terça-feira, 1 de novembro de 2016

historinhas de avoinha: escrever o nosso mundo no mundo

mulheres descalças


escrever o nosso mundo no mundo
Ensaio 91B – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar


adoro quando um homem me convence e detesto quando cisma que pode me amansar. meu deus, parece que no mundo só encontramos os tolos com suas meias verdades, meias fedidas, unhas encardidas, piadas sujas, bafo de vinho barato, machos metidos à besta, marcados pela má educação, tipo meia foda: o futebol ou a bíblia, o boteco ou a missa, cristos mulherengos com ressaca não se parecem com gente, mas com demônios assustados. loucos. debochados. acostumados com a meia vida, o meio pau, um balde de maldade por dentro

vida amorosa, vida rançosa. um jogo medonho. embolorado. entramos de olhos vendados pelo traquejo da tradição e a cabeça latejando pela obediência. o dia todo e todo dia. a vontade vazia e insatisfeita. é bom não se encher de vontade: um bom conselho pra mulherada, não acredita? nem as brancas escapam com toda dinheirama que os marido têm, na verdade, eles escondem a meia foda com a dinheirama. mentira? inveja? azedume? aham, eu que sei, é eu que entro nas suas casas todos os dias. escuto os silêncios, ignoro os gritos ou imagino as lágrimas

por que não tive filhos? não quis. já chega o que a villa fez comigo. eu não vou abastecer a villa com mais carne escrava. um filho pra quê? ensinar a chorar? um homem que não chora é menos homem. ensinar que homem pode chorar? educar uma filha pra quê? uma mulher com filhos é mais mulher. a mulher que sabe cozinhar prende o seu homem pelo estômago. uma mulher educada e carcereira?

amor é difícil de prever entre as pessoas, é bem mais fácil entre gente e bicho: a paixão pela submissão do outro. a obediência, o servilismo e a sujeição, o escravismo mais antigo da villa sobre a mulher villeira, atada à força. uma mercadoria que precisa produzir uma família. um abismo intransponível pra algumas de nós, pontes frágeis pra outras tantas. uma canseira de tanto suportar dúvidas, impaciências e ficar abafada. um bicho de estimação que anda quase livre pela casa

ela lê muito

ele escreve, nem muito nem bem


eu gosto de escutar rádio. gosto muito das novelas

ela é azul porque... nem lembra mais porque


ele é vermelho porque o pai é vermelho, mas não sabe porque o pai é colorado; gremista é azul, colorado é vermelho. é assim aqui na villa, você é uma coisa ou outra, ou ateu, menos à toa, não escolhe só por escolher, muitos casam só por casar. mas tudo cabe no futebol e no casamento, até os não crentes: a solidão do palavrão grande e o feio pequeno; a cerveja gelada até não mais importar se está quente ou regelada, não importa nem mesmo se ainda é cerveja; a villa vazia, os estádios cheios; os gritos e os abraços; os xingamentos. depois do apito final do juiz de campo você levanta esgotado, volta pra sua casa cansado – passou a tarde do domingo sentado no cimento frio –, uns com as mãos nos bolsos, outros comendo cachorro-quente, muitos com um radinho de pilha no ouvido, ouvindo entrevistas e explicações, aprendendo porque não perdem ou não ganham. todo domingo igual, não se leva nada antes ou depois do apito do fim

eu sou preta


a brincadeira das cores é apenas isso: uma brincadeira quando o futebol é só isso: futebol. amigas e amigos, cores e sabores, desacordos e acordos, a afinação dos gostos, a desafinação das cores, as confusões do futebol – será isso tão importante? claro que não – quase estrangulam as vontades de estarem juntos, mas parece que o seu sèzar e dona adelaide têm uma encantação sem culpas ou medos. o futebol deles é um outro jogo. eu tenho gosto de ver, gosto de reparar

um dia desses, que não lembro o nome, mas lembro que o rádio estava ligado na novela da tarde. seu sèzar apareceu no apartamento da dona adelaide com um presente inesperado. ele muito pouco diz do que pensa, ri muito e fala muito menos do que ri, a dona adelaide reclama que ele prefere escrever, Sèzar, só eu falo. Fico me repetindo. Provocando. Nunca sei o que você está pensando. Ouviu? De novo, falando e você mudo.

ele sorri

dona adelaide reclama das palavras escritas dele, As palavras escritas têm outro compromisso que as palavras ditas. Eu quero as palavras que são para mim, essas que você publica são para todo mundo, não para mim.

