quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A Montanha Mágica - Hippe

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo IV

Hippe 

   Dessa forma se destacou o domingo. Sua tarde foi, além disso, assinalada por excursões de coche que realizaram vários grupos de hóspedes. Depois do chá, diversas parelhas subiram laboriosamente a rampa do sanatório e pararam em frente ao portão principal, para recolher os pensionistas que haviam encomendado os carros. Eram na maioria russos, sobretudo senhoras russas.

– Os russos gostam de passear de carro – disse Joachim a Hans Castorp. Os primos estavam diante da entrada e divertiam-se a    presenciar a partida das carruagens. – Vão a Clavadell ou ao lago ou ao vale de Flüela ou a Klosters. São esses os passeios que se costuma fazer. Qualquer dia poderíamos também passear de carro, se quiser. Mas acho que por enquanto você terá bastante trabalho para se aclimatar, e não tem necessidade de aventuras.

   Hans Castorp concordou. Tinha um cigarro na boca e as mãos nos bolsos da calça. Viu como a jovial velhota russa com a sobrinha magra e mais duas outras senhoras – Marusja e Mme.. Chauchat – tomavam assento num coche. Mme.. Chauchat trazia um guarda-pó leve, cinturado, mas não usava chapéu. Sentou-se ao lado da senhora idosa, no fundo do carro, ao passo que as senhoritas ocuparam os assentos da frente. As quatro estavam alegres, e suas bocas não paravam nem um segundo. Tagarelavam naquele seu idioma brando, como que desprovido de ossos. Falavam e riam-se do cobertor de viagem, muito pequeno e que com dificuldade bastava para quatro pessoas, bem como dos bombons russos que a velha tia levava como merenda, numa caixinha de madeira, forrada de algodão e papel rendado, e que já antes da partida fazia circular... Hans Castorp distinguiu com interesse a voz velada de Mme.. Chauchat. Como sempre, quando avistava essa mulher negligente, sentia reafirmar-se aquela semelhança que andara procurando por tanto tempo e finalmente descobrira num dos seus sonhos... O riso de Marusja, porém, o aspecto dos seus olhos redondos e castanhos que vagavam com uma expressão infantil por cima do lencinho que cobria a boca, e seus seios rijos, que interiormente estavam bastante doentes – tudo isso lhe recordava outra coisa, uma visão comovente que tivera havia pouco tempo. Cautelosamente, sem mover a cabeça, olhou para Joachim, a seu lado. Não! Graças a Deus, o seu rosto não tinha a cor terrosa do outro dia, e os lábios também não se crispavam daquele modo doloroso. Mas o primo estava com os olhos fixos em Marusja, numa atitude e com uma fisionomia que seria impossível qualificar de militares, e que, bem ao contrário, pareciam tão tristonhas e descontroladas que era inelutável tachá-las de perfeitamente civis. No entanto, não tardou a dominar-se e lançou um olhar tão rápido a Hans Castorp, que este mal teve tempo para desviar os olhos e dirigi-los para qualquer ponto no ar. Sentiu, simultaneamente, como o seu coração se punha a bater, sem motivo nenhum e por iniciativa própria, como às vezes fazia ali em cima.
   O resto do domingo não ofereceu mais nada de extraordinário, a não ser a comida, que, embora não pudesse ser mais farta do que de costume, distinguia-se ao menos por um maior requinte nos pratos. (No cardápio do almoço figurava um chaud-froid de galinha, guarnecido de caranguejos e meias cerejas; os sorvetes vieram acompanhados de filhoses, em cestinhos tecidos de fios de açúcar, e por fim surgiram até fatias de abacaxi fresco.) Pela noite, depois de tomar a sua cerveja, Hans Castorp sentiu-se esgotado, com frio e com uma lassidão nos membros ainda maior do que nos dias anteriores. Já às nove horas disse “Boa noite” ao primo, cobriu-se apressadamente com o acolchoado de penas e adormeceu como um fulminado. 
   Mas o dia seguinte, isto é, a primeira segunda-feira que o visitante passou no sanatório, trouxe outra dentre as modificações periódicas do programa normal: uma daquelas conferências que o Dr. Krokowski fazia de quinze em quinze dias na sala de refeições para todos os pensionistas adultos do Berghof que dominassem o idioma alemão. Tratava-se, segundo Hans Castorp soube de Joachim, de uma série de preleções contínuas, espécie de curso científico-popular, sob o título geral de “O amor como fator patogênico”. A palestra didática realizava-se depois do café da manhã, e, também segundo a informação de Joachim, não era lícito, ou pelo menos era muito malvisto, que alguém deixasse de assistir a ela. Por isso considerava-se uma ousadia pasmosa a atitude de Settembrini, que, embora dominando o alemão melhor do que ninguém, não somente nunca comparecia a essas conferências, mas até as criticava em termos sumamente depreciativos. Quanto a Hans Castorp, estava disposto a ir, em primeiro lugar por  cortesia, como também por uma curiosidade não dissimulada. Antes, porém, fez uma coisa completamente errada e prejudicial: deu-lhe na veneta empreender, por conta própria, um extenso passeio, de que se saiu sobremodo mal.

