O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Primeira Parte
5c.
Até então estivera contemplando Agláia com um sorriso gentil e tímido. Mas ao fazer tal afirmativa deu uma risada, passando a olhá-la com jovialidade.
- Isso é que é ser modesto...
O tom da voz de Agláia tendia para a irritação.
- Gosto de ver moças corajosas. Conto-lhes uma destas e não se impressionam! Pois eu fiquei estarrecido com o que esse homem me contou... Essa coisa de dividir os seus últimos cinco minutos... Palavra, tenho até sonhado com essa história...
Tornou a olhar para as suas ouvintes, examinando-as uma por uma.
- Ficaram zangadas comigo, por alguma coisa que eu tenha feito sem querer?
Olhava-as agora bem no rosto, parecendo um tanto embaraçado, assim de repente.
- Zangadas? Nós? Por quê? - exclamaram as três, surpreendidas.
- Ora.., por haver eu assumido todo este tempo um ar de quem recita um sermão...
Elas riram muito.
- Pelo amor de Deus, não me tomem por pretensioso. Sei por experiência própria que tenho vivido menos do que os outros e que conheço a vida muito menos do que qualquer outra pessoa. Natural, pois, que às vezes eu diga tolices.
E perturbou-se completamente.
- Se é feliz, conforme disse, deve ter vivido mais e nunca menos do que os outros. Não vejo por que haja de nos pedir desculpas - redarguiu Agláia, com timbre irritado. - E não suponha, por favor, que nos esteve pregando um sermão. E nem se trata, da sua parte, de nenhum sinal de superioridade, pois, com esse seu quietismo, fácil lhe é encher de felicidade um século de existência. Ou lhe mostrem uma execução, ou lhe façam um aceno com um simples dedo, para o senhor tanto faz, pois qualquer dos casos lhe dará margem para fazer edificantes reflexões, aperfeiçoando seu estado de beatitude. Ora, assim a vida é muito fácil.
- Não, compreendo, Agláia, que você esteja sempre “de ponta” com o que lhe dizem - disse a generala ao reparar no feitio do príncipe. Tampouco entendo o que você está aí a retrucar. Dedo de quem? Qual dedo? Não diga asneiras. O príncipe falou magnificamente; pena que o assunto tenha sido um pouco triste. Qual o motivo de pretender descoroçoá-lo? Quando começou, ele estava risonho; agora está sombrio.
- Está muito bem, mamãe. Escute, príncipe, que pena o senhor não ter assistido a uma execução... porque eu gostaria de lhe perguntar uma coisa.
Mas Míchkín prontamente respondeu:
- Já assisti a uma.
- Já? - entusiasmou-se Agláia. Bem me pareceu. Isso é o cúmulo! Se já assistiu a uma coisa dessas como é que tem a coragem de declarar que sempre foi feliz? Não estou eu dizendo uma verdade que o contradiz?
- Mas então, na sua aldeia, havia execuções? quis saber Adelaída.
- Vi uma, mas foi em Lião. Estava de visita à cidade, com Schneider. E ele me levou. Tivemos essa oportunidade logo que acabamos de chegar.
- Bem. Gostou? O que viu foi edificante e instrutivo? - persistia Agláia.
- Absolutamente não gostei e até adoeci depois. Devo confessar que fiquei pregado ali, no lugar, sem poder tirar os olhos daquilo.
- Eu faria o mesmo - afirmou Agláia. - Eles implicam com as mulheres que vão assistir. Os jornais até censuram.
- É lógico. E se consideram que não é próprio para mulheres, inferem que o é para os homens. Justifica-se.
- Congratulo-me com essa lógica! E naturalmente também pensa assim, príncipe!?
Adelaída interrompeu, perguntando:
- Como foi essa execução?
- Não me sinto muito inclinado agora a contar.
Míchkin estava meio atarantado, de sobrancelhas franzidas.
- Por que essa má vontade em nos relatar isso? - indagou Agláia, com certo ar escarninho.
- É que ainda agora mesmo acabei de descrever essa execução.
- Agora mesmo? A quem? Ora essa!
- Ao lacaio da entrada, enquanto esperava.
- Qual? - ouviu ele de todos os lados.
- Um que fica na saleta, que tem os cabelos meio encanecidos e a cara vermelha; enquanto estive sentado na antecâmara, esperando falar com Iván Fiódorovitch
- Que despropósito! Isso é até original! - sentenciou a generala.
- Ora, o príncipe é um democrata - sublinhou Agláia. Bem, se contou a Aleksiéii como há de recusar a nós outras?
- Já estou preparada para Ouvir - disse Adelaída.
E Michkin começou, dirigindo-se a esta:
- Ainda agora me veio ao espírito um pensamento, quando me pediu um assunto para o seu quadro (Míchkin animava-se logo, confiante): sugerir-lhe que pintasse o rosto de um homem condenado! Um momento antes da guilhotina cair, quando ele ainda estivesse de pé no cadafalso, antes de se curvar sobre o cepo.