ele ri

naquele dia, houve uma batida na porta. perguntei quem era, Sou eu... Milagres.

procurei secar as mãos no avental azul que usava sobre o meu uniforme todo branco. já tinha retirado o almoço da mesa – a comida de passarinho que dona adelaide jura que alimenta – e lavava a louça. desliguei o rádio. a patroinha cochilava. ela parecia ter sido pega pelo sono que desconjura a vontade de acordar. eu cantarolava um e outro ponto da quinta-feira



vamô chamá santé na calunga,
oiá este camba
qui é fia dos espritu
fia de Umbanda

Eu quem?

perguntei, sentia a umidade da água e sabão nos cantinhos dos dedos

A sua paixão branca.

E paixão tem cor, seu Sèzar?

respondi através da porta fechada

Viu, Milagres? Você sabe quem á sua paixão branca. Abra a porta, sinhá batuqueira.


lá se vinha ele com essa conversa que batuqueira é coisa do diabo. falava rindo como se fosse brincadeira o que era dito. as coisas dos nossos antepassados continuavam no meio de nós, já estava cansada de explicar e rezar pra ele entender que o demônio é muito bom em apontar nos outros as maldades que ele mesmo faz

Dona Adelaide está cochilando.

Por favor, Milagres. Abra a porta.

Dona Adelaide pediu pra dizer que não está.

silêncio

Isto foi antes de saber que a visita seria eu.

Isto foi pra qualquer visita.

Você sabe que não foi.

novo silêncio

Não sei, não.

me senti toda atrapalhada, tudo parecia tão calmo aqui dentro. eu não ia fugir. ele também, não. abri a porta. a amizade e a cumplicidade entre dona adelaide e o seu sèzar não sofria com dias marcados ou visitas inesperadas, bastava ter a vontade de bater à porta. estava pronta pra despachar quem quer que fosse, menos ele, parado na porta com um imenso sorriso fiteiro. senti pena do sossego aqui dentro

abri uma fresta da porta

um pacote embaixo do sovaco, a mão no bolso da calça ajustava o aperto do braço no coitado do pacote todo amassado, a outra alisava o bigode enquanto a boca se exibia num lindo sorriso, Boa tarde, Milagres.

Boa tarde, seu Sèzar.

A patroazinha...

não respondi, aquilo não era pergunta, parecia adivinhação. não estava disposta pra brincadeiras

... já sei que está. E você tem a obrigação de mentir para não desobedecer, precisa responder que ela não está quando ela está e não quer ser perturbada.

Se o seu Sèzar já sabe tudo isso...

Afinal, ordens são ordens.

não respondi, isso também não era pergunta

Viu? Tudo desvendado. Então, poupe-se desta mentira inútil. Deixe para mentir quando você puder ter algum proveito.

não sou mentirosa, não sou carcereira, não sou inocente nem culpada de nada. olhei pro seu sèzar e sorri

Seu Sèzar...

deu-me um beijo na testa e entrou. ele gosta de atiçar como se tivesse acabado de sair e já estava de volta, misturado na saudade

Seu Sèzar...

passou por mim, um cão de guarda dócil, sorte a minha que já vai longe os castigos com vara, sem comer, sem falar, em pé, calados pela tortura. sorte a minha que a dona adelaide não é cruel nem insolente, ela é afável, fala comigo, pede conselhos, come comigo. sinto que leva em conta tudo que aconteceu entre nossos antepassados

não sou uma boa sentinela de prisão, iria morrer de pena dos presos, também não sou uma boa vigia pro quartel, muito menos, em hospício de loucos. fechei a porta. ele deu dois passos ou três, não contei, mas poderia ser mais, isso não importa. parou na porta do quarto que dona adelaide disfarçou como biblioteca

nunca entrei numa biblioteca, imagino que tenha mais livros que a biblioteca da dona adelaide, mas não deve ter tantos livros empilhados. o armário que sobe do chão até o teto está congestinado com livros. no meio do quarto a cadeira de balanço e apenas o livro escolhido pra ser lido

Boa tarde, dorminhoca...

Seu Sèzar...

