sexta-feira, 22 de março de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (c)

Os Bruzundangas

Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo especial

Os Samoiedas

Vazios estais de Cristo, vós que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. 
SÃO PAULO aos Gálatas


continuando...

   A instrução do grosso dos menestréis bruzundanguenses não permitia esse apelo à matemática; e contentaram-se com umas regras simples que tinham na ponta da língua, como as beatas as rezas que não lhes passam pelo coração, e outros desenvolvimentos teóricos.
   Era pois essa poética e essa estética que dominavam entre os literatos da Bruzundanga; era assim como o seu dogma de arte donde se originavam as suas fórmulas litúrgicas, o seu ritual, os seus esconjuros, enfim, o seu culto à tal harmonia imitava, que tanto prezava Chalat.
   Além desta deusa, havia outras divindades: o ritmo, o estilo, a nobreza das palavras, a aristocracia dos assuntos e dos personagens, quando faziam romances, conto ou drama e a medição dos versos que exigiam fosse feita como se se tratasse da base de uma triangulação geodésica. Ninguém, no entanto, podia sacar-lhes da cabeça uma concepção geral e larga de arte ou obter o motivo deles conceberem separados da obra d’arte esses acessórios, transformando-os em puros manipansos, fetiches, isolando-os, fazendo-os perder a sua função natural que supõe sempre a obra literária com o fim. É ela, a sua concepção, a ideia anterior que a domina e o seu destino necessário, que unicamente regulam o emprego deles, graduam o seu uso, a sua necessidade, e como que ela mesma os dita.
   Todos os samoiedas limitavam-se quando se tratava dos tais assuntos, a falar muito de um modo confuso, esotericamente, em forma e fundo, com trejeitos de feiticeiros tribais.
   Não nego que houvesse entre eles alguns de valor, mas os preconceitos da escola os matava.
   A maioria ia para ela, porque era cômodo no fundo, pois não pedia se comunicasse qualquer emoção, qualquer pensamento, qualquer importante revelação de nossa alma que interessasse outras almas; que se dissesse usando dos processos artísticos, novos ou velhos, de um pouco do universal que há em nós, alguma cousa do mistério do universo que o nosso espírito tivesse percebido e determinasse transmiti-la; enfim um julgamento, um conceito que pudesse influir no uso da vida, na nossa conduta e no problema do nosso destino, empregando os fatos simples, elementares, as imagens e os sons que por si sós não exprimiriam a ideia que se procura, mas que se acha com eles e se vai além por meio deles.
  Isto de Hegel, de Taine, de Brunetière, não era com os samoiedas; a questão deles era encontrar uma espécie de tabuada que lhes fizesse multiplicar a versalhada. Como as tais regras poéticas do suposto príncipe eram bem acessíveis à sua paciência de correcionais, adotaram-nas como artigos de fé, exageraram-nas até ao absurdo.
   Convinham elas por ir ao encontro da sua falta de uma larga inteligência do mundo e do homem e facilitar-lhes uma crítica terra-a-terra de seminaristas mnemônicos.
   Para mais perfeito ensinamento dos leitores vou-lhes repetir um trecho de conversa que ouvi entre três dos tais poetas da Bruzundanga, adeptos extremados da Escola Samoieda.
   Quando cheguei, eles já estavam sentados em torno da mesa do café. Acabava eu de assistir uma aula de geologia na Faculdade de Ciências do país; o meu espírito vinha cheio de silhuetas de monstros de outras épocas geológicas. Eram ictiossauros, megatérios, mamutes; era do sinistro pterodáctilo que eu me lembrava; e não sei por quê, quando deparei os três poetas samoiedas, me deu vontade de entrar no botequim e tomar parte na conversa deles.
   A Bruzundanga, como sabem, fica nas zonas tropical e subtropical, mas a estética da escola pedia que eles se vestissem com peles de urso, de renas, de martas e raposas árticas.
   É um vestuário barato para os samoiedas autênticos, mas caríssimo para os seus parentes literários dos trópicos
   Estes, porém, crentes na eficácia da vestimenta para a criação artística, morrem de fome, mas vestem-se à moda da Sibéria.
   Estavam assim vestidos, naquela tarde, quente, ali naquele café da capital da Bruzundanga, três dos seus novos e soberbos vates; estavam ali: Kotelniji, Wolpuk e Worspikt, o primeiro que tinha aplicado o vernier para “medir” versos.
   Abanquei-me e pude perceber que acabavam de ouvir uma poesia do poeta Worspikt. Tratava de lua, de iceberg, — descobri eu por uma e outra consideração que fizeram.
   Nenhum deles tinha visto um iceberg, mas gabavam os ouvintes a emoção com que o outro traduzira em verso o espetáculo desse fenômeno das circunvizinhanças dos pólos.
   Num dado momento Kotelniji disse para Worspikt:

— Gostei muito desse teu verso: — “há luna loura linda leve, luna bela!”

   O autor cumprimentado retrucou:

— Não fiz mais do que imitar Tuque-Tuque, quando encontrou aquela soberba harmonia imitativa, para dar ideia do luar—“Loga Kule Kulela logalam”, no seu poema “Kulelau”.

