quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (10)

Simone de Beauvoir


02. A Experiência Vivida



O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



SEGUNDA PARTE

SITUAÇÃO
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CAPÍTULO I
A   MULHER CASADA

continuando...

   A 23 de setembro de 1862, Sofia casa-se e à noite deixa a família.

Um sentimento penoso, doloroso contraía-me a garganta e me magoava. Senti então que chegara o 'momento de deixar para sempre minha família e todos os que eu amava profundamente e com quem sempre vivera... Os adeuses começaram e foram terríveis... Eis os últimos minutos. Intencionalmente reservara para o fim a despedida de minha mãe... Quando me desprendi de seu abraço e, sem me voltar, fui instalar-me no carro, ela deu um grito lancinante que nunca mais na vida pude esquecer. A chuva de outono não parava de cair... Encolhida em meu canto, acabrunhada de cansaço e de dor, entreguei-me às lágrimas. Leon Nicolaievitch parecia muito espantado, descontente mesmo... Quando saímos da cidade, experimentei nas trevas um sentimento de pavor... A escuridão oprimia-me. Não nos dissemos quase nada até a primeira estação, Biriulev, se não me engano. Lembro-me de que Leon Nicolaievitch se mostrava muito terno e muito atencioso comigo. Em Biriulev, deram-nos quartos ditos de Tzar, grandes quartos com móveis forrados de crepe vermelho que nada tinham de acolhedor. Trouxeram-nos o samovar. Encolhida num canto do sofá, mantinha-me silenciosa como uma condenada. "Então!, disse-me Leon Nicolaievitch, se fizesses as honras da casa?" Obedeci e servi o chá. Sentia-me confusa e não podia livrar-me de certo temor. Não ousava dizer tu a Leon Nicolaievitch e evitava chamá-lo pelo nome. Durante muito tempo ainda continuei a dizer-lhe vós. 

   Vinte e quatro horas depois, chegam a Iasnaiava Poliana . A oito de outubro, Sofia retorna a seu diário. Sente-se angustiada. Sofre com o fato de o marido ter um passado.

Desde que me lembro, sempre sonhei com um ser completo, novo, puro, que amaria... é-me difícil renunciar a esses sonhos de criança. Quando ele me beija, penso que não sou a primeira que beija assim. 

   No dia seguinte ela anota:

Não me sinto à vontade. Tive sonhos maus esta noite e, embora não pense nisso constantemente, tenho a alma pesada. Foi mamãe que me apareceu em sonho e isso me causou grande mágoa. É como se dormisse sem poder despertar... Algo me pesa. Parece-me constantemente que vou morrer. É estranho, agora que tenho um marido. Ouço-o dormir e tenho medo sozinha. Ele não me deixa penetrar em seu íntimo e isso me aflige. Todas essas relações carnais são repugnantes. 

11 de outubro: Terrível! Horrivelmente triste! Encolho-me cada vez mais em mim mesma. Meu marido está doente, de mau humor e não me ama. Contava com isso, mas não pensava que fosse tão horroroso. Quem se preocupa com minha felicidade? Ninguém duvida de que essa felicidade eu não a sei criar, nem para ele nem para mim. Nas minhas horas de tristeza acontece-me perguntar: para que viver quando as coisas vão tão mal para mim como para os outros! É estranho, mas esta ideia me obsidia. Ele vai-se tornando dia a dia mais frio ao passo que eu, ao contrário, amo-o cada vez mais... Evoco a lembrança dos meus. Como a vida era fácil então! Ao passo que agora, meu Deus, tenho a alma ferida! Ninguém me ama... Querida mamãe, querida Tânia, como eram gentis! 

Por que as deixei? É triste, é horrível! Entretanto Liovotchka é excelente... Outrora eu punha ardor em viver, trabalhar, atender aos cuidados da casa. Agora, acabou: poderia permanecer silenciosa dias inteiros, de braços cruzados a remover meus anos passados. Gostaria de trabalhar, mas não posso... Tocar piano ter-me-ia agradado, mas aqui é muito incômodo... Liovotchka propusera-me ficar em casa hoje enquanto ele ia a Nikolskoie. Eu deveria ter consentido para libertá-lo de mim, mas não tive forças para tanto... Pobre! Procura distrações por toda parte e pretextos para me evitar. Por que estou no mundo? 

13 de novembro de 1863: Confesso que não sei com que me ocupar. Liovotchka é feliz porque tem inteligência e talento, enquanto eu não tenho nem uma coisa nem outra. Não é difícil encontrar alguma coisa para fazer, trabalho não falta. Mas é preciso interessar-me por essas pequenas tarefas, acostumar-me a apreciá-las: cuidar do galinheiro, arranhar o piano, ler muitas tolices e poucas coisas interessantes, salgar os pepinos... Tornei-me tão profundamente abúlica, que nem nossa viagem a Moscou nem a perspectiva de um filho me causam a menor emoção, a mais insignificante alegria, nada. Quem me indicará o meio de despertar, de me reanimar? Esta solidão acabrunha-me. Não estou habituada a isto. Em casa havia tanta animação e aqui na sua ausência tudo é insípido. A solidão é-lhe familiar. Ele não aufere como eu prazer de seus amigos íntimos mas sim de suas atividades... Cresceu sem família. 

