O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Primeira Parte
5b.
- Um jumento? Isso é originalíssimo! - observou a generala. Aliás, pensando bem, não há nada de estrambótico nisso! Qualquer de nós pode sem mais aquela ficar gostando de um jumento! - anuiu ela lançando um olhar impaciente às filhas, que se tinham posto a rir. - Já aconteceu na mitologia. Adiante, príncipe.
- Fiquei, desde então, gostando terrivelmente de jumentos. Eles têm uma atração toda especial por mim. Comecei a me informar bem, a respeito deles, pois antes nunca tinha visto nenhum e imediatamente compreendi que criatura útil ele é; industrioso, forte, paciente, barato, resignado... Foi, pois, através desse jumento, que a Suiça começou a me fascinar, a ponto da minha melancolia passar completamente.
- Isto tudo é formidável, mas passemos além do jumento. Passemos a outra coisa. Por que é que você continua rindo, Agláia? E você, Adelaída? O que o príncipe nos contou sobre o jumentinho foi deveras magnífico. Ele viu, ao passo que vocês não viram nunca nenhum. Vocês ainda não estiveram no estrangeiro!
- Eu já vi um Jumento, mamãe - asseverou Adelaída. E eu também já ouvi um - garantiu Agláia.
E as três moças riram-se, outra vez. O príncipe riu com elas.
- Isso não fica bem para vocês - ralhou a mãe. - Deve desculpá-las, príncipe; são sempre assim, alegres. Por mais que eu zangue gosto muito delas. São teimosas, são umas cabeças tontas. Por quê? - e Míchkin ria. - Eu faria o mesmo, no lugar delas. Mas voltemos ao jumentinho. Trata-se de uma criatura muito útil e de muito bom coração. E o senhor, príncipe, tem o senhor também bom coração? Pergunto por curiosidade.
Riram se todas, de novo.
- Mas.., outra vez esse aborrecido jumento?! Já não estava pensando mais nesse bicho. Acredite-me, príncipe, falei sem nenhuma insinuação?...
- Oh! Eu sei! - e o príncipe desandou a rir.
- Já que, em vez de se zangar, o senhor ri, fico mais à vontade. Vejo que é um moço de muito bom coração - afirmou Lizavéta Prokófievna.
- Nem sempre, nem sempre!... - avisou Míchkin.
- Pois eu sou - garantiu categoricamente a dona da casa. -Ou, se prefere, vou lhe mostrar. É o meu único defeito, pois não convém ter sempre bom coração. Muitas vezes zango com estas meninas e ainda mais com Iván Fiódorovitch, mas o pior é que quando me zango é que verifico que tenho bom coração. Ainda agora, antes do senhor chegar, eu estava zangada e achava que não seria capaz de compreender coisa alguma. Sou assim, às vezes. Sou como uma criança. Obrigada pela lição, Agláia. Mas não estou dizendo inconveniência nenhuma. Não sou nenhuma maluca, como pareço, e como estas minhas filhas gostam de me fazer crer que eu seja. Tenho uma vontade própria e não me envergonho à toa. E digo isso sem malícia. Agláia, venha cá me dar um beijo, aqui.. Agora, basta de carinhos - disse depois de Agláia beijá-la com ternura nos lábios e na mão. - Adiante, príncipe. Vamos a ver se o senhor se lembra de qualquer coisa mais interessante do que um jumento.
- Não sei como se possa falar assim por encomenda - raciocinou Adelaída. - Eu, nem pensar direito poderia.
- Não se incomode, que o príncipe pode pensar por nós todas. pois é muito inteligente; pelo menos dez vezes mais esperto do que vocês, provavelmente mesmo umas doze vezes. Espero que não levem muito tempo para se darem conta disso, pois ele já lhes vai provar imediatamente. Não é, príncipe? Continue. E pode, por enquanto, deixar de lado o jumento. Que viu mais o senhor no estrangeiro além do jumento?
- Mas o jumento já bastou para provar que ele é bem esperto - redarguiu Aleksándra. - E foi bem interessante o que nos contou da sua condição de doente e como um golpe exterior fez com que as coisas todas o agradassem. Sempre me interessou saber como se perde a razão e como é que se recupera depois. Mormente quando ela volta sem se esperar.
- Sim, sim - gritou a mãe, impetuosamente. - Também sei que vocês, quando querem, são espertas. Bem, parem, chega de rir. O senhor ia falar sobre o cenário da Suíça, creio eu! E então?
- Chegamos a Lucerna e fiquei arrebatado pelo lago. Ao mesmo tempo que tal beleza me arrebatou, me deprimiu - confessou o príncipe.
- Mas... por quê? - indagou Aleksándra.
- Não sei por quê. Toda a paisagem fora do comum sempre me perturba e me deprime pela primeira vez - observou o príncipe. -Sinto ao mesmo tempo felicidade e angústia. Mas isso se dava mais quando eu estava doente.
- Como eu gostaria de ver o lago! - ponderou Adelaída. - Não sei por que ainda não fomos ao estrangeiro. Aqui, não há meios de obter assuntos para pintar, principalmente nestes dois últimos anos. O Oeste e o Sul já os pintei há muito. Príncipe, dê-me assunto para um quadro.