Pode deixar, Milagres. Já estou acordada.

ela sorriu como uma criança enfeitiçada, por tudo, e por nada. dava pra escutar o seu coração correndo, depois voando

caminhou até aquele homem parado, não carregava a esperança do mundo nas mãos só um pacote amassado embaixo do sovaco. um homem que parecia fugido da solidão que não aprendeu a arrancar sozinho. rapaz babaquara, tem coisa pior, mas se quiser o meu conselho, é claro que não vai pedir, mas, mesmo assim, devo lhe avisar que as feridas da solidão curam sozinhas. amarre um trapo velho em torno delas e deixe o tempo agir

subiu na ponta dos pés, deu-lhe um beijo na queixada e quis voltar pra sua cadeira de balanço, única recordação da mobília da sua avoinha, além da cor verde dos olhos da avoinha, toda vez que olha com mais atenção o espelho, ele a segurou delicado e firme pelo braço

Interrompi o cochilo da mocinha?

ergueu a mão e roçou tão leve quanto pode a ponta dos dedos no rosto da dona adelaide. deslizou os dedos até os cabelos fininhos e dourados. continuou parado na frente da moça, só a respiração mexendo a ponta dos dedos, até que ela apoiou a cabeça no seu peito, os olhos azuis sorrindo. eu sei, disse que os olhos da moça são verdes, e são. mas, não sei de verdade se são, eles mudam do verde até o azul

podemos escrever o nosso mundo no mundo com tantos jeitos maneiros de cheiros, olhares, aromas, gostos, palavras de silêncio. um dicionário e labirintos, uma enciclopédia e histórias. sonhos coloridos com cafés, vinhos e chás, mas qualquer história escrita começa na ponta dos dedos. não são os olhos que escrevem. na ponta dos dedos está a mágica que se derrama com palavras deslizando em silêncio ou aos gritos, em lágrimas ou risos, tudo sai do umbigo

a voz quente e úmida, quase arrependida de estorvar o repouso da dona adelaide, quase arrependido do seu passado com deus, do seu presente sem religião, como se tivesse a pouco, bem pouco, descoberto que ninguém tem a vida nas mãos até perder as mãos. e acha bom que a própria vida não estivesse nas mãos perdidas

Você bebeu?

o moço deveria ter respondido, só pra contentar minha curiosidade, que sim, ele havia bebido, mergulhado tão fundo que o fundo da garrafa quebrou. e cambaleando e tropeçando e vomitando, continuou. até que chegou, subiu e desarrumou tudo, mas não disse

A mesma Adelaide desconfiada. Como vou saber se bebi? Eu estou aqui.

ele queria ser bacana e inteligente, mas sem almoço estava emagrecendo. todas as tardes ela senta na cadeira e balança esperando, indo e voltando, balançando espera, mas almoça sozinha. eu e a moça

o tempo que embalança não volta, é uma fila que anda, uma ditadura que não aceita argumentos, não dorme, um esquema de chances sem dias de folga, suburbano, um erro da criação

ela almoça sozinha balançando a vontade adormecida, acho ele um covarde

Não seja bobo.

jogavam o seu jogo contra o tempo, ninguém ganha esse jogo, mas quando esse jogo se repete ao infinito ganha a força da permanência, é quando não se consegue mais confundir a solidão de viver com a casa e as marcas. sabe que tem tanto pra dar, quer dar tanto

a solidão a dois é uma outra solidão, deitamos de bruços sobre o travesseitro e choramos baixinho, depois entregamos o corpo pro outro que se oferece e trepamos com toda à vontade, antes que o mundo acabe

Peço desculpas à você e ao Abelaira, o seu sèzar gostava de avisar que sabia dos flertes da dona adelaide, os seus casos com todas as invecionices nos livros que ela estava lendo, eu não pretendia roubar a moça de tão apaixonante companhia.

Você já leu?

dona adelaide abaixou pra pegar o livro que lhe caiu das mãos enquanto cochilava. ofereceu pro moço... o mofo

Não.

Leve com você.

Tudo bem, mas depois que você terminar de ler.

Já li... três vezes...

o seu sèzar pegou o livro das mãos da dona adelaide, só por curiosidade; me senti retardada por não gostar de ler, como é difícil gostar de ler, tem muitas palavras complicadas e antipáticas. dá trabalho guardar tantas palavras novas na cabeça. eu fico com dor de cabeça. tem palavra que parece ser de outra língua, acho que esses livros são escritos sempre pras mesmas pessoas. e eu, não sou uma dessas pessoas

Isso não me surpreende...

O que não o surpreeende?

Não me espanto com esses seus delírios de ler, ler e reler... qualquer livro. O Mofo, é bom esse livro?

Muito bom. Você deveria ler...

largou o livro no chão





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