Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo IV
Hippe
– Os russos gostam de passear de carro – disse Joachim a Hans Castorp. Os primos
estavam diante da entrada e divertiam-se a presenciar a partida das carruagens. – Vão a Clavadell
ou ao lago ou ao vale de Flüela ou a Klosters. São esses os passeios que se costuma fazer.
Qualquer dia poderíamos também passear de carro, se quiser. Mas acho que por enquanto você
terá bastante trabalho para se aclimatar, e não tem necessidade de aventuras.
Hans Castorp concordou. Tinha um cigarro na boca e as mãos nos bolsos da calça. Viu
como a jovial velhota russa com a sobrinha magra e mais duas outras senhoras – Marusja e Mme..
Chauchat – tomavam assento num coche. Mme.. Chauchat trazia um guarda-pó leve, cinturado,
mas não usava chapéu. Sentou-se ao lado da senhora idosa, no fundo do carro, ao passo que as
senhoritas ocuparam os assentos da frente. As quatro estavam alegres, e suas bocas não paravam
nem um segundo. Tagarelavam naquele seu idioma brando, como que desprovido de ossos.
Falavam e riam-se do cobertor de viagem, muito pequeno e que com dificuldade bastava para
quatro pessoas, bem como dos bombons russos que a velha tia levava como merenda, numa
caixinha de madeira, forrada de algodão e papel rendado, e que já antes da partida fazia circular...
Hans Castorp distinguiu com interesse a voz velada de Mme.. Chauchat. Como sempre, quando
avistava essa mulher negligente, sentia reafirmar-se aquela semelhança que andara procurando
por tanto tempo e finalmente descobrira num dos seus sonhos... O riso de Marusja, porém, o
aspecto dos seus olhos redondos e castanhos que vagavam com uma expressão infantil por cima
do lencinho que cobria a boca, e seus seios rijos, que interiormente estavam bastante doentes –
tudo isso lhe recordava outra coisa, uma visão comovente que tivera havia pouco tempo.
Cautelosamente, sem mover a cabeça, olhou para Joachim, a seu lado. Não! Graças a Deus, o seu
rosto não tinha a cor terrosa do outro dia, e os lábios também não se crispavam daquele modo
doloroso. Mas o primo estava com os olhos fixos em Marusja, numa atitude e com uma
fisionomia que seria impossível qualificar de militares, e que, bem ao contrário, pareciam tão
tristonhas e descontroladas que era inelutável tachá-las de perfeitamente civis. No entanto, não
tardou a dominar-se e lançou um olhar tão rápido a Hans Castorp, que este mal teve tempo para
desviar os olhos e dirigi-los para qualquer ponto no ar. Sentiu, simultaneamente, como o seu
coração se punha a bater, sem motivo nenhum e por iniciativa própria, como às vezes fazia ali em
cima.
O resto do domingo não ofereceu mais nada de extraordinário, a não ser a comida, que,
embora não pudesse ser mais farta do que de costume, distinguia-se ao menos por um maior
requinte nos pratos. (No cardápio do almoço figurava um chaud-froid de galinha, guarnecido de
caranguejos e meias cerejas; os sorvetes vieram acompanhados de filhoses, em cestinhos tecidos
de fios de açúcar, e por fim surgiram até fatias de abacaxi fresco.) Pela noite, depois de tomar a
sua cerveja, Hans Castorp sentiu-se esgotado, com frio e com uma lassidão nos membros ainda
maior do que nos dias anteriores. Já às nove horas disse “Boa noite” ao primo, cobriu-se
apressadamente com o acolchoado de penas e adormeceu como um fulminado.