– Escute – foram as suas primeiras palavras, quando Joachim, pela manhã, entrou no seu quarto. – Eu vejo que não posso continuar desse jeito. Estou farto da vida horizontal. Com esse regime, o sangue adormece nas veias da gente. O seu caso é diferente, claro! Absolutamente não quero tentar você. Mas tenho a intenção de dar, logo depois do café, um bom passeio, se você não me leva a mal essa idéia. Caminharei assim, sem destino, durante algumas horas. Vamos ver se não me sentirei outro homem quando regressar. 

– Está bem – disse Joachim, ao notar que o outro levava a sério o projeto. – Mas não exagere, ouviu? Aqui as coisas não são como lá embaixo. E procure estar de volta na hora da conferência. 

   Na realidade, as razões que haviam levado o jovem Hans Castorp ao projeto desse passeio não se relacionavam somente com o seu bem-estar físico. Parecia-lhe que sua cabeça quente, o gosto ruim que ele amiúde tinha na boca, e as pulsações caprichosas do seu coração se deviam menos às dificuldades da aclimatação do que a certos fatores, como, por exemplo, as atividades do casal russo no quarto vizinho, a lengalenga que a estúpida e doente Srª. Stöhr proferia durante as refeições, a tosse lamacenta do aristocrata austríaco, que todos os dias se ouvia no corredor, as palavras do Sr. Albin, as impressões que os costumes sociais da mocidade enferma lhe haviam causado, a fisionomia de Joachim quando olhava para Marusja, e outras observações desse tipo. Pensava então que deveria ser saudável subtrair-se ao círculo mágico do Berghof, respirar profundamente ao ar livre e fazer algum exercício, a fim de saber, de noite, por que se sentia tão cansado. E assim se separou de Joachim, quando este, após o café da manhã, começava o seu passeio delimitado pelo regulamento, em direção ao banco junto da calha. Brandindo a bengala, desceu pela estrada de rodagem, para seguir caminhos independentes.
   Era uma manhã fresquinha e nublada, pelas oito e meia. Tal e qual se propusera, Hans Castorp aspirava profundamente o puríssimo ar matutino, uma atmosfera fresca e leve que se deixava sorver sem esforço, atmosfera sem umidade nem conteúdo nem recordações... Transpôs o curso d'água e os trilhos de bitola estreita, alcançou a rua principal, aqui e ali ladeada de casas, mas logo a abandonou, para tomar um atalho através dos prados, que, depois de um curto trajeto plano, subia, num curso oblíquo e bastante íngreme, a encosta à direita. Essa subida alegrou Hans Castorp. Dilatou-se-lhe o peito. Com o castão da bengala empurrou o chapéu para trás, e quando, de certa altura, lançou um olhar sobre a paisagem e avistou ao longe o espelho do lago, pôs-se até a cantar. 
   Cantou as canções que lhe ocorriam, toda espécie de cantigas sentimentais e populares, como figuram nas antologias para ginasianos. Uma, por exemplo, continha os versos:

“Que os bardos cantem o amor e o vinho, 
 Mas antes cantem a virtude...”   

