sexta-feira, 11 de novembro de 2016

16. A Metamorfose - Era evidente que ninguém se apercebera da sua presença - Franz Kafka

Franz Kafka


Capítulo 3



16 A Metamorfose - Era evidente que ninguém se apercebera da sua presença - Franz Kafka




Era evidente que ninguém se apercebera da sua presença. A família estava totalmente absorta no som do violino, mas os hóspedes, que inicialmente tinham permanecido de pé, com as mãos nos bolsos, quase em cima da estante de música, de tal maneira que por pouco poderiam ler também as notas, o que devia ter perturbado a irmã, tinham se logo afastado para junto da janela, onde sussurravam de cabeça baixa, e ali permaneceram até que o Senhor Samsa começou a fitá-los ansiosamente. Efetivamente, era por de mais evidente que tinham sido desapontadas as suas esperanças de ouvirem uma execução de qualidade ou com interesse, que estavam saturados da audição e apenas continuavam a permitir que ela lhes perturbasse o sossego por mera questão de cortesia. Adivinhava-se-lhes a irritação pela maneira como sopravam o fumo dos charutos para o ar, pela boca e pelo nariz. Grete estava a tocar tão bem! Tinha o rosto inclinado para o instrumento e os olhos tristes seguiam atentamente a partitura. Gregório arrastou-se um pouco mais para diante e baixou a cabeça para o chão, a fim de poder encontrar o olhar da irmã. Poderia ser realmente um animal, quando a música tinha sobre si tal efeito? Parecia abrir diante de si o caminho para o alimento desconhecido que tanto desejava. Estava decidido a continuar o avanço até chegar ao pé da irmã e puxar-lhe pela saia, para dar-lhe a perceber que devia ir tocar para o quarto dele, visto que ali ninguém como ele apreciava a sua música. Nunca a deixaria sair do seu quarto, pelo menos enquanto vivesse. Pela primeira vez, o aspecto repulsivo seria de utilidade: poderia vigiar imediatamente todas as portas do quarto e cuspir a qualquer intruso. A irmã não precisava de sentir-se forçada, porque ficaria à vontade com ele. Sentaria no sofá junto dele e inclinaria para confiar-lhe que estava na firme disposição de matriculá-la no Conservatório e que, se não fosse a desgraça que lhe acontecera, no Natal anterior — será que o Natal fora há muito tempo? — teria anunciado essa decisão a toda a família, não permitindo qualquer objeção. Depois de tal confidência, a irmã desataria em pranto e Gregório levantaria até se apoiar no ombro dela e beijaria seu pescoço, agora liberto de colares, desde que estava empregada.

— Senhor Samsa! — gritou o hóspede do meio ao pai de Gregório, ao mesmo tempo que, sem desperdiçar mais palavras, apontava para Gregório, que lentamente se esforçava por avançar. o violino calou-se e o hóspede do meio começou a sorrir para os companheiros, acenando com a cabeça. Depois tomou a olhar para Gregório. Em vez de enxotá-lo, o pai parecia julgar mais urgente acalmar os hóspedes, embora estes não estivessem nada agitados e até parecessem mais divertidos com ele do que com a audição de violino, Precipitou-se para eles e, estendendo os braços, tentou convencê-los a voltarem ao quarto que ocupavam, ao mesmo tempo que lhes ocultava a visão de Gregório. Nessa altura começaram a ficar mesmo incomodados devido ao comportamento do velho o porque compreendessem de repente que, tinham Gregório por vizinho de quarto. Pediram-lhe satisfações, agitando os braços no ar como ele, ao mesmo tempo que confiavam embaraçadamente as barbas, e só relutantemente recuaram para o quarto que lhes estava destinado. A irmã de Gregório, que para ali se deixara ficar, desamparada, depois de tão brusca interrupção da sua execução musical, caiu novamente em si, endireitou-se rapidamente, depois de um instante a segurar no violino e no arco e a fitar a partitura, e, atirando com o violino para o colo da mãe, que permanecia na cadeira a lutar com um acesso de asma, correu para o quarto dos hóspedes, para onde o pai os conduzia, agora com maior rapidez. Com gestos hábeis, compôs os travesseiros e as colchas. Ainda os hóspedes não tinham chegado ao quarto, saía pela porta fora, deixando as camas feitas.

O velho parecia uma vez mais tão dominado pela sua obstinada autoconfiança que esquecia completamente o respeito devido aos hóspedes. Continuou a empurrá-los para a porta do quarto, até que o hóspede do meio, ao chegar mesmo à porta, bateu ruidosamente o pé no chão, obrigando-o a deter-se. Levantando a mão e olhando igualmente para a mãe e filha, falou:

— Se me permitem, tenho a informá-los de que, devido às repugnantes condições desta casa e da família — e aqui cuspiu no chão, com ênfase eloquente, prescindo imediatamente do quarto. É claro que não pagarei um tostão pelos dias que aqui passei; muito pelo contrário, vou pensar seriamente em instaurar-lhes uma ação por perdas e danos, com base em argumentos que, podem crer, são susceptíveis de provas mais que suficientes.