Mas o dia seguinte, isto é, a primeira segunda-feira que o visitante passou no sanatório,
trouxe outra dentre as modificações periódicas do programa normal: uma daquelas conferências
que o Dr. Krokowski fazia de quinze em quinze dias na sala de refeições para todos os
pensionistas adultos do Berghof que dominassem o idioma alemão. Tratava-se, segundo Hans
Castorp soube de Joachim, de uma série de preleções contínuas, espécie de curso científico-popular, sob o título geral de “O amor como fator patogênico”. A palestra didática realizava-se
depois do café da manhã, e, também segundo a informação de Joachim, não era lícito, ou pelo
menos era muito malvisto, que alguém deixasse de assistir a ela. Por isso considerava-se uma
ousadia pasmosa a atitude de Settembrini, que, embora dominando o alemão melhor do que
ninguém, não somente nunca comparecia a essas conferências, mas até as criticava em termos
sumamente depreciativos. Quanto a Hans Castorp, estava disposto a ir, em primeiro lugar por
cortesia, como também por uma curiosidade não dissimulada. Antes, porém, fez uma coisa
completamente errada e prejudicial: deu-lhe na veneta empreender, por conta própria, um
extenso passeio, de que se saiu sobremodo mal.
– Escute – foram as suas primeiras palavras, quando Joachim, pela manhã, entrou no seu
quarto. – Eu vejo que não posso continuar desse jeito. Estou farto da vida horizontal. Com esse
regime, o sangue adormece nas veias da gente. O seu caso é diferente, claro! Absolutamente não
quero tentar você. Mas tenho a intenção de dar, logo depois do café, um bom passeio, se você
não me leva a mal essa idéia. Caminharei assim, sem destino, durante algumas horas. Vamos ver
se não me sentirei outro homem quando regressar.
– Está bem – disse Joachim, ao notar que o outro levava a sério o projeto. – Mas não
exagere, ouviu? Aqui as coisas não são como lá embaixo. E procure estar de volta na hora da
conferência.
Na realidade, as razões que haviam levado o jovem Hans Castorp ao projeto desse
passeio não se relacionavam somente com o seu bem-estar físico. Parecia-lhe que sua cabeça
quente, o gosto ruim que ele amiúde tinha na boca, e as pulsações caprichosas do seu coração se
deviam menos às dificuldades da aclimatação do que a certos fatores, como, por exemplo, as
atividades do casal russo no quarto vizinho, a lengalenga que a estúpida e doente Srª. Stöhr
proferia durante as refeições, a tosse lamacenta do aristocrata austríaco, que todos os dias se
ouvia no corredor, as palavras do Sr. Albin, as impressões que os costumes sociais da mocidade
enferma lhe haviam causado, a fisionomia de Joachim quando olhava para Marusja, e outras
observações desse tipo. Pensava então que deveria ser saudável subtrair-se ao círculo mágico do
Berghof, respirar profundamente ao ar livre e fazer algum exercício, a fim de saber, de noite, por
que se sentia tão cansado. E assim se separou de Joachim, quando este, após o café da manhã,
começava o seu passeio delimitado pelo regulamento, em direção ao banco junto da calha.
Brandindo a bengala, desceu pela estrada de rodagem, para seguir caminhos independentes.
Era uma manhã fresquinha e nublada, pelas oito e meia. Tal e qual se propusera, Hans
Castorp aspirava profundamente o puríssimo ar matutino, uma atmosfera fresca e leve que se
deixava sorver sem esforço, atmosfera sem umidade nem conteúdo nem recordações... Transpôs
o curso d'água e os trilhos de bitola estreita, alcançou a rua principal, aqui e ali ladeada de casas,
mas logo a abandonou, para tomar um atalho através dos prados, que, depois de um curto trajeto
plano, subia, num curso oblíquo e bastante íngreme, a encosta à direita. Essa subida alegrou Hans
Castorp. Dilatou-se-lhe o peito. Com o castão da bengala empurrou o chapéu para trás, e quando,
de certa altura, lançou um olhar sobre a paisagem e avistou ao longe o espelho do lago, pôs-se até
a cantar.
Cantou as canções que lhe ocorriam, toda espécie de cantigas sentimentais e populares,
como figuram nas antologias para ginasianos. Uma, por exemplo, continha os versos:
“Que os bardos cantem o amor e o vinho,Mas antes cantem a virtude...”
Começou cantarolando baixinho, mas logo aumentou o volume e por fim cantava com
toda a força que tinha. Sua voz de barítono era áspera, mas, nesse momento, pareceu-lhe bonita.