   Começou cantarolando baixinho, mas logo aumentou o volume e por fim cantava com toda a força que tinha. Sua voz de barítono era áspera, mas, nesse momento, pareceu-lhe bonita. Entusiasmava-se cada vez mais, à medida que ia cantando. Quando chegava a notas excessivamente altas, recorria ao falsete, e também este lhe agradava. Às vezes falhava a sua memória, e nesses casos saía-se bem entoando a melodia com quaisquer palavras e sílabas absurdas que no momento lhe ocorriam, e que ele, à maneira dos cantores de ópera, proferia modulando-as com os lábios e carregando nos “r”. Finalmente passou a improvisar tanto o texto como a melodia, acompanhando sua apresentação com gestos teatrais dos braços. Já que é muito cansativo subir e cantar ao mesmo tempo, Hans Castorp em breve perdeu o fôlego. Mas, por idealismo, em prol da beleza do canto, venceu a emergência e, por entre numerosos suspiros, deu tudo o que tinha. Por fim, completamente sem alento, quase cego, com olhos que enxergavam apenas faíscas coloridas, e com o pulso a martelar, deixou-se cair ao pé de um enorme pinheiro. Depois de tamanha emoção, sentiu-se tomado de uma sensação de intenso mal-estar, de uma ressaca que tocava as raias do desespero.
   Quando, com os nervos mais ou menos tranquilizados, animou-se a prosseguir o passeio, tremia-lhe veementemente a nuca, de modo que, apesar da sua juventude, sacudia a cabeça da mesma forma como outrora fizera o velho Hans Lorenz Castorp. Ele mesmo sentiu que esse fenômeno lhe recordava simpaticamente o falecido avô, e sem experimentar repugnância, divertiu-se com a imitação daquele gesto de apoiar o queixo sobre o nó da gravata, gesto com o qual o velho procurava evitar o tremor da cabeça, e que tanto agradava ao menino.
   Subiu ainda mais, em ziguezague. Atraía-o o tilintar dos cincerros das vacas. Passado pouco tempo, avistou um rebanho a pastar nas proximidades de um chalé, cujo telhado estava consolidado com pedras. Dois homens barbudos, com machados no ombro, vinham a seu encontro. Perto dele, despediram-se um do outro. – Pois então, passe bem, e muito agradecido! – disse um dos homens, numa voz profunda, gutural e, mudando o machado de um ombro para o outro, dirigiu-se ao vale, abrindo caminho, a passo ruidoso, por entre os pinheiros. Aquele “Passe bem, e muito agradecido”, que soara estranhamente através da solidão, fez sonhar o espírito de Hans Castorp, ainda tonto pela subida e pelo canto. Repetiu as palavras em voz baixa, procurando arremedar o dialeto gutural, singelo e solene do montanhês. Subiu um bom pedaço além da choça, na intenção de alcançar o limite das árvores. Mas um olhar ao relógio fez com que desistisse do projeto.
   Dobrou para a esquerda, rumo à aldeia, seguindo uma vereda que começava plana e depois descia. Acolheu-o um bosque de altas coníferas. Ao atravessá-lo, Hans Castorp voltou a cantar um pouco, ainda que cautelosamente. Mesmo assim tremiam-lhe os joelhos durante a descida ainda mais do que antes. Quando saiu do bosque, deteve-se, surpreso, diante de um quadro magnífico que se lhe descortinava, uma paisagem íntima e fechada, de plasticidade tranquila e grandiosa.
   Por um leito pedregoso, pouco profundo, precipitava-se um curso d'água pela encosta direita abaixo; saltava, escumando, os rochedos dispostos como que em terraços, e em seguida corria, num fluxo mais calmo, em direção ao vale, passando por baixo de uma pitoresca pontezinha, com um tosco parapeito de madeira. O solo parecia azul pelas flores campanuláceas de um arbusto que crescia em toda parte. Pinheiros sombrios, de troncos gigantescos e bem-proporcionados, viam-se ora isolados, ora em grupos, no fundo do desfiladeiro e nas encostas. Um deles, arraigado obliquamente no alcantil à beira do arroio torrentoso, atravessava o panorama numa diagonal torta e excêntrica. Uma solidão cheia de rumores pairava sobre esse sítio isolado e formoso. Do outro lado do regato, Hans Castorp viu um banco que convidava ao repouso.