- De pintura, que sei eu? Mas me parecia que bastava olhar e pintar.
- Mas olhar, como? Não sei como olhar as coisas.
- Por que continua você a falar através de enigmas? - interrompeu-a a mãe. - Eu não sou capaz de baralhar as coisas assim. Que quer você dizer com essa história de não saber como olhar? Não tem olhos? Sirva-se deles! Se aqui você não pode ver, que fará no estrangeiro? Príncipe, acho que vai ser necessário o senhor nos explicar como é que se veem as coisas!
- Sim, é melhor mesmo - reforçou Adelaída. - O príncipe aprendeu a ver as coisas no estrangeiro.
- Acho que não. Apenas me dei melhor lá. Se aprendi a ver as coisas, isso não sei. Mas, quase todo o tempo, fui muito feliz.
- Feliz? O senhor sabe como ser feliz? - exclamou Agláia. -E tem a coragem de dizer que não sabe se aprendeu a ver as coisas? O senhor pode até nos ensinar!
- Então, ensine! - riu Adelaída.
- Eu não posso ensinar nada. - e o príncipe também riu. - Passei quase todo o tempo que estive no estrangeiro, na mesma aldeia, uma aldeia suíça. Raramente fazia excursões e, essas mesmo, ali por perto. Que lhes hei de eu pois ensinar? No começo fui ficando menos obtuso e logo comecei a ficar mais forte. E pouco a pouco cada dia foi se tornando mais precioso para mim, à medida que o tempo ia passando e eu me dava conta disso direitinho. Deitava-me feliz e mais feliz me levantava. Explicar-lhes, porém, por que, não sei.
- Então não sentia vontade de sair? De ir a algum lugar? - perguntou Aleksándra.
- No começo, bem no começo, tive, sim. E até me tornei agitado. Estava continuadamente preocupado com a vida que devia levar. Queria saber o que era que a vida me tinha reservado. Ficava intoleravelmente ansioso, às vezes. A solidão, as senhoras sabem, dá isso. Havia lá uma pequena cascata. Era um fio de água, muito delgado, quase perpendicular, que se despenhava da montanha, espumoso, branco, espargindo gotículas em volta. Apesar de cair de uma grande altura não dava a impressão de ser alta. Estava longe de meia verstá, mas parecia estar a uns cinquenta passos. A noite gostava de ouvir o seu barulho. Em tais momentos eu estava sempre dominado por uma grande angústia. Às vezes, também, eu pasmava a encarar as geleiras ao meio-dia, sozinho, a meio caminho do cume da montanha, cercado por imensos pinheirais resinosos. Na crista da rocha, um castelo medieval em ruínas; lá embaixo, ao longe, no vale, a nossa pequenina aldeia, tenuemente visível; muita claridade solar; amplo céu azul. E um terrível silêncio. Então eu sentia que alguma coisa estava me subjugando e ficava a imaginar que se fosse andando sempre, até bem longe, sempre para diante. até alcançar aquela linha onde o céu e a terra se encontram e se tocam, então, lá sim, é que eu acharia a chave do mistério. Lá é que eu veria uma vida mil vezes mais rica e turbulenta do que a nossa. Sonhava com uma grande cidade, como Nápoles, por exemplo, cheia de palácios, ruídos, bramidos e vida. Sim; não sonhava pouco!... E depois concluía que até em uma prisão se pode encontrar uma vida afortunada!...
- Já li essa sua última reflexão, aliás tão edificante, no meu livro de leituras, quando eu tinha doze anos - desconcertou-o Agláia.
E Aleksándra disse: - Isso tudo é filosofia. O senhor é um filósofo e, quem sabe? Talvez tenha chegado aqui para ensinar.
- Talvez tenha razão - sorriu o príncipe - talvez seja eu um filósofo e saiba ensinar a pensar... É bem possível; é verdade. Talvez seja assim.
- E a sua filosofia é como a de Evlámpia Nikoláievna - interpôs Agláia. - Trata-se da viúva de um funcionário público que vem ver-nos mais como parenta pobre. Viver barato é o seu único objetivo na vida. Viver tão singelamente quão possível for, mas não fala senão de dinheiro. E tem dinheiro. É uma simuladora. É como a riqueza da vida do senhor dentro de uma prisão. Ou como os seus quatro anos de felicidade nos vales que o senhor trocaria por Nápoles. E olhe lá que teria ganho na troca, embora fosse um lucrozinho à-toa.
- Pode haver duas opiniões a respeito de prisão - sentenciou o príncipe. - Certo homem que viveu doze anos em uma prisão me disse uma coisa, depois. Ele era, como eu, um dos clientes do meu professor. Também tinha ataques e, às vezes, ficava excitado; chorava, queria matar-se. A sua vida na cadeia foi uma vida miserável asseguro-lhes, mas não, absolutamente, sem sentido. Imaginem que seus únicos amigos eram uma aranha e uma árvore que crescia debaixo da sua janela gradeada. Mas o melhor é deixar de lado este caso e lhes contar como vim a encontrar, no ano passado, um outro homem em cuja vida houve uma circunstância bem estranha, pelo fato de ser daquelas que raramente acontecem. Esse homem fora, uma vez, conduzido com mais outros ao cadafalso, levado por uma sentença de morte. Ia ser fuzilado por causa de uma ofensa política. Vinte minutos mais tarde, porém, lhe era lida a comutação da pena de morte pela de degredo. Todavia, no intervalo entre as duas sentenças, vinte minutos, ou talvez um quarto de hora, teve ele a convicção firme de que ia morrer. Sempre o escutei sequiosamente, quando se punha a recordar as sensações dessa ocasião e. muitas vezes, depois, eu o interrogava a respeito. Lembrava-se de tudo com perfeita exatidão e costumava dizer que lhe era impossível esquecer aqueles vinte minutos. A vinte passos do cadafalso, a cuja volta soldadesca e povaréu permaneciam, havia três postes fincados no chão, pois se tratava de vários condenados. Os três primeiros foram conduzidos até aos postes e amarrados, com a túnica dos condenados (um camisolão branco), os capuzes puxados bem por sobre os olhos para que nada vissem, sendo que então uma companhia de vários soldados se postou diante de cada poste. O meu amigo era o oitavo da lista e portanto tinha de ser um dos do terceiro turno. O padre se acercou de cada um, com a cruz. Ele só dispunha de cinco minutos mais para viver. Contou-me que aqueles cinco minutos lhe pareceram um infinito e vasto tesouro. Sentia tantas vidas naqueles cinco minutos que não precisava se incomodar com o último momento, tanto mais que havia subdividido o seu tempo da seguinte maneira: dois minutos para se despedir dos companheiros. Outros dois para o seu último pensamento geral. E, depois, o último, o quinto, para olhar em redor de si pela derradeira vez. Lembrava-se muito bem dessa extravagante subdivisão do seu tempo. Ia morrer aos vinte e sete anos, moço, forte e em plena saúde. Ao se despedir dos camaradas ocorreu-lhe perguntar a um deles qualquer coisa inadequada à circunstância, e achou muito curiosa a resposta. Após as despedidas, vieram os tais dois minutos que reservara para pensar em si mesmo. Sabia de antemão em que devia pensar. Desejava atinar, da maneira mais clara e pronta possível, como é que estava existindo agora, isto é, vivendo, e como é que dentro de três minutos seria qualquer outra coisa, alguém ou nada! E isso, como e onde? Resolvera solucionar tudo, de vez, naqueles dois únicos e últimos minutos. Não longe dali havia uma igreja cuja cúpula dourada cintilava aos raios solares. Como se lembrava de se ter posto a fixar, fascinado, aquela cúpula fulgurante de luz! Não podia tirar os olhos de lá! Era como se aqueles raios fossem já a sua outra futura natureza, visto como, dentro de três minutos, ele de um certo modo se iria fundir neles... A incerteza e um como que sentimento de pavor pelo mistério em que já estava quase ingressando foram terríveis. Disse-me, porém, que nada foi tão cruel naquele momento como este contínuo pensamento em forma de interrogação: “E se eu não morrer? Se eu for devolvido à vida? Ah! Que eternidade! Tudo seria meu! Eu transformaria cada minuto em outras tantas eternidades! Não desperdiçaria um segundo sequer! Contaria cada minuto que fosse passando, sem desperdiçar um único!” Disse-me que esta ideia lhe veio com tal furor, que desejou ser imediatamente fuzilado, logo, logo!...
Subitamente, Míchkin interrompeu o que estava contando. E elas ficaram à espera de que ele prosseguisse e tirasse qualquer conclusão.
- Acabou? - perguntou Agláia.
- Como?! Ah! Sim - disse Míchkin, despertando de um sonho momentâneo.
- Mas, para que nos contou esta história?
- É que qualquer coisa em nossa conversa me fez recordá-la...
- O senhor fala muito abruptamente... - observou Aleksándra. - Provavelmente quis dizer, príncipe, que nenhum momento da vida deve ser considerado como insignificante e que, muitas vezes, cinco minutos são um precioso tesouro. Isto tudo é muito louvável; mas deixe que lhe pergunte, já que esse amigo que contou tais horrores foi perdoado e teve a pena comutada, havendo sido presenteado portanto com essa “eternidade de vida”. Que fez ele dessa riqueza, depois? Viveu, de fato, contando cada minuto?
- Qual nada! Disse-me depois. Eu também tive curiosidade em saber e perguntei. Muito pelo contrário: perdeu muitos e muitos minutos.
- Ainda bem que isso prova que é impossível viver “contando cada minuto”. Por algum motivo é isso impossível.
- Sim, alguma razão deve haver - confirmou o príncipe. - Também eu penso assim e, no entanto, não acredito que...
- Acha então que vive mais sabiamente do que qualquer outro? - indagou Agláia.
- Sim, muitas vezes julgo assim.
- E não muda de opinião?
- Penso sempre do mesmo modo.
continua página 055...
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