Mosteiro do Volga naquela parte que atualmente é a província de Krostoma. Foi famoso por sua santa vida. Visitou os tártaros, na sua Horda de Ouro, ajudou na distribuição da governança pública tendo, assim, de assinar diversos documentos. Vi uma cópia da sua assinatura. Gostei da letra e a imitei. Quando o general manifestou desejos de ver a minha letra, ainda agora, para me arranjar um emprego, escrevi várias sentenças em diferentes caligrafias e entre outras coisas escrevi: “O hegúmeno Pafnútii apôs aqui a sua assinatura” com a própria letra do hegúmeno. O general gostou muito e foi por causa disso que esteve a falar ainda agora.

- Agláia, tome nota de Pafnútii; ou melhor, escreva, senão eu me esqueço. Mas julguei que se tratasse de coisa mais interessante. E onde ficou essa imitação da assinatura dele?

- Creio que ficou no escritório do general, sobre a mesa.

- Mande alguém trazer, já.

- Não preferiria a senhora que eu escrevesse aqui, outra vez?

- Naturalmente, mamãe - comentou Aleksándra - mas o melhor agora é almoçarmos primeiro; estamos com apetite.

- Isso mesmo - concordou a mãe. - Venha, príncipe. Está com disposição?

- Sim, comecei a sentir fome agora e lhe fico muito grato.

- É uma coisa ótima que o senhor seja assim tão delicado. Verifico, com prazer, que o senhor não se aproxima, sequer, da criatura estranha que me foi descrita como sendo o senhor. Venha. Sente-se aqui, diante de mim - insistiu, fazendo Míchkin sentar-se, mal entraram na saleta de almoço. - Quero examiná-lo. Aleksándra, Adelaída, ajudem-me a servir o príncipe. Realmente ele não é nenhum doente, conforme... Creio não ser necessário o guardanapo passado ao pescoço durante a refeição, não é mesmo, príncipe? Costumava usá-lo, príncipe?

- Só até aos sete anos, creio eu; mas agora, durante as refeições, ainda o uso, mas sobre os joelhos.

- Muito bem. E os seus ataques?

- Ataques? - o príncipe ficou um pouco Zonzo. - Agora são mais raros. Mas, não sei, já me disseram que o clima aqui me fara piorar

- Como ele fala direitinho! - e a senhora virou-se para as filhas e anuía ainda, com a cabeça, a cada palavra dele. - Eu não esperava isso. Então tudo não passou de brincadeira e invencionice do meu marido, como de hábito. Anime-se, príncipe, e vá me dizendo onde nasceu, e depois, para onde o levaram. Quero ficar sabendo tudo. O senhor me interessa sobremodo.

O príncipe agradeceu e, enquanto comia com excelente apetite. começou a repetir a história que já tinha contado várias vezes essa manhã. A dona da casa cada vez demonstrava estar mais contente com ele. As meninas já o ouviam com maior atenção; as relações se estreitavam. Veio a verificar-se que Míchkin conhecia muito bem a sua árvore genealógica. Mas, apesar dos esforços gerais, não houve meios de descobrirem que espécie de parentesco próximo poderia haver entre ele e a senhora generala. Entre os avôs e as avós um distante parentesco podia ser descoberto. A senhora ficou particularmente satisfeita com essa averiguação tão evidente, pois muito raramente lhe era dado ensejo de discorrer sobre a sua linhagem. Foi assim, com entusiasmo que se levantou da mesa.

- Venham todos vocês! Vamos para a sala de estar - disse ela. - Tomaremos lá o café. Temos uma sala onde nos reunimos sempre - ia explicando ao príncipe, enquanto o conduzia. - Minha pequena sala de conversa, onde nos reunimos quando estamos sozinhas e onde cada uma se entretém com o seu trabalho. Aleksándra, minha filha mais velha, esta aqui, toca piano, lê, ou costura; Adelaída pinta paisagens e retratos (mas não há meio nunca de acabar coisa alguma) e Agláia fica sentada e não faz nada. Eu, tampouco, não sou muito boa em trabalhos; não consigo ter nada acabado. Bem, chegamos. Sente-se aqui, príncipe, perto do fogo, e me conte qualquer coisa. Quero saber de que jeito o senhor conta uma história. Quero orientar-me bem a seu respeito e quando encontrar a velha Princesa Bielokónskaia hei de falar a respeito do senhor. Quero que todos se interessem pelo senhor. Vamos, conte alguma coisa.

- Mas, mamãe, que modos de pedir que lhe conte uma história... - redarguiu Adelaída que tinha ido sentar-se junto ao cavalete e já segurava os pincéis e a paleta, diante do trabalho; copiava de uma gravura uma paisagem começada havia muito tempo.

Aleksándra e Agláia sentaram-se em um pequeno sofá, cruzando os braços, preparadas para ouvir a conversa. Míchkin percebeu que era o centro de atenção de todas. E então Agláia observou:

- Pois eu nunca haveria de contar nada se me pedissem deste modo.

- Por que não? Que há de mais nisso? Por que não há de me contar qualquer coisa? Ele tem língua. Quero ver como descreve os fatos. Vamos, seja o que for. Diga-nos se apreciou a Suíça, e quais as suas primeiras impressões lá. Vocês vão ver, ele já vai começar e muito bem.

- Foi uma impressão deveras forte... - começou o príncipe.

- Ora, bravos, estão vendo? - aplaudiu a impetuosa senhora dirigindo-se às filhas. - Não disse que ele ia começar?

- Mas, mamãe, deixe-o falar, ao menos! - retrucou Aleksándra, contendo-a. E ciciou ao ouvido de Agláia: Este príncipe está com mais cara de ser um finório do que um idiota.

- Nem há dúvida; vi isso logo - respondeu Agláia. - E é intolerável fingir assim. Estará ele tentando, com isso, alguma vantagem?

E o príncipe repetiu:

- A minha primeira impressão foi muito forte. Quando me tiraram da Rússia e me conduziram através de uma porção de cidades alemãs, eu não fazia mais do que contemplá-las calado e me lembro de que não fazia perguntas. Eu acabara de ter uma série violenta e lancinante de ataques da minha doença. Sempre que piorava e os acessos vinham com mais frequência, eu caía depois em uma completa estupefação. Perdia a memória e, embora o meu cérebro trabalhasse, parecia que a sequência lógica das minhas ideias se tinha quebrado. Era incapaz de ligar mais do que dois ou três pensamentos. Pelo menos, é a impressão que me dava. Depois os acessos abrandaram e escassearam e me tornei outra vez forte e sadio, como estou agora. Lembro-me que vivia insuportavelmente triste, querendo sempre chorar, permanentemente assustado e com pavor. O mais chocante era tudo me parecer estranho. Tudo me parecia alheio e isso me oprimia... Mas esse estado soturno se levantou, lembro-me bem, uma tarde, ao chegar a Basiléia, na Suíça. O que me despertou foi o zurro de um jumento, na praça do mercado. O jumento mexeu comigo e, não sei por que estranho motivo, simpatizei com ele; e repentinamente tudo se tornou claro na minha cabeça.


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