   Transpôs a pontezinha e sentou-se, a fim de se divertir com o aspecto da cachoeira de águas espumantes e de lhes escutar o ruído idilicamente palrador, uniforme e todavia cheio de variação íntima. O murmúrio das águas – Hans Castorp adorava-o tanto quanto a música, e talvez ainda mais. Mas, apenas se pusera à vontade, começou a sangrar-lhe o nariz, tão de repente que não pôde evitar que se manchasse a sua roupa. A hemorragia era violenta e obstinada; durante meia hora, pouco mais ou menos, não parou de incomodá-lo, obrigando-o a ir e vir, sem cessar, entre o regato e o banco, para lavar o lenço, aspergir água e voltar a estender-se nas tábuas do assento, com o nariz coberto pelo lenço úmido. Quando finalmente o sangue estancou, permaneceu assim deitado, imóvel, com as mãos presas atrás da cabeça, e com os joelhos fletidos. Tinha os olhos cerrados e os ouvidos cheios de zoadas. Contudo, não se sentia mal, antes acalmado pela copiosa sangria. Achava-se num estado de vitalidade singularmente diminuída; pois, cada vez que expelia o ar, durante algum tempo não experimentava nenhuma necessidade de aspirar outra vez; com o corpo em suspenso, deixava, com toda a calma, que seu coração palpitasse diversas vezes, antes que, tardia e indolentemente, voltasse a tomar fôlego.
   Eis que, de súbito, se sentiu transportado para aquela fase remota da sua vida, em que se passara a cena original de um sonho remodelado em conformidade com impressões mais recentes, e que tivera poucas noites atrás... Vigorosa, irrestritamente, a ponto de olvidar o espaço e o tempo, sentiu-se ele arrebatado para aquela hora e aquele lugar, com tanta intensidade que se poderia dizer que no banco, junto da cachoeira, jazia um corpo inânime, ao passo que o verdadeiro Hans Castorp se encontrava longe dali, num ambiente e numa época muito distantes – e ainda numa situação que, apesar da sua simplicidade, era para ele arriscada e lhe inebriava o coração.
   Tinha então treze anos; era aluno do quarto ano do ginásio, um rapazote de calças curtas. Achava-se no pátio da escola, a conversar com outro garoto, aproximadamente da mesma idade, mas que pertencia a outra série. Era por motivos bastante gratuitos que Hans Castorp entabulara essa conversa, que o alegrava sobremodo, posto que seu assunto objetivo e claramente delimitado a obrigasse a um máximo de brevidade. Isso se passava durante o recreio entre a penúltima e a última aula, aulas de história e de desenho, respectivamente, para a série de Hans Castorp. No pátio pavimentado de ladrilhos vermelhos e separado da rua por um muro coberto de telhas e provido de dois portões, os alunos passeavam em filas ou formavam grupos, encostando-se semi-sentados às saliências azulejadas do edifício. Entrecortavam-se numerosas vozes. Um professor, com um chapéu de abas largas, vigiava a rapaziada, enquanto comia um sanduíche de presunto.
   O garoto com o qual Hans Castorp conversava chamava-se Hippe, e seu prenome era Pribislav. Acrescia a isso, como detalhe curioso, que o “r” desse prenome se pronunciava como “ch”: dizia-se Pchibislav, e esse nome pouco comum condizia bem com o aspecto do rapaz, cujo tipo, longe de ser normal, era antes bastante exótico. Hippe, filho de um historiador e professor de ginásio, e por conseguinte um aluno modelar, já freqüentava a classe imediatamente acima da de Hans Castorp, se bem que fosse quase da mesma idade. Provinha de Mecklenburg, e sua pessoa constituía, evidentemente, o produto de uma antiga mistura de raças, com uma dose de sangue eslavo num recipiente germânico, ou vice-versa. Seus cabelos, aparados rente ao crânio redondo, eram louros, mas seus olhos, de uma cor entre o azul e o cinzento – era uma cor incerta, ambígua, qual a de uma cordilheira longínqua –, mostravam uma forma singular, estreita e, a rigor, até um pouco oblíqua; e sob esses olhos destacavam-se as maçãs, salientes e fortemente acentuadas. Essas feições, nada feias e mesmo bastante simpáticas, haviam valido a Hippe, entre os colegas, o apelido de “o Quirguiz”[1]. Hippe já usava calças compridas e uma jaqueta azul, cinturada nas costas e fechada até o pescoço, sobre cuja gola se percebiam habitualmente alguns vestígios de caspa.
   Acontecia que Hans Castorp, desde muito tempo, fixara a sua atenção nesse Pribislav; escolhera-o em meio ao formigueiro de rostos conhecidos e desconhecidos que enchia o pátio; interessava-se por ele, acompanhava-o com os olhos e -será lícito dizer que o admirava? Em todo caso devotava-lhe um interesse especial e, ao dirigir-se à escola, já se regozijava com a idéia de observá-lo no trato com os companheiros de curso, de vê-lo falar e rir-se, e de distinguir-lhe de longe a voz no meio das outras, aquela voz agradável, velada e um tanto rouca. É forçoso admitir que não havia razão suficiente para essa simpatia, a não ser que se queira considerar como tal o prenome pagão, a qualidade de aluno modelar – cuja influência podemos excluir – ou finalmente os olhos quirguizes, olhos que às vezes (por ocasião de certos relances para o lado, que não se fixavam em nada) eram capazes de se envolver languidamente em trevas misteriosas. Fosse como fosse, Hans Castorp pouco