Entusiasmava-se cada vez mais, à medida que ia cantando. Quando chegava a notas
excessivamente altas, recorria ao falsete, e também este lhe agradava. Às vezes falhava a sua
memória, e nesses casos saía-se bem entoando a melodia com quaisquer palavras e sílabas
absurdas que no momento lhe ocorriam, e que ele, à maneira dos cantores de ópera, proferia
modulando-as com os lábios e carregando nos “r”. Finalmente passou a improvisar tanto o texto
como a melodia, acompanhando sua apresentação com gestos teatrais dos braços. Já que é muito
cansativo subir e cantar ao mesmo tempo, Hans Castorp em breve perdeu o fôlego. Mas, por
idealismo, em prol da beleza do canto, venceu a emergência e, por entre numerosos suspiros, deu
tudo o que tinha. Por fim, completamente sem alento, quase cego, com olhos que enxergavam apenas faíscas coloridas, e com o pulso a martelar, deixou-se cair ao pé de um enorme pinheiro.
Depois de tamanha emoção, sentiu-se tomado de uma sensação de intenso mal-estar, de uma
ressaca que tocava as raias do desespero.
Quando, com os nervos mais ou menos tranquilizados, animou-se a prosseguir o passeio,
tremia-lhe veementemente a nuca, de modo que, apesar da sua juventude, sacudia a cabeça da
mesma forma como outrora fizera o velho Hans Lorenz Castorp. Ele mesmo sentiu que esse
fenômeno lhe recordava simpaticamente o falecido avô, e sem experimentar repugnância,
divertiu-se com a imitação daquele gesto de apoiar o queixo sobre o nó da gravata, gesto com o
qual o velho procurava evitar o tremor da cabeça, e que tanto agradava ao menino.
Subiu ainda mais, em ziguezague. Atraía-o o tilintar dos cincerros das vacas. Passado
pouco tempo, avistou um rebanho a pastar nas proximidades de um chalé, cujo telhado estava
consolidado com pedras. Dois homens barbudos, com machados no ombro, vinham a seu
encontro. Perto dele, despediram-se um do outro. – Pois então, passe bem, e muito agradecido! –
disse um dos homens, numa voz profunda, gutural e, mudando o machado de um ombro para o
outro, dirigiu-se ao vale, abrindo caminho, a passo ruidoso, por entre os pinheiros. Aquele “Passe
bem, e muito agradecido”, que soara estranhamente através da solidão, fez sonhar o espírito de
Hans Castorp, ainda tonto pela subida e pelo canto. Repetiu as palavras em voz baixa,
procurando arremedar o dialeto gutural, singelo e solene do montanhês. Subiu um bom pedaço
além da choça, na intenção de alcançar o limite das árvores. Mas um olhar ao relógio fez com que
desistisse do projeto.
Dobrou para a esquerda, rumo à aldeia, seguindo uma vereda que começava plana e
depois descia. Acolheu-o um bosque de altas coníferas. Ao atravessá-lo, Hans Castorp voltou a
cantar um pouco, ainda que cautelosamente. Mesmo assim tremiam-lhe os joelhos durante a
descida ainda mais do que antes. Quando saiu do bosque, deteve-se, surpreso, diante de um
quadro magnífico que se lhe descortinava, uma paisagem íntima e fechada, de plasticidade
tranquila e grandiosa.
Por um leito pedregoso, pouco profundo, precipitava-se um curso d'água pela encosta direita abaixo; saltava, escumando, os rochedos dispostos como que em terraços, e em seguida corria, num fluxo mais calmo, em direção ao vale, passando por baixo de uma pitoresca pontezinha, com um tosco parapeito de madeira. O solo parecia azul pelas flores campanuláceas de um arbusto que crescia em toda parte. Pinheiros sombrios, de troncos gigantescos e bem-proporcionados, viam-se ora isolados, ora em grupos, no fundo do desfiladeiro e nas encostas. Um deles, arraigado obliquamente no alcantil à beira do arroio torrentoso, atravessava o panorama numa diagonal torta e excêntrica. Uma solidão cheia de rumores pairava sobre esse sítio isolado e formoso. Do outro lado do regato, Hans Castorp viu um banco que convidava ao repouso.
