Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Prefácio
Na ARTE DE FURTAR, que ultimamente tanto barulho causou entre os eruditos, há um capítulo, o quarto, que tem como ementa esta singular afirmação: “Como os maiores ladrões são os que têm por oficio livrar-nos de outros ladrões.”
Não li o capítulo, mas abrindo ao acaso um exemplar do curioso livro, achei verdadeira a cousa e boa para justificar a publicação destas despretensiosas “Notas”.
A “Bruzundanga” fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos. Sua missão é, portanto, como a dos “maiores” da Arte, livrar-nos dos outros, naturalmente menores.
Bem precisados estávamos nós disto quando temos aqui ministros de Estado que são simples caixeiros de venda, a roubar-nos muito modestamente no peso da carne-seca, enquanto a Bruzundanga os tem que se ocupam unicamente, no seu ofício de ministro, de encarecerem o açúcar no mercado interno, conseguindo isto com o vendê-lo abaixo do preço da usina aos estrangeiros. Lá, chama-se a isto prover necessidades públicas; aqui, não sei que nome teria...
E semelhante ministro daqueles “maiores” de que a Arte nos fala, destinados a ensinar-nos como nos livrar dos nossos modestos caixeiros de mercearias ministeriais.
Não contente com ter dessas cousas, a Bruzundanga possui outras muitas que desejava enumerar todas, pois todas elas são dignas de apreço e portadoras de ensinamentos proveitosos.
Como não poderíamos aproveitar aquele caso de um doutor da Bruzundanga, ele mesmo açambarcador de cebolas, que vai para uma comissão, nomeada para estudar as causas da carestia da vida, e propõe que se adotem leis contra os estancadores de mercadorias?
É que este doutor dos “maiores” de que nos fala o célebre livrinho sabia perfeitamente que não estancava e tinha o hábito de reservas mentais. Não açambarcava, mas “aliviava” logo uma grande porção de mercadorias para o estrangeiro, por qualquer cousa, de modo que... Le pauvre homme! Podia até iludir o nosso pobre Beckman!
Com este exemplo, os menores daqui poderão ser denunciados por este grandalhão de lá, tão generoso e desinteressado, e o nosso povo poderá livrar-se deles.
Conheci na Bruzundanga um rapaz (creio que está nas “Notas”), de rabona de sarja e ares de familiar do Santo Ofício, mas tresandando a Comte, senão a anticlericalismo, que, de uma hora para a outra, se fez reitor do Asilo de Enjeitados, apandilhado com padres e frades, depois de ter arranjado um rico casamento eclesiástico, a fim de ver se, com o apoio da sotaina e do solidéu, se fazia ministro ou mesmo mandachuva da República. Que “maior” não acham?
E aquele que, tendo sido ministro do imperador da Bruzundanga e seu conselheiro, se transformou em açougueiro para vender carne aos vizinhos a dez réis de mel coado, graças às isenções que obteve com o prestígio do seu nome, dos seus amigos, da sua família e das suas antigas posições, enquanto os seus patrícios pagavam-lhe o dobro?
Quantos exemplos de lá, bem grandes, nos irão precaver contra os pequeninos de cá... A Arte fala a verdade...
Outra cousa curiosa da Bruzundanga, das grandes, das extraordinárias, é a sua “Defesa Nacional”.
Lá, como em toda a parte, se devia entender por isso a aquisição de armamentos, munições, equipamentos, adestramento de tropas, etc.; mas os doges do Kaphet (vide texto) entenderam que não; que era dar-lhes dinheiro, para elevar artificialmente o preço de sua especiaria. De que modo? Retendo o produto, proibindo-lhe a exportação desde certo limite, conquanto se houvessem tenazmente oposto a que semelhante medida fosse tomada no que toca às utilidades indispensáveis à nossa vida: cereais, carnes, algodão, açúcar, etc.
É preciso notar que tais utilidades, como já fiz notar, iam para o estrangeiro por metade do preço, menos até.
Aprendamos por aí a conhecer os nossos “menores”.
Poderia muito bem falar de outros grossos casos de lá, capazes de nos livrar dos tais pequenos daqui; mas, para quê?
As páginas que se seguem vão revelá-los e eu me dispenso de narrá-los neste curto prefácio, Pobre terra da Bruzundanga! Velha, na sua maior parte, como o planeta, toda a sua missão tem sido criar a vida e a fecundidade para os outros, pois nunca os que nela nasceram, os que nela viveram, os que a amaram e sugaram-lhe o leite, tiveram sossego sobre o seu solo!
Ainda hoje, quando o geólogo encontra nela um queixal de Megatherium ou um fêmur de Propithecus tem vontade de oferecer à Minerva uma hecatombe de bois brancos!
Vivos, os bons são tangidos daqui para ali, corridos, vexados, se têm grandes ideais; mortos, os seus ossos esperam que os grandes rios da Bruzundanga os levem para fecundar a terra dos outros, lá embaixo, muito longe...
Tudo nela é caprichoso, e vário e irregular. Aqui terreno fértil, úbere; acolá, bem perto, estéril, arenoso.
Se a jusante sobra cal, falta água; se há para montante, falta cal...
As suas florestas são caprichosas também; as essências não se associam. Vivem orgulhosamente isoladas, tornando-lhes penosa a exploração. Aqui, está uma espécie e outra semelhante só sé encontrará mais além, distante...
Envelheceu, está caduca e tudo que vem para ela sofre-lhe o contágio da sua antiguidade: caduquece!
Contudo, e talvez por isso mesmo, os seus costumes e hábitos podem servir-nos de ensinamento, pois, conforme a Arte de furtar diz: “os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões”.
Por intermédio dos dela, dos dessa velha e ainda rica terra da Bruzundanga, livremo-nos dos nossos: é o escopo deste pequeno livro.
LIMA BARRETO Todos os Santos, 2-9-17.
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Leia também:
Os Bruzundangas - Prefácio
Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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