se preocupava com a justificação intelectual dos seus sentimentos e ainda menos com o problema de encontrar uma denominação para eles. Indubitavelmente não se podia falar de amizade, já que ele nem sequer “conhecia” Hippe. Mas, em primeiro lugar, não havia a mínima necessidade de uma denominação, porquanto nem se pensava em falar de um assunto que não se prestava para isso nem requeria palavras. E em segundo lugar, uma denominação representa, se não uma crítica, ao menos uma definição, isto é, uma classificação na ordem das coisas conhecidas e habituais, ao passo que Hans Castorp estava compenetrado da convicção inconsciente de que um tesouro íntimo como esse devia ser preservado para sempre de tal definição e classificação.
   Bem ou mal justificados, e em todo caso impróprios para qualquer denominação ou expressão verbal, eram esses sentimentos de tanta força vital, que Hans Castorp, já fazia um ano – pouco mais ou menos, por ser impossível fixar a data do começo –, alimentava-os em silêncio, o que revelava, pelo menos, a fidelidade e a constância do seu caráter, levando-se em conta o lapso enorme de tempo que nessa idade representa um ano. Infelizmente as designações de qualidades de caráter contêm, via de regra, um julgamento moral, quer no sentido de um elogio, quer de uma censura, se bem que todas elas tenham dois aspectos. Quando examinamos, sem emitir nenhuma opinião acerca do seu valor, a tal “fidelidade” de Hans Castorp – da qual ele mesmo não se gabava absolutamente –, consistia ela em certa morosidade, lentidão e persistência do seu espírito, numa mentalidade fundamentalmente conservadora, que lhe afigurava as situações e as circunstâncias da vida tanto mais dignas de estabilidade e de simpatia quanto maior era a sua duração. Também se inclinava a crer na eternidade do estado particular e da disposição de alma em que se achava em determinado momento, e justamente por isso os apreciava, sem almejar nenhuma modificação. Assim se acostumara, no seu íntimo, a essa longínqua e silenciosa relação que o ligava a Pribislav Hippe, tomando-a no fundo por uma instituição permanente da sua vida. Adorava as emoções que ela acarretava, a curiosidade de saber se neste ou naquele dia o outro iria ou não a seu encontro, se passaria perto dele, ou talvez se lhe dirigiria um olhar; adorava essas satisfações tácitas e delicadas com que o brindava o seu segredo; adorava até mesmo as decepções inerentes ao caso, e dentre as quais a maior era verificar que Pribislav faltava à aula; então, o pátio parecia ermo; o dia, privado de todo sabor; e entretanto permanecia viva a esperança no futuro.
   Isso durou um ano, até alcançar aquele apogeu crítico. Depois, continuou por mais um ano, graças à fidelidade conservadora de Hans Castorp, e por fim terminou, sem que ele notasse mais do afrouxamento e da dissolução dos laços que o ligavam a Pribislav Hippe do que notara da sua formação. Ademais, Pribislav abandonou o ginásio e a cidade, devido a uma transferência de seu pai; mas esse fato, Hans Castorp mal o percebeu. Pode-se dizer que o vulto do “Quirguiz”, desprendendo-se imperceptivelmente de uma névoa, entrou na sua vida, onde ia adquirindo uma nitidez e um relevo cada vez mais intensos, até aquele instante no pátio, que representava o máximo de clareza e de corporeidade; que durante algum tempo se conservou assim no primeiro plano, e por fim, aos poucos, recuou, desaparecendo nas brumas, sem despertar nenhuma tristeza de despedida.
   Esse instante, porém, a situação arriscada, cheia de aventuras, pela qual Hans Castorp novamente passava neste momento, a conversa, uma verdadeira conversa com Pribislav Hippe, produziu-se da seguinte forma: era antes da aula de desenho, e Hans Castorp verificou que não tinha lápis. Dos seus companheiros de curso, nenhum podia dispensar o seu. Mas, entre os alunos de outras séries, Hans Castorp tinha este ou aquele conhecido que lhe poderia suprir a falta. Dentre todos – achava ele – era Pribislav Hippe quem ele conhecia melhor; era-lhe mais familiar do que os outros esse rapaz com o qual, em silêncio, já se preocupara tantas vezes. E com um impulso alegre de todo o seu ser, resolveu aproveitar a oportunidade – chamava a isso de oportunidade – e pedir a Pribislav Hippe que lhe emprestasse um lápis. Não percebeu que esse ato seria um tanto estranho, visto ele não conhecer Hippe em realidade; pelo menos não se importou com isso, obcecado por uma desconsideração singular. E assim aconteceu que, no meio da azáfama do pátio ladrilhado, se plantou diante de Pribislav Hippe e lhe disse:

