quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Bobók - 5. Lebieziátnikov, conselheiro da corte - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


5.


Lebieziátnikov, conselheiro da corte, Semión Ievsêitchik, para vos servir e muito, muito contente. 

— Estou me lixando para o seu contentamento, mas parece que o senhor é o único aqui que sabe tudo. Dizei, em primeiro lugar (desde ontem que estou admirado), de que modo nós falamos neste lugar? Porque estamos mortos e no entanto falamos; é como se falássemos, e no entanto nem falamos nem nos movemos! Que truques são esses? 

— Isso, se o senhor desejar, barão, quem pode vos explicar melhor do que eu é Platon Nikoláievitch. 

— Quem é esse Platon Nikoláievitch? Pare de mastigar, vamos ao assunto. 

— Platon Nikoláievitch é o nosso filósofo doméstico daqui, naturalista e grão-mestre. Já lançou vários livros de filosofia, mas faz três meses que vem entrando no sono definitivo, de modo que aqui já não é mais possível desentorpecê-lo. Uma vez por semana balbucia algumas palavras sem nexo. 

— Ao assunto, ao assunto!... 

— Ele explica tudo isso com o fato mais simples, ou seja, dizendo que lá em cima, quando ainda estávamos vivos, julgávamos erroneamente a morte como morte. É como se aqui o corpo se reanimasse, os restos de vida se concentram, mas apenas na consciência... Isto não tenho como lhe expressar — é a vida que continua como que por inércia. Tudo concentrado, segundo ele, em algum ponto da consciência, e ainda dura de dois a três meses... às vezes até meio ano... Há, por exemplo, um fulano que aqui quase já se decompôs inteiramente, mas faz umas seis semanas que de vez em quando ainda balbucia de repente uma palavrinha, claro que sem sentido, sobre um tal bobók: “Bobók, bobók”; logo, até nele ainda persiste uma centelha invisível de vida... 

— Coisa bastante tola. E como é que eu estou sem tato, mas sinto fedor?

— Isso.. eh-eh... Nesse ponto o nosso filósofo meteu-se em zona nebulosa. Referindo-se precisamente ao olfato, ele observou que aqui se sente um fedor, por assim dizer, moral, eheh! É como se o fedor viesse da alma para que, nesses dois-três meses, nós nos apercebêssemos a tempo... e que isso, por assim dizer, é a última misericórdia... Só que eu, barão, acho que tudo isso já é delírio místico, bastante desculpável na situação dele... 

— Basta, e estou certo de que todo o resto é absurdo. O principal são os dois ou três meses de vida e, no fim das contas, bobók. Sugiro que todos passemos esses dois meses da maneira mais agradável possível, e para tanto todos nos organizemos em outras bases. Senhores! proponho que não nos envergonhemos de nada!

— Ah, vamos, vamos, não nos envergonhemos de nada! — ouviram-se muitas vozes e, estranho, ouviram-se até vozes inteiramente novas, logo, que haviam tornado a despertar nesse ínterim. Um engenheiro que despertara completamente trovejou com voz de baixo a sua concordância, com uma presteza especial. A mocinha Kátich dava risadinhas de alegria. 


— Ah, como eu quero não me envergonhar de nada! — exclamava em êxtase Avdótia Ignátievna. 

— Ouvi, já que Avdótia Ignátievna quer não se envergonhar de nada... 

— Não-não-não, Kliniêvitch, eu me envergonhava, apesar de tudo lá eu me envergonhava, mas aqui estou com uma terrível, uma terrível vontade de não me envergonhar de nada! 

— Eu entendo, Kliniêvitch — falou o engenheiro com sua voz de baixo —, que estais propondo organizar a vida aqui, por assim dizer, em princípios novos e já racionais. 

— Bem, para isso eu estou me lixando! Neste sentido aguardemos Kudeiárov, foi trazido ontem. Assim que despertar vos explicará tudo. Precisam ver que tipo, é um tipo agigantado! Amanhã, parece, vão trazer mais um naturalista, certamente um oficial e, se não estou enganado, dentro de uns três ou quatro dias um folhetinista, e parece que junto com o redator-chefe. