domingo, 20 de novembro de 2016

Gente Pobre - 01. Ontem fui feliz, excessivamente feliz - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


01.




8 de abril



Minha estimada Bárbara Alexeievna:


Ontem fui feliz, excessivamente feliz, como não se pode sê-lo mais! Até que enfim, uma vez na vida, você, sempre tão inacessível, satisfez os meus desejos! Eram cerca de oito horas, já quase noite, quando acordei da soneca que costumo dormir todos os dias, depois do trabalho. Acendi a luz e tinha já os papéis em ordem, faltando-me apenas aguçar a pena, quando, de súbito, levantei, casualmente, os olhos e deparou-se-me um espetáculo extraordinário, que me fez pular o coração. Decerto adivinhou já do que se trata, compreendeu o motivo do meu alvoroço! É que vi uma pontinha da cortina da sua janela presa a um vaso de balsamina, exatamente como já por várias vezes lhe lembrei fazer. Pareceu-me vislumbrar o seu querido rosto, através da janela; que me contemplava da penumbra do seu quarto, e que também pensava em mim. E que pena eu tive de não poder distinguir bem essa face aveludada, minha querida! Dantes eu via bem, mas os anos não perdoam, meu amor! Agora, por vezes, como que bailam na minha frente os objetos. Se trabalhar um bocadito de noite, se escrever qualquer coisa, no dia seguinte, quando me levanto, tenho os olhos vermelhos e chorosos; até sinto vergonha de aparecer assim diante de estranhos. Mas, em espírito, eu via perfeitamente o seu amável e afetuoso sorriso, e no meu coração sentia o mesmo que quando a beijei pela primeira vez, querida Bárbara. Lembra-se, meu anjo? Parece-me estar a vê-la, neste momento, ameaçar-me com o dedo. Não será verdade, minha mazinha? Na próxima carta, quero que me diga pormenorizadamente se acertei nas minhas conjeturas. 

Mas que me diz da minha ideia acerca da cortina, Bárbara? Magnifica, não lhe parece? Sempre que me sente para escrever, ou me deite, ou me levante, poderei assim saber se ainda me traz no pensamento e se lembra de mim, e também se está boa e bem-disposta. Quando baixar a cortina, isso quererá dizer que são horas de eu, Makar Alexeievitch, me deitar; se a erguer, significará que me dá os bons-dias e me pergunta se dormi bem, informando-me ao mesmo tempo de que, graças a Deus, se encontra de saúde e muito contente. Como vê, este engenhoso plano é de grande vantagem e poupa-nos muitas cartas. E fui eu o inventor desta ideia tão subtil. Ainda será capaz de negar que sou dotado de prodigiosa imaginação, Bárbara Alexeievna? 

Devo dizer-lhe, querida, que contra o que esperava, dormi a última noite de um sono, o que deveras me alegra, pois, como sabe, agora moro noutra casa, e quando se muda de cama, geralmente nas primeiras noites dorme-se mal! Mas, pelo que vejo, nem sempre assim acontece. Levantei-me muito cedo, a transbordar de alegria e de amor. Como tudo me parecia belo, àquela hora, meu anjo! Quando abri a janela, o sol resplandecente entrou a jorros no meu quarto, o canto das avezinhas deliciou-me o ouvido e aspirei a atmosfera saturada de perfumes de primavera. Numa palavra, toda a Natureza parecia despertar para nova vida. Tudo se mostrava de harmonia com a minha boa disposição, belo e primaveril. Além disso, imaginava que o dia me correria admiravelmente. Mas todos os meus pensamentos se dirigiam para si. «Sem dúvida — pensei —, todos aqueles que levam uma vida de trabalhos e sofrimentos podem, com razão, invejar as avezinhas do céu, que não conhecem nada disto!» E todos os meus pensamentos eram mais ou menos neste teor. Quer dizer: ocupei o espírito com comparações fantásticas. 

Tenho aqui um livrito, onde estes pensamentos se encontram amplamente expressos. Diz, por exemplo, que há muitas, mesmo muitas espécies de sonhos, querida Bárbara. Mal chega a primavera, os nossos pensamentos tornam-se agradáveis, espirituais e fantásticos — como a bela estação — e os sonhos são ternos, tudo é calor e rosas. É por isso que eu escrevi estas coisas. Se bem que, na sua maior parte, fui buscá-las ao livro de que lhe falei. Nele o autor exprime, mas em verso, este mesmo desejo.


Oh, quem me dera ser pássaro, ave de rapina...

Tem ainda muitos outros pensamentos, porém deixemos isso... 

Mas diga-me, meu amor: aonde foi esta manhã? Muito cedo, antes de eu sair para o trabalho, já a Bárbara saíra do quarto e atravessava o pátio, toda lampeira, tal como o pardal na primavera, quando deixa o ninho. Que grande alegria senti ao vê-la! Ah, querida Bárbara, querida Bárbara, não se deixe dominar pela tristeza; as lágrimas nada remedeiam, acredite. Sei-o por experiência própria. Agora leva uma vida mais alegre e distraída, por isso parece melhor de saúde. Ah! Já me esquecia: e a nossa boa Fédora? Que coração de ouro! Manda-me dizer que agora vive consigo e que se dão muito bem. Bem sei que a pobre é um pouco resmungona, mas não se importe, Bárbara. Ao fim e ao cabo, é uma excelente alma, Deus seja louvado! 

Já me referi, nas minhas cartas, à nossa Teresa; é também uma boa criatura e muito fiel. O que passei por causa da nossa correspondência! Vi-me e desejei-me para descobrir forma de a fazer chegar ao seu destino. Felizmente, Deus mandou-nos a Teresa. É uma bondosa moça, honesta e de bom gênio, mas a nossa patroa não tem piedade dela, tratando-a como uma escrava. A pobre trabalha de mais. 

Mas a que espécie de alojamento vim eu dar. Bárbara Alexeievna? Que ideia faz do meu quarto? Como sabe, dantes eu vivia completamente só, tão só que o simples esvoaçar de uma mosca não me passava despercebido. Todavia, agora, tudo é barulho e bulício à minha volta. Vou descrever-lhe a planta da casa em que vivo. Imagine um comprido corredor, quase escuro e muito imundo. À direita fica uma parede de resguardo e, à esquerda, há uma série de portas, correspondentes cada uma delas a um quarto, que ostenta um número, como nos hotéis. Estes compartimentos são habitados por diferentes pessoas por uma, duas ou três, conforme os casos. O que, porém aqui, não existe é ordem. Pode dizer-se que o edifício é uma perfeita Arca de Noé. Não obstante, a maior parte dos inquilinos são boas pessoas, educadas e até cultas. Entre outros, mora aqui um funcionário muito erudito, que tanto pode falar de Homero como de qualquer autor; numa palavra, conhece de tudo, pois é dotado de verdadeiro talento. Vivem também aqui dois oficiais reformados que passam o tempo a jogar as cartas, um marinheiro e um professor de Inglês. Mas, para a distrair um pouco, na próxima carta vou descrever-lhe estas pessoas, contando-lhe pormenorizadamente a vida de cada uma. 

Quanto à nossa patroa, é uma velhota baixinha e muito suja, que passa o dia a passear de um lado para outro, sempre de chinelos e de bata, insultando constantemente a pobre Teresa. 

Eu moro na cozinha, ou, melhor dizendo, num pequeno quarto que faz parte da cozinha. Esta é muito espaçosa, muito limpa, com muita luz; constitui um esplêndido compartimento com três janelas. Paralelo à parede exterior, existe um tabique que a divide, formando assim uma espécie de recantozinho, como que um quarto supranumerário, que é o meu. Tudo neste quarto é confortável e cômodo, e até disponho de uma janela. É este o meu cantinho. Não vá, porém, pensar, minha querida, que nas minhas palavras há qualquer intenção reservada. Viver na cozinha significa simplesmente que habito por detrás da parede divisória existente neste compartimento, quase sem companhia, e que passo o tempo em paz, ocupado com ninharias. 

O mobiliário do meu aposento compõe-se de uma cama, uma mesa, uma cômoda e duas cadeiras — duas, note bem! Também pendurei fia parede uma imagem piedosa. Podem, é certo, existir no mundo quartos melhores do que o meu, mesmo muito melhores; mas o principal é o conforto. Se coloquei aqui todas estas coisas, foi unicamente para conseguir o conforto; não julgue que tive outro fim em vista. E como a sua janela fica mesmo defronte da minha e o pátio que nos separa é muito estreito, eu daqui vejo-a passar. Assim, este miserável poderá levar uma vida mais feliz e ao mesmo tempo mais econômica. O quarto mais pequeno desta casa, incluindo a comida, custa trinta e cinco rublos por mês — mais do que as minhas posses; o meu cantinho, pelo contrário, custa apenas vinte e quatro. Dantes pagava cerca de trinta, e por isso tinha de renunciar a muitas coisas; só raramente tomava chá, e nunca pude conceder-me o prazer daquela bebida e de açúcar como agora. Seja como for, eu não gosto de passar sem o chá, porque os inquilinos são todos pessoas remediadas e o facto de o não tomar envergonha-me. Devo dizer-lhe, Bárbara, que o uso desta bebida, nesta casa, faz parte do bom tom. Se assim não fosse, não me importaria absolutamente nada, pois não sou homem muito dado a prazeres. É necessário, além disso, contar com despesas extraordinárias, pois está-se sempre a precisar de alguma coisa: um par de botas, um corte de fazenda, etc. Somando todas estas despesas, com que se fica? É claro, gasto quanto ganho. Mas não me queixo; pelo contrário, estou muito satisfeito. Governo-me com o que tenho. Há já muitos anos que sigo esta norma. O que vale é de vez em quando, recebermos algumas gratificações... 

Bom, adeus, minha querida. Comprei duas penas e dois vasos, um de balsamina e outro de gerânios, para lhe oferecer. Preferia, talvez, reseda? Bastará dizer-mo a sua carta, que logo ela lhe aparecerá ai. Mas escreva-me o mais minuciosamente possível, sim? Além disso, espero, meu amor, que não lhe dê cuidado a minha vida, nem o facto de ter alugado este quarto tão pequenino. Foi a comodidade que me seduziu, unicamente o conforto que ele me oferece me levou a esta resolução... Mas devo confessar-lhe, minha amiguinha, que sob o aspeto financeiro, também fiquei a lucrar e já tenho algumas economias. É verdade; vou amealhando qualquer coisa. Não me julgue um pobrezinho a quem uma mosca seria capaz de derrubar com as asas. Não, meu amor, não sou tão insignificante, O meu caráter é o de um homem de consciência tranquila, possuidor dessa retidão que é dada pelo sentimento do próprio decoro. Adeus, meu anjo! Já enchi duas folhas e são horas de ir trabalhar. 

Beijo os seus deditos, querida Bárbara, e sou um seu humilde criado e fiel amigo.


Makar Dievuchkin


P. S. — Uma coisa lhe peço especialmente: que em resposta a esta, me escreva uma carta o mais extensa possível. Junto envio-lhe um cartuchinho de bombons. Coma-os, que lhe farão bem e, por amor de Deus, não se preocupe comigo, nem fique zangada. Uma vez mais, adeus, minha querida.




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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.


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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com


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Gente Pobre - 02. Ainda acabo por me zangar consigo, sabe? - Dostoiévski

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