sábado, 19 de novembro de 2016

19.O Livro dos Abraços - Crônica da cidade do México - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


19. O Livro dos Abraços



Crônica da cidade do México  


Meio século depois de Superman ter nascido em Nova Iorque, Superbarrio anda pelas ruas e telhados da Cidade do México. O prestigioso norteamericano de aço, símbolo universal do poder, vive numa cidade chamada Metrópolis. Superbarrio, um mexicano qualquer de carne e osso, herói dos pobres, vive num subúrbio chamado Nezahualcóyotl. 

Superbarrio tem barriga e pernas tortas. Usa máscara vermelha e capa amarela. Não luta contra múmias, fantasmas ou vampiros. Numa ponta da cidade enfrenta a polícia e salva uns mortos de fome de serem despejados; na outra ponta, ao mesmo tempo, encabeça uma manifestação em defesa dos direitos da mulher ou contra o envenenamento do ar; e no centro, enquanto isso, invade o Congresso Nacional e dispara um discurso denunciando as porcarias do governo. 



Contra-símbolos


Por arte de alquimia ou diabrura popular, os símbolos se desinimigam e o veneno se transforma em pão. Em Havana, a um passo da Casa das Américas, existe um monumento estranho: um par de sapatos de bronze no alto de um grande pedestal. 

Os solitários sapatos pertenciam ao serviçal Tomás Estrada Palma. O povo em fúria derrubou sua estátua e aquilo foi a única coisa que sobrou. 

Quando o século nascia, Estrada Palma tinha sido o primeiro presidente de Cuba, sob a ocupação colonial dos Estados Unidos.



Paradoxos


Se a contradição for o pulmão da história, o paradoxo deverá ser, penso eu, o espelho que a história usa para debochar de nós. Nem o próprio filho de Deus salvou-se do parado-:o. Ele escolheu, para nascer, um deserto subtropical onde jamais nevou, mas a neve se converteu num símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu europeizar Jesus. E para mais inri, o nascimento de Jesus é, hoje m dia, o negócio que mais dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha expulsado do templo. 

Napoleão Bonaparte, o mais francês dos franceses, não era francês. Não era russo Josef Stálin, o mais russo dos russos; e o mais alemão dos alemães, Adolf Hitler, tinha nascido na Áustria. Margherita Sarfatti, a mulher mais amada pelo anti-semita Mussolini, era judia. José Carlos Mariátegui, o mais marxista dos marxistas latino-mericanos, acreditava fervorosamente em Deus. O Che Guevara tinha sido declarado completamente incapaz para a vida militar pelo exército argentino.

Das mãos de um escultor chamado Aleijadinho, que era o mais feio dos brasileiros, nasceram as mais altas formosuras do Brasil. Os negros norteamericanos, os mais oprimidos, criaram o jazz, que é a mais livre das músicas. No fundo de um cárcere foi concebido o Dom Quixote, o mais andante dos cavaleiros. E cúmulo dos paradoxos, Dom Quixote nunca disse sua frase mais célebre. Nunca disse: Ladram, Sancho, sinal que cavalgamos. 

"Acho que você está meio nervosa", diz o histérico. "Te odeio", diz a apaixonada. "Não haverá desvalorização", diz, na véspera da desvalorização, o ministro da Economia. "Os militares respeitam a Constituição", diz, na véspera do golpe de Estado, o ministro da Defesa. 

Em sua guerra contra a revolução sandinista, o governo dos Estados Unidos coincidia, paradoxalmente, com o Partido Comunista da Nicarágua. E paradoxais foram, enfim, as barricadas sandinistas durante a ditadura de Somoza: as barricadas, que fechavam as ruas, abriam o caminho.



O sistema/1


Os funcionários não funcionam. Os políticos falam mas não dizem. Os votantes votam mas não escolhem. Os meios de informação desinformam. Os centros de ensino ensinam a ignorar. Os juizes condenam as vítimas. Os militares estão em guerra contra seus compatriotas. Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os. 

As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados. 

O dinheiro é mais livre que as pessoas. As pessoas estão a serviço das coisas.



Elogio ao bom senso


Ao amanhecer de um dia nos fins de 1985, as rádios colombianas informaram: — A cidade de Armero sumiu do mapa. 

O vulcão vizinho matou a cidade. Ninguém conseguiu correr mais rápido que a avalancha de lodo fervente: uma onda grande como o céu e quente como o inferno atropelou a cidade, jorrando vapor e rugindo fúrias de animal ruim, e engoliu trinta mil pessoas e todo o resto. 

O vulcão vinha avisando há um ano. Um ano inteiro ficou jorrando fogo, e quando não podia esperar mais, descarregou sobre a cidade um bombardeio de trovões e uma chuva de cinzas, para que os surdos escutassem e os cegos enxergassem tanta advertência. Mas o prefeito dizia que o Governo Superior dizia que não havia motivos para alarme, e o padre dizia que o bispo dizia que Deus estava cuidando do assunto, e os geólogos e os vulcanólogos diziam que tudo estava sob controle e fora de perigo. 

A cidade de Armero morreu de civilização. Não tinha nem cumprido um século de vida. Não tinha hino nem escudo.






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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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