- O rosto? Só o rosto? - interessou-se Adelaída. Seria um tema estranho. E que espécie de quadro produziria isso?
- Não sei. Mas, por que não pintar? - insistiu Míchkin com ardor. Vi uma tela mais ou menos assim, em Basiléia, não há muito tempo. Gostaria de descrevê-la para as senhoritas. Um dia destes o farei. Impressionou-me como quê!
- Não deixe de nos contar depois como era esse quadro de Basiléia - disse Adelaída. Mas, por hoje, nos explique como devo pintar a execução. Poderia dizer-me como é que o senhor próprio a imaginaria? A cabeça como deve ser? E tem de ser só a cabeça? Como é o rosto?
- Praticamente tem de ser no minuto que antecede à morte - começou Míchkin, com muita presteza, servindo-se de suas recordações e dando até mostras de aflição, como não querendo esquecer nenhuma minúcia de importância relativa ao caso.
- O momento em que ele acabou de subir a escadinha e parou sobre o cadafalso. Bem nesse instante ele olhou na minha direção. Olhei para a sua face e compreendi tudo. Será possível contar isso? Desejo, sim, desejo muito que a senhorita ou qualquer outra pessoa pinte isso. Melhor se fosse a senhorita. Já me veio a ideia de que a senhorita fizesse bem um quadro desse gênero. Mas, veja bem, tem-se de imaginar tudo quanto sucedeu antes, tudo, tudo! O condenado estava na prisão e pensava que a execução seria dentro de uma semana, contava com as formalidades de praxe e calculava que os papéis levariam uma semana para voltar. Mas, por uma circunstância fortuita, o prazo foi reduzido. Às cinco da manhã ele estava dormindo. Fins de outubro. As cinco da manhã ainda é frio e escuro. O superintendente da prisão chega sem nenhum rumor acompanhado do guarda, e lhe toca o ombro, com muito cuidado. Ele se apoia no cotovelo e se ergue um pouco. Vê a lanterna. Pergunta: “Que é?”. “A execução será às dez horas”. Não pôde apanhar bem o sentido disso, por estar apenas semi- acordado, mas acabou objetando que a sentença demoraria no mínimo uma semana em seus trâmites. Nisto acordou de todo, deixou de protestar, ficou mudo. Assim me contaram. Depois falou: “É duro assim de repente! E de novo se calou, não falando daí em diante mais nada. As três ou quatro horas seguintes foram esgotadas nos usuais preparativos: receber o sacerdote, depois o almoço, no qual lhe serviram vinho, café e carne (não é isso um escárnio? Pensem na crueldade disso! E dizer-se que, afinal, esses inocentes funcionários agem de boa-fé, convencidos de que estão praticando um último ato de humanidade!) e depois a toilette (sabem que é isso?); só então é que o levaram através da cidade, para o suplício. Penso que também este homem, como aquele outro, deve ter imaginado, enquanto era levado através da cidade, que ainda lhe sobrava um tempo sem fim para viver. Devia ir pensando, pelo caminho: “Pois não é que ainda falta muito tempo! Tenho três ruas! Devo passar por esta, até o fim, depois ainda tem a próxima antes de chegar a terceira; à esquerda há um padeiro, na terceira rua... sim... à esquerda. Ainda falta muito para chegar diante da casa do padeiro... Em torno da carreta, multidão, barulho e exclamações. E ele tinha de suportar dez mil faces, vinte mil olhos! E, pior do que isso, tinha de suportar o pensamento seguinte: “São dez mil, mas nenhum deles vai ser executado; eu é que vou ser executado”. Bem, todo esse preparativo. Agora, rente ao cadafalso, uma escadinha. Diante desses três degraus, começou a chorar, ele que tinha sido um forte, que fora um grande criminoso, segundo me disseram. O sacerdote não o deixava um só momento; acompanhou-o desde a carroça e não deixou de lhe falar todo o tempo. Duvido que tenha escutado. E se começou a escutar não deve ter apreendido mais do que duas palavras. Deve ter sido assim. E eis que começou a subir os degraus. Suas pernas estavam ligadas uma à outra, de maneira que teve de subir dando uns pulinhos lúgubres. O sacerdote, que era um homem inteligente, deixou de lhe falar, só lhe dando a cruz para que a beijasse. Ao pé da escada, ele estava lívido e, quando chegou à plataforma do cadafalso, parou e estava tão branco como papel, como papel imaculado sobre que se escreve. As suas pernas devem ter fraquejado, depois devem ter endurecido como paus. Eu pensava comigo que ele devia estar se sentindo tão mal como se uma coisa na garganta o sufocasse fazendo-lhe uma espécie de êmbolo. As senhoritas nunca sentiram isso, quando estão com temor, ou nos momentos terríveis em que conservamos toda a nossa razão, mas ela não tem mais nenhum poder? Penso que quem quer que se defronte com a destruição inevitável, por exemplo, ao perceber que