Por um leito pedregoso, pouco profundo, precipitava-se um curso d'água pela encosta direita abaixo; saltava, escumando, os rochedos dispostos como que em terraços, e em seguida corria, num fluxo mais calmo, em direção ao vale, passando por baixo de uma pitoresca pontezinha, com um tosco parapeito de madeira. O solo parecia azul pelas flores campanuláceas de um arbusto que crescia em toda parte. Pinheiros sombrios, de troncos gigantescos e bem-proporcionados, viam-se ora isolados, ora em grupos, no fundo do desfiladeiro e nas encostas. Um deles, arraigado obliquamente no alcantil à beira do arroio torrentoso, atravessava o panorama numa diagonal torta e excêntrica. Uma solidão cheia de rumores pairava sobre esse sítio isolado e formoso. Do outro lado do regato, Hans Castorp viu um banco que convidava ao repouso.
Transpôs a pontezinha e sentou-se, a fim de se divertir com o aspecto da cachoeira de
águas espumantes e de lhes escutar o ruído idilicamente palrador, uniforme e todavia cheio de
variação íntima. O murmúrio das águas – Hans Castorp adorava-o tanto quanto a música, e talvez
ainda mais. Mas, apenas se pusera à vontade, começou a sangrar-lhe o nariz, tão de repente que
não pôde evitar que se manchasse a sua roupa. A hemorragia era violenta e obstinada; durante
meia hora, pouco mais ou menos, não parou de incomodá-lo, obrigando-o a ir e vir, sem cessar,
entre o regato e o banco, para lavar o lenço, aspergir água e voltar a estender-se nas tábuas do
assento, com o nariz coberto pelo lenço úmido. Quando finalmente o sangue estancou,
permaneceu assim deitado, imóvel, com as mãos presas atrás da cabeça, e com os joelhos fletidos.
Tinha os olhos cerrados e os ouvidos cheios de zoadas. Contudo, não se sentia mal, antes
acalmado pela copiosa sangria. Achava-se num estado de vitalidade singularmente diminuída;
pois, cada vez que expelia o ar, durante algum tempo não experimentava nenhuma necessidade
de aspirar outra vez; com o corpo em suspenso, deixava, com toda a calma, que seu coração
palpitasse diversas vezes, antes que, tardia e indolentemente, voltasse a tomar fôlego.
Eis que, de súbito, se sentiu transportado para aquela fase remota da sua vida, em que se
passara a cena original de um sonho remodelado em conformidade com impressões mais
recentes, e que tivera poucas noites atrás... Vigorosa, irrestritamente, a ponto de olvidar o espaço
e o tempo, sentiu-se ele arrebatado para aquela hora e aquele lugar, com tanta intensidade que se
poderia dizer que no banco, junto da cachoeira, jazia um corpo inânime, ao passo que o
verdadeiro Hans Castorp se encontrava longe dali, num ambiente e numa época muito distantes –
e ainda numa situação que, apesar da sua simplicidade, era para ele arriscada e lhe inebriava o
coração.
Tinha então treze anos; era aluno do quarto ano do ginásio, um rapazote de calças curtas.
Achava-se no pátio da escola, a conversar com outro garoto, aproximadamente da mesma idade,
mas que pertencia a outra série. Era por motivos bastante gratuitos que Hans Castorp entabulara
essa conversa, que o alegrava sobremodo, posto que seu assunto objetivo e claramente delimitado
a obrigasse a um máximo de brevidade. Isso se passava durante o recreio entre a penúltima e a
última aula, aulas de história e de desenho, respectivamente, para a série de Hans Castorp. No
pátio pavimentado de ladrilhos vermelhos e separado da rua por um muro coberto de telhas e
provido de dois portões, os alunos passeavam em filas ou formavam grupos, encostando-se semi-sentados às saliências azulejadas do edifício. Entrecortavam-se numerosas vozes. Um professor,
com um chapéu de abas largas, vigiava a rapaziada, enquanto comia um sanduíche de presunto.
O garoto com o qual Hans Castorp conversava chamava-se Hippe, e seu prenome era
Pribislav. Acrescia a isso, como detalhe curioso, que o “r” desse prenome se pronunciava como
“ch”: dizia-se Pchibislav, e esse nome pouco comum condizia bem com o aspecto do rapaz, cujo
tipo, longe de ser normal, era antes bastante exótico. Hippe, filho de um historiador e professor
de ginásio, e por conseguinte um aluno modelar, já freqüentava a classe imediatamente acima da
de Hans Castorp, se bem que fosse quase da mesma idade. Provinha de Mecklenburg, e sua
pessoa constituía, evidentemente, o produto de uma antiga mistura de raças, com uma dose de
sangue eslavo num recipiente germânico, ou vice-versa. Seus cabelos, aparados rente ao crânio
redondo, eram louros, mas seus olhos, de uma cor entre o azul e o cinzento – era uma cor
incerta, ambígua, qual a de uma cordilheira longínqua –, mostravam uma forma singular, estreita
e, a rigor, até um pouco oblíqua; e sob esses olhos destacavam-se as maçãs, salientes e fortemente
acentuadas. Essas feições, nada feias e mesmo bastante simpáticas, haviam valido a Hippe, entre
os colegas, o apelido de “o Quirguiz”[1]. Hippe já usava calças compridas e uma jaqueta azul,
cinturada nas costas e fechada até o pescoço, sobre cuja gola se percebiam habitualmente alguns
vestígios de caspa.
Acontecia que Hans Castorp, desde muito tempo, fixara a sua atenção nesse Pribislav;
escolhera-o em meio ao formigueiro de rostos conhecidos e desconhecidos que enchia o pátio;
interessava-se por ele, acompanhava-o com os olhos e -será lícito dizer que o admirava? Em todo
caso devotava-lhe um interesse especial e, ao dirigir-se à escola, já se regozijava com a idéia de
observá-lo no trato com os companheiros de curso, de vê-lo falar e rir-se, e de distinguir-lhe de
longe a voz no meio das outras, aquela voz agradável, velada e um tanto rouca. É forçoso admitir
que não havia razão suficiente para essa simpatia, a não ser que se queira considerar como tal o
prenome pagão, a qualidade de aluno modelar – cuja influência podemos excluir – ou finalmente
os olhos quirguizes, olhos que às vezes (por ocasião de certos relances para o lado, que não se
fixavam em nada) eram capazes de se envolver languidamente em trevas misteriosas. Fosse como
fosse, Hans Castorp pouco se preocupava com a justificação intelectual dos seus sentimentos e
ainda menos com o problema de encontrar uma denominação para eles. Indubitavelmente não se
podia falar de amizade, já que ele nem sequer “conhecia” Hippe. Mas, em primeiro lugar, não
havia a mínima necessidade de uma denominação, porquanto nem se pensava em falar de um
assunto que não se prestava para isso nem requeria palavras. E em segundo lugar, uma
denominação representa, se não uma crítica, ao menos uma definição, isto é, uma classificação na ordem das coisas conhecidas e habituais, ao passo que Hans Castorp estava compenetrado da
convicção inconsciente de que um tesouro íntimo como esse devia ser preservado para sempre de
tal definição e classificação.
Bem ou mal justificados, e em todo caso impróprios para qualquer denominação ou
expressão verbal, eram esses sentimentos de tanta força vital, que Hans Castorp, já fazia um ano
– pouco mais ou menos, por ser impossível fixar a data do começo –, alimentava-os em silêncio,
o que revelava, pelo menos, a fidelidade e a constância do seu caráter, levando-se em conta o
lapso enorme de tempo que nessa idade representa um ano. Infelizmente as designações de
qualidades de caráter contêm, via de regra, um julgamento moral, quer no sentido de um elogio,
quer de uma censura, se bem que todas elas tenham dois aspectos. Quando examinamos, sem
emitir nenhuma opinião acerca do seu valor, a tal “fidelidade” de Hans Castorp – da qual ele
mesmo não se gabava absolutamente –, consistia ela em certa morosidade, lentidão e persistência
do seu espírito, numa mentalidade fundamentalmente conservadora, que lhe afigurava as
situações e as circunstâncias da vida tanto mais dignas de estabilidade e de simpatia quanto maior
era a sua duração. Também se inclinava a crer na eternidade do estado particular e da disposição
de alma em que se achava em determinado momento, e justamente por isso os apreciava, sem
almejar nenhuma modificação. Assim se acostumara, no seu íntimo, a essa longínqua e silenciosa
relação que o ligava a Pribislav Hippe, tomando-a no fundo por uma instituição permanente da
sua vida. Adorava as emoções que ela acarretava, a curiosidade de saber se neste ou naquele dia o
outro iria ou não a seu encontro, se passaria perto dele, ou talvez se lhe dirigiria um olhar;
adorava essas satisfações tácitas e delicadas com que o brindava o seu segredo; adorava até
mesmo as decepções inerentes ao caso, e dentre as quais a maior era verificar que Pribislav faltava
à aula; então, o pátio parecia ermo; o dia, privado de todo sabor; e entretanto permanecia viva a
esperança no futuro.
Isso durou um ano, até alcançar aquele apogeu crítico. Depois, continuou por mais um
ano, graças à fidelidade conservadora de Hans Castorp, e por fim terminou, sem que ele notasse
mais do afrouxamento e da dissolução dos laços que o ligavam a Pribislav Hippe do que notara
da sua formação. Ademais, Pribislav abandonou o ginásio e a cidade, devido a uma transferência
de seu pai; mas esse fato, Hans Castorp mal o percebeu. Pode-se dizer que o vulto do
“Quirguiz”, desprendendo-se imperceptivelmente de uma névoa, entrou na sua vida, onde ia
adquirindo uma nitidez e um relevo cada vez mais intensos, até aquele instante no pátio, que
representava o máximo de clareza e de corporeidade; que durante algum tempo se conservou
assim no primeiro plano, e por fim, aos poucos, recuou, desaparecendo nas brumas, sem
despertar nenhuma tristeza de despedida.
Esse instante, porém, a situação arriscada, cheia de aventuras, pela qual Hans Castorp
novamente passava neste momento, a conversa, uma verdadeira conversa com Pribislav Hippe,
produziu-se da seguinte forma: era antes da aula de desenho, e Hans Castorp verificou que não
tinha lápis. Dos seus companheiros de curso, nenhum podia dispensar o seu. Mas, entre os
alunos de outras séries, Hans Castorp tinha este ou aquele conhecido que lhe poderia suprir a
falta. Dentre todos – achava ele – era Pribislav Hippe quem ele conhecia melhor; era-lhe mais
familiar do que os outros esse rapaz com o qual, em silêncio, já se preocupara tantas vezes. E
com um impulso alegre de todo o seu ser, resolveu aproveitar a oportunidade – chamava a isso
de oportunidade – e pedir a Pribislav Hippe que lhe emprestasse um lápis. Não percebeu que esse
ato seria um tanto estranho, visto ele não conhecer Hippe em realidade; pelo menos não se
importou com isso, obcecado por uma desconsideração singular. E assim aconteceu que, no meio
da azáfama do pátio ladrilhado, se plantou diante de Pribislav Hippe e lhe disse:
– Perdão, você poderia emprestar-me um lápis?
E Pribislav fitou-o com seus olhos quirguizes, por cima das maçãs salientes. Respondeu-lhe então na sua voz simpática e velada, falando sem a mínima surpresa, ou, ao menos, sem
manifestá-la.
– Com muito prazer – disse. – Mas você deve devolvê-lo sem falta depois da aula. – Com
essas palavras tirou do bolso uma lapiseira prateada, com um anel que se devia empurrar para
cima, para que o lápis vermelho apontasse do tubo metálico. Hippe explicou o mecanismo
simples, enquanto as duas cabeças se inclinavam sobre o objeto.
– Cuidado para não quebrá-lo! – acrescentou.
Que ideia! Como se Hans Castorp pretendesse não devolver a lapiseira ou até tratá-la com
descuido.
Depois, olharam-se sorrindo e, como nada mais restasse a dizer, deram lentamente meia-volta e separaram-se.
Foi tudo. Mas nunca na vida Hans Castorp sentira-se mais satisfeito do que naquela aula
de desenho, ao trabalhar com o lápis de Pribislav Hippe, e com a perspectiva de entregá-lo, mais
tarde, ao seu dono, como consequência natural e espontânea daquilo que haviam combinado.
Tomou a liberdade de apontar o lápis, e das lasquinhas vermelhas que sobraram, guardou três ou
quatro durante quase um ano numa gaveta da sua carteira. Ninguém que as visse suspeitaria da
sua importância. A devolução realizou-se, de resto, da forma mais simples possível, em perfeita
conformidade com as intenções de Hans Castorp, que até se orgulhava um pouco desse fato,
displicente e pretensioso que se tornara pela intimidade com Hippe.
– Tome – disse. – E muito obrigado.
Pribislav não respondeu nada; limitou-se a verificar rapidamente o mecanismo e meteu a
lapiseira no bolso.
Depois disso, nunca mais voltaram a se falar. De qualquer maneira, porém, haviam se
falado uma vez, graças ao espírito empreendedor de Hans Castorp...
Abriu os olhos, ainda confuso pela intensidade do seu arrebatamento. “Parece que
sonhei!”, pensou. “Pois é, era Pribislav. Faz tempo que não lembro dele. Onde é que foram parar
aquelas lasquinhas? A carteira está no sótão, na casa do tio Tienappel. Devem ainda estar na
gavetinha esquerda. Não as tirei. Nem sequer lhes prestei a atenção suficiente para jogá-las fora...
Era Pribislav, em carne e osso. Eu nunca teria pensado que tornaria a vê-lo tão nitidamente.
Como se parecia com ela, com aquela mulher, ali do sanatório. Quem sabe se não é por isso que
eu me interesso tanto por ela? Bobagem! Pura bobagem! Em todo caso está na hora de voltar, e
bem depressa.” Ainda assim, permaneceu deitado por mais alguns instantes, cismando, absorto
em recordações. “Pois então, passe bem, e muito agradecido”, disse e sorriu, com os olhos cheios
de lágrimas. A seguir fez uma tentativa de se pôr a caminho. Mas logo tornou a sentar-se, com o
chapéu e a bengala na mão, pois verificou que os joelhos não o sustentavam com firmeza.
“Epa!”, pensou. “Parece que não dá. Contudo, é preciso que eu esteja às onze em ponto na sala
de refeições, para assistir à conferência. Os passeios aqui têm seus atrativos, mas têm também as
suas dificuldades. Seja como for, não posso ficar aqui. Estou apenas com as pernas duras por ter
ficado deitado durante tanto tempo! Com o movimento, isso vai melhorar.” Tentou mais uma
vez pôr-se de pé e, com um sério esforço, conseguiu fazê-lo.
Mas, comparado com a partida briosa, o regresso não deixava de ser lamentável.
Repetidas vezes, Hans Castorp teve que descansar à beira do caminho, por sentir que seu rosto
de súbito empalidecera, que sua testa estava banhada em suor frio, e que as palpitações
desregradas do coração lhe tolhiam o fôlego. Penosamente se esfalfou na descida em ziguezague,
e quando chegou ao vale, nas proximidades da estância, compreendeu com toda a clareza que lhe
seria impossível percorrer com suas próprias forças o extenso trajeto até o Berghof. Como não
houvesse condução coletiva, nem se enxergasse nenhum carro de aluguel, fez parar um carroceiro
que conduzia rumo à aldeia uma carreta, cheia de caixotes vazios, e pediu-lhe que o deixasse
subir. Sentou-se de costas para o homem, com as pernas pendendo para fora do veículo. Os
transeuntes contemplavam-no com surpresa e compaixão, enquanto assim se deixava transportar,
oscilando sob o efeito das sacudidelas, com a cabeça a balançar de sonolência. Perto da passagem
de nível, desembarcou, deu ao carroceiro algumas moedas, sem reparar se eram muitas ou
poucas, e galgou apressadamente a rampa sinuosa.
– Dépêchez-vous, monsieur – disse o porteiro francês. – La conférence de M. Krokowski vient de
commencer. – Hans Castorp atirou o chapéu e a bengala ao moço encarregado do vestiário e, com a
língua entre os dentes, esgueirou-se depressa, e todavia cautelosamente, pela porta entreaberta da
sala de refeições, onde os pensionistas se haviam agrupado em cadeiras dispostas em filas,
enquanto à direita, atrás de uma mesa guarnecida de uma garrafa de água, o Dr. Krokowski,
vestido de sobrecasaca, já começara a falar.
continua pág 081...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Hippe
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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[1]
Indivíduo dos quirguizes, povo de origem turca que habita a Rússia asiática. (N. do E.)
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