– Perdão, você poderia emprestar-me um lápis?

   E Pribislav fitou-o com seus olhos quirguizes, por cima das maçãs salientes. Respondeu-lhe então na sua voz simpática e velada, falando sem a mínima surpresa, ou, ao menos, sem manifestá-la. 

– Com muito prazer – disse. – Mas você deve devolvê-lo sem falta depois da aula. – Com essas palavras tirou do bolso uma lapiseira prateada, com um anel que se devia empurrar para cima, para que o lápis vermelho apontasse do tubo metálico. Hippe explicou o mecanismo simples, enquanto as duas cabeças se inclinavam sobre o objeto.

– Cuidado para não quebrá-lo! – acrescentou. 

   Que ideia! Como se Hans Castorp pretendesse não devolver a lapiseira ou até tratá-la com descuido. 
   Depois, olharam-se sorrindo e, como nada mais restasse a dizer, deram lentamente meia-volta e separaram-se.
   Foi tudo. Mas nunca na vida Hans Castorp sentira-se mais satisfeito do que naquela aula de desenho, ao trabalhar com o lápis de Pribislav Hippe, e com a perspectiva de entregá-lo, mais tarde, ao seu dono, como consequência natural e espontânea daquilo que haviam combinado. Tomou a liberdade de apontar o lápis, e das lasquinhas vermelhas que sobraram, guardou três ou quatro durante quase um ano numa gaveta da sua carteira. Ninguém que as visse suspeitaria da sua importância. A devolução realizou-se, de resto, da forma mais simples possível, em perfeita conformidade com as intenções de Hans Castorp, que até se orgulhava um pouco desse fato, displicente e pretensioso que se tornara pela intimidade com Hippe.