uma casa vai desabar, deve sentir um desejo só, instantâneo e imediato: sentar-se e fechar os olhos, à espera... venha o que vier... Quando essa fraqueza estava chegando, o sacerdote em silêncio e em um movimento lépido lhe chegou a cruz aos lábios, erguendo-a até ele, uma pequena cruz de prata maciça, conservando-a assim à altura dos lábios, muito tempo. Cada vez que a cruz lhe tocava os lábios, ele reabria os olhos e parecia vir à vida por uns poucos segundos; e as suas pernas se moviam. Tornava a beijar a cruz, veementemente Beijava-a com pressa, como para não se esquecer de se munir de alguma coisa de que muito necessitava, muito embora eu duvide que naquele momento lhe viessem sentimentos religiosos propriamente. E assim foi, até que o levaram para o cepo. É incrível, como são raríssimas as pessoas que desfalecem nesse momento. Pelo contrário, o cérebro fica tão aguçado que decerto trabalha em uma progressão tremendamente centuplicada, qual máquina em alta velocidade. Quer me parecer que nessa hora sobrevenha um agudo tumultuar de ideias de toda sorte, sempre inacabadas e também absurdas, completamente gratuitas e inadequadas. “Aquele homem está me olhando. Tem uma verruga na cara. Um dos botões do casaco do algoz está enferrujado”. E uma porção de outras coisas que nessa hora vêm à tona... Há um ponto que se grava indelével, um eixo ao qual a pessoa não se pode eximir, já que tudo o mais roda à sua volta. E pensar que tem de ser assim até o último quarto de segundo, quando a cabeça já está sobre o cepo, à espera... e sabe! Subitamente ouve em cima de si o retinir do aço. Sim, tem de ouvir isso. Se eu estivesse lá, curvado, ficaria bem atento a fim de ouvir e de escutar! Dura apenas a décima parte de um segundo, mas a pessoa sabe que escutará. E calculem que ainda é ponto de controvérsia saber se, um segundo depois de cortada, a cabeça sabe que foi cortada! Que ideia! E se eu lhes disser que cinco segundos depois ela ainda sabe!? Pinte o cadafalso de maneira que só o último degrau possa ser visto distintamente. No primeiro plano, o criminoso tendo acabado de o subir. Pinte-lhe a cabeça e o rosto, branco como papel; o sacerdote erguendo a cruz. O homem vorazmente estendendo os lábios azuis e olhando... e com que olhos! E ciente de tudo. Uma cruz e uma cabeça, mais nada, eis o quadro. O rosto do sacerdote e o do carrasco. Os seus dois ajudantes. E umas poucas cabeças e olhos, embaixo, pintados, se quiser, no plano posterior, em meia luz, assim como guarnição viva de tela... Eis o quadro!
Cessando de falar, Míchkin ficou olhando para elas.
- Não me digam que isso é quietismo - comentou consigo mesma Aleksándra.
Mas Adelaída disse alto:
- E agora nos conte como foi que o senhor se apaixonou...
O príncipe olhou-a, admirado.
- Escute - tornou Adelaída, de modo um tanto veemente - o senhor nos prometeu falar sobre a tela de Basiléia, mas eu preferia que nos contasse agora os seus namoros. Não negue que já esteve apaixonado! Além disso, logo que começa a descrever qualquer coisa, deixa de ser um filósofo.
E nisto Agláia observou, inesperadamente:
- Mal o senhor acaba de contar qualquer coisa fica assim como se estivesse envergonhado... Por que é isso?
- Que despautério, menina!... - ralhou a mãe.
E Aleksándra concordou:
- Que falta de propósito!...
- Não acredite em Agláia, príncipe - pediu a Sra. Epantchiná, virando-se para ele. - Ela faz isso de caso pensado, por malícia; todavia não a eduquei assim tão mal. Oh! Não pense mal delas por estarem mexendo com o senhor desse jeito. Não pense que seja maldade. Eu sei que elas já estão gostando do senhor. Conheço o rosto de cada uma delas.
- Eu também conheço - disse o príncipe com uma ênfase toda especial.
- Como assim? - perguntou Adelaída, com curiosidade.
- Que sabe o senhor a respeito de fisionomias? - debicaram as outras duas também.
Míchkin, porém, não respondeu e ficou sério. Todas aguardavam a sua resposta.
- Eu direi mais tarde - disse, com delicadeza e seriedade.
- O senhor está mais é querendo suscitar a nossa curiosidade - exclamou Agláia. - E para que essa solenidade?
- Ora bem - interveio outra vez Adelaída, com precipitação. - Se deveras é um conhecedor de rostos, certamente já teve algum amor, e a minha conjetura, ainda há pouco, foi certa. Conte-nos, então...
- Não, nunca me apaixonei - respondeu o príncipe tão gentilmente como antes e com o mesmo ar grave. - Eu fui feliz, mas de um modo diferente.
- Como? Em quê?
- Então, se querem, está bem, vou contar - disse.
E se concentrou, meditando profundamente.
continua página 060...
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