terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (b)

Os Bruzundangas

Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo especial

Os Samoiedas

Vazios estais de Cristo, vós que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. 
SÃO PAULO aos Gálatas


continuando...

   Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles “libré” e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde, saíra triunfalmente, não havia minutos.
   Nas proximidades um coupé estacionava.
   Quis verificar bem as cousas circundantes; mas não houve tempo.
   Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes...
   Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjetamente, como se até ali não tivesse feito outra cousa, indagou:
   
— Vossa Excelência quer o carro?

   Como esta há, na Bruzundanga, muitas outras “histórias” que correm de boca em boca e se transmitem de pai a filho.
   Os literatos, propriamente, aqueles de bons vestuários e ademanes de encomenda, não lhes dão importância, embora de todo não desprezem a literatura oral. Ao contrário: todos eles quase não têm propriamente obras escritas; a bagagem deles consta de conferências, poesias recitadas nas salas, máximas pronunciadas na intimidade de amigos, discursos em batizados ou casamentos, em banquetes de figurões ou em cerimônias escolares, cifrando-se, as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de fantasias de menino, coletâneas de ligeiros artigos de jornal ou num maçudo compêndio de aula, vendidos, na nossa moeda, à razão de quinze ou vinte mil-réis o volume.
   Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudo quando empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia.
   São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por “expoentes” e não há moça rica que não queira casar com eles. Fazem-no depressa porque vivem pouco e menos que os seus livros afortunados. Há outros aspectos. Vamos ver um peculiar.
   O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literária lá conhecida por “Escola Samoieda”.
   Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. Digo — “caracteriza”, porque, como os senhores verão no correr destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das cousas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de querê-las totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das cousas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais do exército ou da marinha, não é exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho do uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional, que elas exigem em troca. A glória das letras só as tem, quem a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega. Os samoiedas, como vamos ver, contentam-se com as aparências literárias e a banal simulação de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em outras por instrução insuficiente ou viciada, quase sempre, porém, por falta de verdadeiro talento poético, de sinceridade, e necessidade, portanto, de disfarçar os defeitos com pelotiquices e passes de mágica intelectuais.
   Tendo convivido com alguns poetas samoiedas, pude estudar um tanto demoradamente os princípios teóricos dessa escola e julgo estar habilitado a lhes dar um resumo de suas regras poéticas e da sua estética.
   Esses poetas da Bruzundanga, para dar uma origem altissonante e misteriosa à sua escola, sustentam que ela nasceu do poema de um príncipe samoieda, que viveu nas margens do Ártico, nas proximidades do Óbi ou do Lena, na Sibéria, um original que se alimentava da carne de mamutes conservados há centenas de séculos nas geleiras daquelas regiões.
   Essa espécie de alimentação do longínquo príncipe poeta dava aos olhos de todos eles, singular prestígio aos seus versos e aos do fundador, embora pouco eles os conhecessem.
   O príncipe chamava-se Tuque-Tuque Fit-Fit e o seu poema Parikáithont Vakochan, o que quer dizer no nosso calão — O silêncio das renas no campo de gelo.
   Tuque-Tuque Fit-Fit era descrito pelos “samoiedas” da Bruzundanga como sendo uma beleza sem par e triunfal entre as deidades daquelas regiões árticas.
   Tudo isto fantástico, mas graças à credulidade dos sábios do país, só um ou outro desalmado tinha a coragem de contestar tais lendas.
   Como todos nós sabemos, a raça samoieda é de estatura baixa, pouco menos que a dos lapões, cabelos longos, duros e negros de jade, vivendo da carne de renas, de urso branco, quando a felicidade lhe fornece um. Tais homens andam em trenós e fazem kayacs de peles de renas ou focas que eles empregam para capturar estas últimas.
   As suas concepções religiosas são reduzidas, e os seus ídolos, manipansos hediondos, tocos de pau besuntados de pinturas incoerentes. Vestem-se, os samoiedas, com peles de renas e outros animais hiperbóreos.
   Entretanto, na opinião dos poetas daquela república, que dizem seguir as teorias da literatura do oceano Ártico, não são os samoiedas assim, como o contam os mais autorizados viajantes; mas sim os mais belos espécimes da raça humana, possuindo uma civilização digna da Grécia antiga.
   Esta Grécia serve para tudo, especialmente na Bruzundanga...
   Em geral, os vates bruzundanguenses adeptos da tal escola samoieda, como os senhores vêem, não primam pela ilustração; e, quando se conteste no tocante à beleza de tais esquimós, respondem categoricamente que a devem ter extraordinária, pois quanto mais fria é a região, mais belos são os seus tipos, mais altos, mais louros, e os samoiedas vivem em zona frigidíssima.
   Não há como discutir com eles, porque todos se guiam por ideias feitas, receitas de julgamentos e nunca se aventuram a examinar por si qualquer questão, preferindo resolvê-las por generalizações quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão, diluídas e desfiguradas pelas sucessivas passagens de uma cabeça para outra cabeça.
   Atribuem, sem base alguma, a esse tal Tuque-Tuque a fundação da escola, apesar de nunca lhe terem lido as poesias nem a sua arte poética.
   Sempre procurei saber por que se enfeitavam com esse exótico avoengo; as razões psicológicas, eu as encontrei na vaidade deles, no seu desejo de disfarçar a sua inópia poética com um padrinho esquisito e misterioso; mas o núcleo da lenda, o grãozinho de areia em torno do qual se concretizava o mito ártico da escola, só ultimamente pude encontrar.
   Consegui descobrir entre os livros de um inglês meu amigo, Senhor Parsons, um volume do Senhor H. T. Switbilter, de Bristol (Inglaterra) — Literature of the Stingy Peoples; e encontrei nele alguns versos samoiedas. São anônimos, mas o estudioso de Bristol declara que os recolheu da boca de um certo Tuck-Tuck, samoieda de nação, que ele conheceu em 1867, quando foi encarregado pela Sociedade Paleontológica de Bristol de descobrir na embocadura dos grandes rios da Sibéria monstros antediluvianos conservados no gelo, como escaparam de encontrar, quase intactos, o naturalista Pallas, nos fins do século XVIII, e o viajante Adams, em 1806. A história do tal príncipe Tuque-Tuque alimentar-se de carne de elefantes fósse, parece ter origem no fato bem sabido de terem os cães devorado as carnes do mamute, cujo esqueleto Adams trouxe para o museu de São Petersburgo; e o príncipe já sabemos quem é.
   O Senhor Switbilter pouco acrescenta a algumas poesias que publica; e as que estão no volume, traduzidas, são por demais monstruosas, sempre com um mesmo pensamento denunciando uma concepção estreita da vida e do universo, muito explicável em bárbaros glaciais.
   O viajante inglês que conhece o samoieda, entretanto, diz aqui e ali, que elas são enfáticas, sem quantidade de sentimento ou um acento musical agradável e individual, descaindo quase sempre para a melopéia ou o “tantã” ignaro, quando não alternam uma cousa e outra.
   Mas não foi no livro do Senhor Switbilter que os augustos poetas da Bruzundanga foram encontrar as bases da sua escola. Eles não conhecem esse autor, pois nunca os vi citá-lo.
   Eles, os “samoiedas” da Bruzundanga, encontraram o mestre nos escritos de um tal Chamat ou Chalat, um aventureiro francês que parece ter estado no país daquela gente ártica, aprendido um pouco da língua dela e se servido do livro do viajante inglês para defender uma poética que lhe viera à cabeça.
   Esse Chamat ou Chalat, Flaubert, quando esteve no Egito, encontrou-o por lá, como médico do exército quedival; e ele se ocupava nos ócios de sua provável mendicânça em rimar uma tragédia clássica, Abdelcáder, em cinco atos, onde havia um célebre verso de que o grande romancista nunca se esqueceu. É, o seguinte :

C’est de la’ par Allah! qu’ Abd-Allah s’en alla”.

   O esculápio do Cairo insistia muito nele e esforçava-se por demonstrar que, com semelhante “harmonia imitativa” como os antigos chamavam, obtinha traduzir, em verso, o sonido do galope de cavalo.
   Havia mais belezas de igual quilate e outras originalidades. Não obstante, quando apareceu, foi um louco sucesso de riso muito parecido com o do Tremor de Terra de Lisboa, aquela célebre tragédia do cabeleireiro André, a quem Voltaire invejou e escreveu, entretanto, ao receber-lhe a obra, que continuasse a fazer sempre cabeleiras —“toujours des perruques”, Senhor André.  
   Chalat afrontou a crítica e não podendo defender-se com os clássicos franceses, apelou para a poesia em língua samoieda, que conhecia um pouco por ter sido marinheiro de um baleeiro que naufragou nas proximidades da terra desses lapões, entre os quais passou alguns meses. Não desconhecia o livro do Senhor Switbilter, como tive ocasião de verificar nos fragmentos de um seu tratado poético, citado na tradução da obra de um seu discípulo basco por onde os “samoiedas” da Bruzundanga estudaram a escola que verdadeiramente Chalat ou Chamat fundara.
   O seu desafio à crítica, escudado na poética e estética das margens do glacial Ártico, trouxe-lhe logo uma certa notoriedade e discípulos.
   Estes vieram muito naturalmente, pois, dada a indigência mental daquela espécie de esquimós, a sua pobreza de impressões e sensações, a sua incapacidade para as idéias gerais, os hinos, os cânticos, os rondós dos mesmos, citados pelo medicastro, facilitavam muito o ofício de fazer verso, desde que se tivesse paciência; e a facilidade seduziu muitos dos seus patrícios e determinou a admiração dos bardos bruzundanguenses.
   Os discípulos de Chalat ou Chamat tiraram da sua obra regras infalíveis para fazer poetas e poesias e um certo até aplicou a teoria dos erros à sua arte poética.

continua na página 08...
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

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