– Tome – disse. – E muito obrigado.

   Pribislav não respondeu nada; limitou-se a verificar rapidamente o mecanismo e meteu a lapiseira no bolso.
   Depois disso, nunca mais voltaram a se falar. De qualquer maneira, porém, haviam se falado uma vez, graças ao espírito empreendedor de Hans Castorp...
   Abriu os olhos, ainda confuso pela intensidade do seu arrebatamento. “Parece que sonhei!”, pensou. “Pois é, era Pribislav. Faz tempo que não lembro dele. Onde é que foram parar aquelas lasquinhas? A carteira está no sótão, na casa do tio Tienappel. Devem ainda estar na gavetinha esquerda. Não as tirei. Nem sequer lhes prestei a atenção suficiente para jogá-las fora... Era Pribislav, em carne e osso. Eu nunca teria pensado que tornaria a vê-lo tão nitidamente. Como se parecia com ela, com aquela mulher, ali do sanatório. Quem sabe se não é por isso que eu me interesso tanto por ela? Bobagem! Pura bobagem! Em todo caso está na hora de voltar, e bem depressa.” Ainda assim, permaneceu deitado por mais alguns instantes, cismando, absorto em recordações. “Pois então, passe bem, e muito agradecido”, disse e sorriu, com os olhos cheios de lágrimas. A seguir fez uma tentativa de se pôr a caminho. Mas logo tornou a sentar-se, com o chapéu e a bengala na mão, pois verificou que os joelhos não o sustentavam com firmeza. “Epa!”, pensou. “Parece que não dá. Contudo, é preciso que eu esteja às onze em ponto na sala de refeições, para assistir à conferência. Os passeios aqui têm seus atrativos, mas têm também as suas dificuldades. Seja como for, não posso ficar aqui. Estou apenas com as pernas duras por ter ficado deitado durante tanto tempo! Com o movimento, isso vai melhorar.” Tentou mais uma vez pôr-se de pé e, com um sério esforço, conseguiu fazê-lo.
   Mas, comparado com a partida briosa, o regresso não deixava de ser lamentável. Repetidas vezes, Hans Castorp teve que descansar à beira do caminho, por sentir que seu rosto de súbito empalidecera, que sua testa estava banhada em suor frio, e que as palpitações desregradas do coração lhe tolhiam o fôlego. Penosamente se esfalfou na descida em ziguezague, e quando chegou ao vale, nas proximidades da estância, compreendeu com toda a clareza que lhe seria impossível percorrer com suas próprias forças o extenso trajeto até o Berghof. Como não houvesse condução coletiva, nem se enxergasse nenhum carro de aluguel, fez parar um carroceiro que conduzia rumo à aldeia uma carreta, cheia de caixotes vazios, e pediu-lhe que o deixasse subir. Sentou-se de costas para o homem, com as pernas pendendo para fora do veículo. Os transeuntes contemplavam-no com surpresa e compaixão, enquanto assim se deixava transportar, oscilando sob o efeito das sacudidelas, com a cabeça a balançar de sonolência. Perto da passagem de nível, desembarcou, deu ao carroceiro algumas moedas, sem reparar se eram muitas ou poucas, e galgou apressadamente a rampa sinuosa.

Dépêchez-vous, monsieur – disse o porteiro francês. – La conférence de M. Krokowski vient de commencer. – Hans Castorp atirou o chapéu e a bengala ao moço encarregado do vestiário e, com a língua entre os dentes, esgueirou-se depressa, e todavia cautelosamente, pela porta entreaberta da sala de refeições, onde os pensionistas se haviam agrupado em cadeiras dispostas em filas, enquanto à direita, atrás de uma mesa guarnecida de uma garrafa de água, o Dr. Krokowski, vestido de sobrecasaca, já começara a falar.

continua pág 081...
___________________

Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Hippe
___________________

A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

___________________

[1]  Indivíduo dos quirguizes, povo de origem turca que habita a Rússia asiática. (N. do E.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário