quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Edgar Allan Poe - Contos: Uma Descida ao Maelstrom (03)

Edgar Allan Poe - Contos


Uma Descida ao Maelstrom
Título original: A Descent into the Maelstrom
Publicado em 1841

continuando...

« De repente, fomos apanhados por um pé de vento que vinha de Helseggen. Fora na verdade espantoso — uma coisa que nunca nos acontecera — e começava a estar um pouco inquieto, sem saber exatamente porquê. Fomos envolvidos pelo vento, e como não pudemos mais cortar os remoinhos estive a ponto de propor o regresso ao ancoradouro, quando, ao olhar para trás, vimos todo o horizonte envolvido numa nuvem estranha, cor de cobre, que subia com uma espantosa velocidade.

« Ao mesmo tempo, a brisa que até há pouco nos empurrava de estibordo amainou, e surpreendidos então por uma acalmia absoluta, vogámos à mercê de todas as correntes. Mas esta situação não durou o tempo suficiente para nos deixar refletir. Em menos de um minuto, a tempestade achava-se por cima de nós — e também um minuto depois, o céu estava por completo carregado, tornando-se de repente tão negro e com um nevoeiro tão cerrado que não nos podíamos já ver uns aos outros.

« Tentar descrever semelhante ventania seria loucura. O mais velho marinheiro da Noruega nunca vira coisa semelhante. Tínhamos amainado as velas antes que o golpe de vento nos surpreendesse, mas, após a primeira rajada, os nossos dois mastros tombaram por cima das bordas como se tivessem sido serrados pela base — o mastro grande arrastou consigo o meu irmão mais novo que, por prudência, se encontrava encostado a ele.

« O nosso barco assemelhava-se muito a um levíssimo brinquedo que tivesse deslizado para o mar. Possuía uma ponte com uma só escotilha à frente e nós tínhamos por costume fechá-la seguramente ao atravessar o Strom, boa precaução num mar como aquele. E nas circunstâncias presentes, teríamos soçobrado logo ao primeiro golpe de mar, porque durante alguns instantes ficámos literalmente metidos na água. Como é que o meu irmão mais velho escapou à morte? Não posso dizê-lo, nunca o poderei explicar. Pela minha parte, logo que deixei o traquete, lancei-me pela ponte, de bruços, com os pés encostados a uma estreita plataforma da vante, e as mãos agarradas a uma argola, perto da base do mastro da mezena. O puro instinto fizera-me agir assim — era indubitavelmente o que tinha de melhor a fazer — porque estava demasiado aturdido para pensar.

« Durante alguns minutos, ficámos por completo inundados, como lhe dizia, e retive a respiração todo esse tempo e agarrei-me à argola. 

« Quando senti que não podia ficar assim por muito tempo sem ficar sufocado, ajoelhei-me segurando-me sempre com as mãos. Então, o nosso barquinho, deu uma sacudidela tal como um cão que sai da água e ergueu-se em parte para fora do mar. Esforçava-me então para reagir o melhor possível contra o espanto que me invadira e recobrar suficientemente a serenidade, para ver o que tinha a fazer, quando senti que alguém me agarrava o braço. 

« Era o meu irmão mais velho, e o meu coração regozijou-se porque julgava que ele caíra pela borda; mas, um momento depois, toda esta alegria transformou-se em horror quando chegou a boca ao meu ouvido e gritou estas simples palavras: “Moskoe-Strom!”

« Era o meu irmão mais velho, e o meu coração regozijou-se porque julgava que ele caíra pela borda; mas, um momento depois, toda esta alegria transformou-se em horror quando chegou a boca ao meu ouvido e gritou estas simples palavras: “Moskoe-Strom!”

« Você compreendeu que ao atravessar o canal de Strom nós seguíamos sempre o nosso caminho, por cima do turbilhão, mesmo no tempo calmo, e mesmo assim tínhamos o cuidado de observar o fluxo da maré. Mas, agora, corríamos direitos para o abismo e com uma tempestade daquelas! “Certamente, pensei eu, chegaremos lá no momento da acalmia, e havia ainda uma pequena esperança.” Via perfeitamente que estávamos condenados, mesmo que estivéssemos a bordo do maior navio de guerra. Nesse momento, o primeiro furor da tempestade passara, ou talvez não a sentíssemos porque fugíamos à frente da tempestade mas em todo o caso, o mar, que o vento tinha primeiro açoutado, agora chão e com escuma, erguia-se em verdadeiras montanhas. Uma modificação singular se realizara também no céu. À nossa volta, em todas as direções, estava negro como breu, mas, quase por cima de nós, havia uma abertura circular — um céu claro, claro como nunca o vira, de um azul brilhante e escuro — e através dessa clareira resplandecia a Lua cheia que iluminava tudo à nossa volta com perfeita nitidez. Deus do Céu! Que cena! 

« Por uma ou duas vezes tentei falar ao meu irmão, mas o estrondo, sem que eu soubesse explicar como, aumentara a tal ponto que não consegui que ele ouvisse uma única palavra, se bem que lhe gritasse ao ouvido com toda a força dos meus pulmões. De repente ele sacudiu a cabeça, ficou de uma palidez cadavérica e levantou um dos dedos como para me dizer: “Escuta!”

« Primeiro, não compreendi o que queria dizer, mas em breve um espantoso pensamento me esclareceu. Tirei o meu relógio do bolso. Não trabalhava. Olhei para o mostrador à claridade do luar e chorei amargamente deitando-o para longe, para o mar. Ele parara às sete horas! Tínhamos deixado passar o fluxo da maré e o turbilhão estava em plena fúria. 

« Quando um navio é bem construído, devidamente equipado e não muito carregado, as ondas, com o vento forte e quando ele está ao largo, parecem passar sempre por baixo da quilha, o que parece também estranho a quem não seja marinheiro e que se chama em linguagem de bordo cavalgar (riding). Isso ia ajudar, e nós trepámos apressadamente para a onda; mas subitamente um mar alteroso vinha apanhar-nos e atirava-nos para cima, como para nos empurrar para o céu. Nunca teria acreditado que uma onda pudesse subir tão alto. Depois descíamos fazendo uma curva, uma escorregadela, como se caíssemos em sonho de uma alta e imensa montanha. Mas do alto da onda deitara um rápido olhar à minha volta e bastou este olhar. Vi num segundo exatamente a nossa posição. O turbilhão do Moskoe-Strom, que estava a cerca de um quarto de milha à nossa frente, assemelhava-se pouco ao Moskoe-Strom de todos os dias: apresentava um aspecto muito mais imponente. Se não soubéssemos onde estávamos e o que tínhamos a esperar, não teria reconhecido o lugar. Tal como o vi, fechei involuntariamente os olhos, horrorizado: as minhas pálpebras colaram-se num espasmo.

« Dois minutos depois, sentimos de repente a onda acalmar, e fomos envolvidos pela espuma. O barco deu uma volta brusca a bombordo e partiu em nova direção como um raio. No mesmo instante, o rugido da água perdeu-se numa espécie de clamor agudo — um tal som que pode concebê-lo imaginando as válvulas de vários milhares de barcos a largarem ao mesmo tempo o vapor das caldeiras. Estávamos então na cintura encrespada que circula sempre o turbilhão; e acreditava, como é natural, que num segundo íamos mergulhar no abismo, cujo fundo não conseguíamos ver distintamente por causa da prodigiosa velocidade com a qual éramos arrastados para lá. 

« O barco não parecia mergulhado na água, mas tocar-lhe levemente, como a bolha de ar que rodopia sobre a superfície da onda. Tínhamos o turbilhão a estibordo, e a bombordo erguia-se o vasto oceano donde tínhamos vindo. Elevava-se como um muro gigantesco, entrepondo-se entre nós e o horizonte. Isto pode parecer estranho; mas quando ficámos mesmo sobre a garganta do abismo, senti mais sangue-frio do que quando nos aproximávamos. Tendo perdido qualquer sombra de esperança fui libertado de uma grande parte deste terror que me tinha primeiro invadido. Suponho que era o desespero que me retesava os nervos. Tomará isto talvez por uma fanfarronice, mas o que lhe disse é a verdade: comecei a pensar que coisa magnífica era morrer de semelhante forma, e quanto eu era tolo por me ocupar do vulgar interesse pela minha salvação individual em face de uma tão prodigiosa manifestação de Deus. Creio que corei de vergonha quando esta ideia surgiu no meu espírito. Instantes depois, apoderou-se de mim uma curiosidade ardente relativa ao próprio turbilhão. Senti positivamente o desejo de explorar as suas profundezas mesmo à custa do sacrifício que ia fazer; o meu principal desgosto era pensar que jamais poderia contar aos meus velhos camaradas os mistérios que ia conhecer. Eram esses, sem dúvida, estranhos pensamentos para ocupar o espírito de um homem em semelhante extremo — e tive muitas vezes a ideia, desde então, de que as evoluções em volta do vórtice tinham-me aturdido a cabeça.

« Houve uma outra circunstância que contribuiu para me tornar mais seguro de mim: a calma do vento que não podia atingir-nos mais na nossa situação atual — porque, como pode julgar por si, o círculo de espuma está consideravelmente abaixo do nível do oceano, e este último dominava-nos agora, como a crista de uma alta e negra montanha. Se nunca se encontrou no mar durante uma grande tempestade não pode fazer uma ideia da perturbação de espírito ocasionada pela ação simultânea do vento e do bater das vagas. Isto cega-o, atordoa-o, estrangula-o e tira-lhe toda a faculdade de ação ou de reflexão. Mas nós estávamos agora aliviados de todos os embaraços — como esses miseráveis condenados à morte a quem se concedem na prisão alguns pequenos favores que se lhes recusaram enquanto a sentença lhes não fora pronunciada. 

« Quantas vezes demos a volta a este círculo é-me impossível dizê-lo. Nós corremos em volta, aproximávamo-nos cada vez mais do centro do turbilhão e sempre mais perto, cada vez mais perto do seu espantoso interior. 

« Durante todo esse tempo não largara a argola. O meu irmão estava atrás segurando-se a uma pequena barrica vazia, solidamente amarrada sob a torre de vigia, por detrás da bitácula; era o único objeto de bordo que não fora varrido quando o golpe de vento nos surpreendera.

« Quando nos aproximávamos da borda do poço movediço, ele largou o barril e procurava agarrar a argola que, na agonia do terror, se esforçava por arrancar das minhas mãos e que não era bastante larga para nos dar a segurança suficiente aos dois. 

« Nunca senti um desgosto tão profundo, como o que tive ao vê-lo tentar semelhante ação, se bem que visse que o terror o tornara num louco furioso. 

« Todavia, não tentei disputar-lhe o lugar. Sabia bem que importava muito pouco a quem pertenceria a argola; dei-lha e fui eu para o barril, para a ré. Não fora muito difícil praticar essa manobra; porque o barco agora corria em volta com bastante aprumo e muito direito sobre a quilha, empurrado algumas vezes aqui e acolá pelas imensas ondas e o cachoar do turbilhão. Mal me acomodara na minha nova posição, tivemos uma violenta sacudidela a estibordo e fomos de frente para o abismo. Murmurei uma rápida oração a Deus, e pensei que tudo estava terminado. 

continua na página 372...
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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