23 de novembro: Sou sem dúvida inativa, mas não por natureza. Não sei simplesmente que trabalho empreender. Por vezes sinto uma vontade louca de escapar de sua influência... por que sua influência me pesa? Contenho-me, mas não me tornarei ele. Com isso só perderia minha personalidade. Já não sou mais a mesma, o que me torna a vida mais difícil ainda. 

1° de abril: Tenho o grande defeito de não encontrar recursos em mim mesma... Liova está muito absorvido por seu trabalho e pela administração da propriedade, ao passo que eu não tenho nenhuma preocupação. Não tenho jeito para nada. Gostaria de ter mais trabalho, um trabalho de verdade porém. Outrora, nesses belos dias de primavera, sentia a necessidade, a vontade de alguma coisa. Deus sabe de meus sonhos! Hoje não tenho necessidade de nada, não sinto mais essa vaga e estúpida aspiração a não sei quê, pois tendo tudo encontrado, nada tenho que procurar. Todavia, aborreço-me. 

20 de abril: Liova afasta-se cada vez mais de mim. O lado físico do amor desempenha um papel muito importante para ele, ao passo que para mim não desempenha nenhum. 

   Vê-se que essa jovem mulher sofre, no decorrer desses primeiros seis meses, de estar separada dos seus, de sua solidão, do aspecto definitivo que assumiu seu destino; detesta as relações físicas com o marido e se aborrece. É também esse tédio que sente, até às lágrimas, a mãe de Colette (La Maison de Claudine) após o primeiro casamento imposto pelos irmãos:

Ela deixou pois a tépida casa belga, a cozinha de porão que cheirava a gás, o pão quente e o café, deixou o piano, o violino, o grande Salvador Rosa, herança do pai, o pote de fumo, os finos e compridos cachimbos de barro... os livros abertos e os jornais amarrotados para entrar, recém-casada, na casa de escadaria que cercava o duro inverno das regiões de florestas. Aí encontrou um inesperado salão branco e dourado, no térreo, mas um primeiro andar apenas rebocado, abandonado como um sótão... os quartos de dormir gelados não falavam nem de amor nem de doce sono... Sido, que almejava amigos, uma sociabilidade inocente e alegre, só encontrou em sua própria casa criados e meeiros cautelosos... Encheu a casa de flores, mandou caiar a cozinha sombria, cuidou ela própria dos pratos flamengos, preparou bolos de uvas e ficou à espera do primeiro filho. Le Sauvage sorria-lhe entre dois passeios e partia novamente... Cansada de receitas apetitosas, de paciência e da encáustica, Sido, exaurida de solidão, chorou... 

   Marcel Prévost descreve em Lettres à Françoise mariée o desatino da jovem de volta de sua viagem de núpcias.

Ela pensa no apartamento materno com seus móveis Napoleão I II e Mac-Mahon, suas pelúcias nos espelhos, seus armários de pereira escura, tudo o que julgava tão fora de moda, tão ridículo... Tudo isso é evocado durante um instante ante sua memória como um asilo real, um verdadeiro ninho, o ninho em que foi acalentada por uma ternura desinteressada, ao abrigo de toda intempérie e de todo perigo. O apartamento de agora, com seu cheiro de tapete novo, suas janelas desguarnecidas, a sarabanda das cadeiras, todo seu ar de improvisação, de ameaça de viagem, não, não é um ninho. É apenas o lugar do ninho que cumpre construir... Sentir-se-á súbita e horrivelmente triste, triste como se a tivessem abandonado num deserto. 

   A partir desse desatino, surgem amiúde na jovem esposa longas melancolias e diversas psicoses. Ela sente, em particular, sob a forma de diferentes obsessões psicastênicas e vertigem de sua liberdade vazia; assim é que, por exemplo, cria e alimenta esses fantasmas de prostituição que já encontramos na jovem. Pierre Janet (Les Obsessions et la Psychasthénie) cita o caso de uma recém-casada que não podia suportar a solidão em seu apartamento porque se sentia tentada a ir para a janela e grelar os passantes. Outras permanecem abúlicas em face de um universo que "não tem cara de verdadeiro", que se povoa tão somente de fantasmas e de cenários de papelão. Algumas há que se esforçam por negar sua condição de adulto, que se obstinam a negá-la durante a vida inteira. Assim a paciente que Janet designa pelas iniciais Qi.

Qi, mulher de 36 anos, achava-se obsidiada pela ideia de que é uma menina de 10 a 12 anos; principalmente quando fica só, põe-se a pular, a rir, a dançar, desfaz os cabelos, solta-os sobre os ombros, corta-os, pelo menos parcialmente. Gostaria de poder entregar-se completamente a esse sonho de ser criança: "É tão lamentável não poder brincar de esconde-esconde diante de todos, pregar peças. . . Desejaria que me achassem gentil, tenho medo de ser feia como um piolho, gostaria que me quisessem bem, conversassem comigo, me acarinhassem, me dissessem sempre que gostam de mim como gostam das criancinhas ... Gosta-se de uma criança por causa de suas travessuras, de seu coraçãozinho bom, de suas gentilezas, e que lhe pedem em troca? Que gostem também, nada mais. É isso que é bom, mas não posso dize-lo a meu marido. Bem, gostaria de ser uma 'menina, de ter um pai ou uma mãe que me pusesse nos joelhos, que me acariciasse os cabelos... mas não, sou uma senhora, mãe de família; é preciso cuidar de uma casa, ser série refletir sozinha, que vida!" 

continua página 215...

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O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (10)

As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.


"O que é uma mulher?"

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