   Wolpuk, porém, objetou:

— Julgo a tua excelente, mas teria escolhido a vogal forte “u”, para basear a minha sugestão imitativa do luar.

— Como? perguntou Worspikt.

— Eu teria dito: “Ui! lua uma pula, tu moo! sulla nuit!”

— Há muitas línguas nela, objetou Kotelniji.

— Quantas mais, melhor, para dar um caráter universal à poesia que deve sempre tê-lo, como ensina o mestre, defendeu-se Wolpuk.

— Eu, porém, aduziu Kotelniji, conquanto permita nos outros certas licenças poéticas, tenho por princípio obedecer às mais duras e rígidas regras, não me afastar delas, encarcerar bem o meu pensamento. No meu caso, eu empregaria a vogal “a” para a harmonia em vista.

— Mas Tuque-Tuque... fez Worspikt.

— Ele empregou o “e” no tal verso que você citou, devido à pronunciação que essa letra lá tem. É um “e” molhado que evoca bem o luar deles, mas...

— E com “a”, como é? indagou Wolpuk.

— O “a” é o espanto; seria ai o espanto do homem dos trópicos, diante da estranheza do fenômeno ártico que ele não conhece e o assombra.

— Mas Kotelniji, eu visava o luar.

— Que tem isso? Na harmonia em “a” também entra esse fenômeno que é o provocador do teu espanto, causado pela sua singularidade local, e pela hirta presença do iceberg, branco, fantástico, que a lua ilumina.

— Bem, perguntou o autor da poesia; como você faria, Kotelniji?

— Eu diria: “A lua acaba de calar a caraça parva”.

— Mas não teria nada que ver com o tema da poesia, objetou Wolpuk;

— Como? O iceberg toma as formas mais variadas... Demais, há sempre onde encaixar, seja qual for a poesia, uma feliz “imitativa”.

— Você tem razão, aplaudiu Wolpuk.

   Worspikt concordou também e prometeu aproveitar a maravilhosa trouvaille do amigo de letras.
   Kotelniji era considerado como um grande poeta “samoieda” e tinha mesmo estabelecido com assentimento de todos eles, as leis científicas da escola perfeita, “a samoieda”, que ele definia como tendo por escopo não exprimir cousa alguma com relação ao assunto visado, ou dizer sobre ele, pomposamente, as mais vulgares banalidades.
   Dentre as leis que estatuía, eu me lembro de algumas. Ei-las:

1.ª — Sendo a poesia o meio de transportar o nosso espírito do real para o ideal, deve ela ter como principal função provocar o sono, estado sempre profícuo ao sonho.
2.ª —A monotonia deve ser sempre procurada nas obras poéticas; no mundo, tudo é monótono (Tuque-Tuque).
3.ª —A beleza de um trabalho poético não deve ressaltar desse próprio trabalho, independente de qualquer explicação; ela deve ser encontrada com as explicações ou comentários fornecidos pelo autor ou por seus íntimos.
4.ª —A composição de um poema deve sempre ser regulada pela harmonia imitativa em geral e seus derivados.

   E muitas outras de que me esqueci, mas julgo que só estas ilustram perfeitamente o absurdo da qualificação de leis científicas da arte. Alhos com bugalhos!
   Denuncia tal denominação, de modo cabal, a sua incapacidade para grupar idéias, noções e imagens. Que pensaria ele de ciência? Qual era a sua concepção de arte? Será possível decifrar essa história de “leis científicas da arte”? Qual!
   Era assim o grande poeta samoieda.
   Além de uma gramaticazinha que nós aqui chamamos de tico-tico e da arte poética de Chalat aumentada e explicada com uma lógica de gafanhotos, não possuía ele um acervo de noções gerais, de idéias, de observações, de emoções próprias e diretas do mundo, de julgamentos sobre as cousas, tudo isso que forma o fundo do artista e que, sob a ação de uma concepção geral, lhe permite fazer grupamentos ideais, originalmente, criar enfim.
   A importância do vate lhe vinha de redigir A Kananga, órgão das casas de perfumarias, leques, luvas e receitas para doces, onde alguns rapazes, sob o seu olhar cioso, escreviam, para ganhar os cigarros, algumas cousas ligeiras.
   O bardo samoieda tomava, entretanto, a cousa a sério, como se estivesse escrevendo para a Revue de Deux Mondes uma fórmula de mãe-benta; e evitava o mais possível que alguém tomasse pé na pueril A kananga. Era essa a sua máxima preocupação de artista.
   De todos os postiços literários, usava, e de todas as mesquinhezas da profissão, abusava.
   Era este de fato um samoieda típico no intelectual, no moral, no físico. Tinha fama.
   Poderia mais esclarecer semelhante escola, os seus processos, as suas regras, as suas superstições; mas não convém fazer semelhante cousa, porque bem podia acontecer que alguns dos meus compatriotas a quisessem seguir.
   Já temos muitas bobagens e são bastantes.
   Fico nisto.


continua na página 11...
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

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