segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Amedrontá-la (XXXI)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XXXI

AMEDRONTÁ-LA


Eis portanto o belo milagre de vossa civilização! Do amor fizestes um
assunto ordinário.

BARNAVE


   JULIEN CORREU AO CAMAROTE DA SRA. DE LA MOLE. Seus olhos encontraram primeiro os olhos em lágrimas de Mathilde; ela chorava sem nenhuma contenção, lá estavam apenas pessoas subalternas, a amiga que emprestara o camarote e amigos dela. Mathilde pousou a mão sobre a de Julien, parecia ter esquecido qualquer temor em relação à mãe. Quase sufocada pelas lágrimas, ela disse-lhe apenas esta palavra: garantias!
   Ao menos, que eu me cale, pensava Julien, muito comovido ele também, e procurando esconder os olhos com a mão, a pretexto do lustre que brilhava no terceiro andar dos camarotes. Se eu falar, ela não poderá mais duvidar do excesso de minha emoção, o som de minha voz me trairá, tudo ainda pode se perder.
   Seus combates eram bem mais penosos que de manhã, sua alma já tivera tempo de comover-se. Ele temia ver Mathilde envaidecida. Ébrio de amor e de volúpia, obrigou-se a não falar.
   Esse, a meu ver, é um dos mais belos traços de seu caráter; uma criatura capaz de tal esforço sobre si mesma pode ir longe, si fata sinant.[1]
   A srta. de La Mole insistiu em levar de volta Julien à mansão. Felizmente chovia muito. Mas a marquesa o fez sentar-se à sua frente, falou o tempo todo e impediu que ele dissesse uma palavra à filha. Dir-se-ia que a marquesa cuidava da felicidade de Julien; não temendo mais perder tudo por excesso de emoção, ele entregava-se a esta com loucura.
  Ousarei dizer que, ao voltar a seu quarto, Julien caiu de joelhos e cobriu de beijos as cartas de amor dadas pelo príncipe Korasoff?

– Ó grande homem! Que não te devo?, ele exclamou em sua loucura.

   Aos poucos, recuperou alguma frieza. Comparou-se a um general que acaba de ganhar metade de uma grande batalha. A vantagem é certa, imensa, pensou; mas o que acontecerá amanhã? Um instante pode pôr tudo a perder.
   Num impulso apaixonado, abriu as Memórias, ditadas em Santa Helena por Napoleão, e por duas horas forçou-se a lê-las. Apenas seu olhos liam; não importa, ele forçava-se a isso. Durante essa leitura singular, sua cabeça e seu coração, alçando-se ao que há de maior, trabalhavam à revelia. O coração dela é muito diferente do da sra. de Rênal, ele pensava, mas não seguia adiante.

– AMEDRONTÁ-LA, exclamou de repente, lançando o livro longe. O inimigo só me obedecerá se eu o amedrontar, então não ousará desprezar-me.

   Ele andava pelo quarto, bêbado de alegria. A bem dizer, essa felicidade era mais de orgulho que de amor.

– Amedrontá-la!, repetia orgulhosamente, e ele tinha razão de estar orgulhoso. Mesmo em seus momentos mais felizes, a sra. de Rênal sempre duvidava que meu amor se igualasse ao dela. Aqui, é um demônio que subjugo, portanto é preciso subjugar. 

   Ele sabia perfeitamente que no dia seguinte, a partir das oito da manhã, Mathilde estaria na biblioteca; ele só apareceu às nove horas, ardendo de amor, mas com a cabeça dominando o coração. Não transcorreu talvez um só minuto sem que ele se repetisse: Mantê-la sempre ocupada com esta grande dúvida: ele me ama? Sua brilhante posição, as lisonjas de todos os que lhe falam, levam-na a tranquilizar-se um pouco demais.
   Encontrou-a pálida, calma, sentada no divã, aparentemente incapaz de fazer um único movimento. Ela estendeu-lhe a mão:

– Amigo, eu te ofendi, é verdade; estás zangado comigo?...

   Julien não esperava esse tom tão simples. Esteve a ponto de trair-se.

– Você quer garantias, meu amigo, ela acrescentou depois de um silêncio que esperava ver rompido. É justo. Leve-me embora, partamos para Londres... Estarei perdida para sempre, desonrada.

   Teve a coragem de retirar sua mão da de Julien para cobrir-se os olhos. Todos os sentimentos de recato e de virtude haviam voltado a essa alma... – Pois bem! Desonre-me, disse enfim com um suspiro, isso é uma garantia.  
   Ontem fiquei feliz porque tive a coragem de ser severo comigo mesmo, pensou Julien. Após um momento de silêncio, ele teve suficiente controle sobre seu coração para dizer num tom glacial:

– Uma vez a caminho de Londres, uma vez desonrada, para servir-me de suas expressões, quem me diz que você me amará? Que minha presença no assento da carruagem não lhe parecerá importuna? Não sou um monstro, arruinar sua reputação será para mim apenas uma infelicidade a mais. O obstáculo não é sua posição frente à sociedade: é, por infelicidade, o seu caráter. Pode garantir a si mesma que me amará por oito dias?

(Ah! Se ela me amasse por oito dias, por oito dias somente, dizia Julien consigo, eu morreria de felicidade. Que me importa o futuro, que me importa a vida? E essa felicidade divina pode começar neste instante se eu quiser, depende apenas de mim!)

   Mathilde o viu pensativo.

– Então sou completamente indigna de você, disse ela tomando-lhe a mão.

    Julien abraçou-a, mas imediatamente a mão de ferro do dever conteve seu coração. Se ela perceber o quanto a adoro, eu a perco. E, antes de retirar seus braços, retomou toda a dignidade que convém a um homem.
   Naquele dia e nos seguintes, ele soube ocultar o excesso de sua ventura; houve momentos em que recusava-se até o prazer de estreitá-la nos braços. 
   Em outros momentos, o delírio de felicidade prevalecia sobre todos os conselhos da prudência.
   Antes, era junto à latada de madressilvas disposta para ocultar a escada, no jardim, que ele costumava ir para olhar de longe a persiana de Mathilde e lamentar sua inconstância. Havia um grande carvalho ao lado e o tronco dessa árvore o impedia de ser visto por indiscretos. 
   Ao passar com Mathilde nesse mesmo lugar, que lhe lembrava tão vivamente o excesso de sua infelicidade, o contraste entre o desespero passado e a bem-aventurança presente foi demasiado forte para seu caráter; lágrimas inundaram-lhe os olhos; levando aos lábios a mão da amiga, ele disse: Aqui eu ficava pensando em você; aqui eu olhava aquela persiana, esperava horas inteiras o momento afortunado em que veria estão mão abri-la...
   Sua fraqueza foi completa. Ele descreveu com essas cores verdadeiras, que não se inventam, o excesso do seu desespero de então. Curtas interjeições testemunhavam a felicidade atual que fizera cessar aquele sofrimento atroz...
   Que estou fazendo, meu Deus?, pensou Julien, voltando a si. Eu me perco. 
   No excesso de seu alarme, acreditou já ver menos amor nos olhos da srta. de La Mole. Era uma ilusão; mas a fisionomia de Julien mudou rapidamente e cobriu-se de uma palidez mortal. O brilho dos olhos extinguiu-se e a expressão de uma altivez não isenta de maldade sucedeu em seguida à do amor mais verdadeiro e mais abandonado.

– O que se passa, meu amigo?, disse Mathilde, com ternura e inquietude. 

– Minto, disse Julien com irritação, e minto a você. Reprovo-me por isso, pois Deus sabe que a estimo muito para não mentir. Você me ama, é devotada a mim, e não tenho necessidade de compor frases para agradá-la. 

– Santo Deus! são apenas frases o que me disse de maravilhoso há dois minutos? 

– E as reprovo vivamente, querida amiga. Eu as compus outrora para uma mulher que me amava e me aborrecia... É um defeito de caráter que lhe confesso, perdoe-me. 

   Lágrimas amargas banharam as faces de Mathilde. 

– Sempre que, impressionado por alguma coisa, tenho um momento de devaneio forçado, continuava Julien, minha execrável memória, que maldigo neste momento, oferece-me um recurso e abuso dele.

– Terei feito, sem saber, alguma ação que o terá desagradado?, disse Mathilde com uma ingenuidade encantadora.

– Um dia, lembro-me bem, ao passar por estas madressilvas, você colheu uma flor. O sr. de Luz a pediu e você lhe deu. Eu estava a dois passos.

– O sr. de Luz? É impossível, respondeu Mathilde, com a altivez que lhe era tão natural: não tenho essas maneiras. 

– Estou certo disso, replicou Julien vivamente. 

– Pois bem! É verdade, meu amigo, disse Mathilde baixando os olhos tristemente. Ela sabia positivamente que, desde há muitos meses, não permitia tal gesto ao sr. de Luz. 

   Julien olhou-a com uma ternura inexprimível: não, pensou, ela não me ama menos.
   À noite, ela reprovou-lhe, rindo, seu gosto pela sra. de Fervaques: – Um burguês amar uma mulher que subiu na vida! Corações dessa espécie são talvez os únicos que meu Julien não consegue enlouquecer. Ela fez de você um verdadeiro dândi, acrescentou, mexendo nos cabelos dele.
   No tempo em que se acreditava desprezado por Mathilde, Julien tornara-se um dos homens mais bem-vestidos de Paris. E ele tinha ainda uma vantagem sobre as pessoas dessa espécie: uma vez arranjada sua toalete, não pensava mais nela.
   Uma coisa feria Mathilde: Julien continuava a copiar as cartas russas e a enviá-las à marechala.  

continua página 298...

_____________________
[1] Se o destino permitir. (N.T. )
_____________________

ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

_______________________

Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

_______________________

Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: Amedrontá-la (XXXI)

Nenhum comentário:

Postar um comentário