Interrompeu-se, ficando a olhar em frente, como se esperasse qualquer coisa. Efetivamente, os dois companheiros entraram também na questão:

— E nós desistimos também do quarto. — A seguir, o hóspede do meio girou o puxador da porta e fechou-a com estrondo.

Cambaleante e tateando o caminho, o pai de Gregório deixou-se cair na cadeira. Quase parecia distendendo-se para a habitual sesta da noite, mas os espasmódicos movimentos da cabeça, que se revelavam incontroláveis, mostravam que não estava na disposição de dormir. Durante tudo aquilo, Gregório limitara-se a ficar quieto no mesmo sítio onde os hóspedes o tinham surpreendido. Não conseguia mover-se, em face do desapontamento e da derrocada dos seus projetos e também, quem sabe, devido à fraqueza resultante de vários dias sem comer. Com certo grau de certeza, temia que a qualquer momento a tensão geral se descarregasse num ataque à sua pessoa, e aguardava-o. Nem sequer assustou com o barulho que o violino, que escorregou do colo da mãe e caiu no chão. — Queridos pais - disse a irmã, batendo com a mão na mesa, à guisa de introito as coisas não podem continuar neste pé. Talvez não percebam o que se está a passar, ma eu percebo. Não pronunciarei o nome do meu irmão na presença desta criatura e, portanto, só digo isto: temos que ver-nos livres dela. Tentávamos cuidar desse bicho e suportá-lo até onde era humanamente possível, e acho que ninguém tem seja o que for a censurar-nos. 


Ela tem toda a razão, disse o pai, de si para si. A mãe, que estava ainda em estado de choque por causa da falta de ar, começou a tossir em tom cavo, pondo a mão à frente da boca, comum olhar selvagem. 

A irmã correu para junto dela e amparou-lhe a testa. As palavras de Grete pareciam ter posto termo aos pensamentos errantes do pai. Endireitou-se na cadeira, tateando o boné da farda que estava junto aos pratos dos hóspedes, ainda na mesa, e, de vez em quando, olhava para a figura imóvel de Gregório.

— Temos que nos ver livres dele — repetiu Grete, explicitamente, ao pai, já que a mãe tossia tanto que não podia ouvi uma palavra. — Ele ainda será a causa da sua morte, estou mesmo a ver. Quando se tem de trabalhar tanto como todos nós, não se pode suportar, ainda por cima, este tormento constante em casa. Pelo menos, eu já não aguento mais. — E pôs-se a soluçar tão dolorosamente que as lágrimas caíam no rosto da mãe, a qual as enxugava mecanicamente. 

— Mas que podemos nós fazer, querida? — perguntou o pai, solidário e compreensivo.

A filha limitou-se a encolher os ombros, mostrando a sensação de desespero que a dominava, em flagrante contraste com a segurança de antes.

— Se ele nos notasse... — continuou o pai, quase como se fizesse uma pergunta. Grete, que continuava a soluçar, agitou veementemente a mão, dando a entender como era impensável. 

— Se ele nos notasse - repetiu o velho, fechando os olhos, para avaliar a convicção da filha de que não havia qualquer possibilidade de entendimento, talvez pudéssemos chegar a um acordo com ele. Mas assim... 

— Ele tem de ir embora — gritou a irmã de Gregório. — É a única solução, pai. Tem é de tirar da cabeça a ideia de que aquilo é o Gregório. A causa de todos os nossos problemas é precisamente termos acreditado nisso durante demasiado tempo. Como pode aquilo ser o Gregório? Se fosse realmente o Gregório, já teria percebido há muito tempo que as pessoas não podem viver com semelhante criatura e teria ido embora de boa vontade. Não teríamos o meu irmão, mas podiam continuar a viver e a respeitar a sua memória. Assim, esta criatura nos persegue e afugenta nossos hóspedes. É evidente que a casa toda só para ele e, por sua vontade, iríamos todos dormir na rua. Ora olhe pai... — estremeceu de súbito. — Lá está ele outra vez naquilo! E num acesso de pânico que Gregório não conseguiu compreender largou a mãe, puxando-lhe literalmente a cadeira, como se preferisse sacrificar a mãe a estar perto de Gregório. Precipitadamente, refugiou-se atrás do pai, que também se levantou da cadeira, preocupado com a agitação dela, e estendeu um pouco os braço, como se quisesse protegê-la.





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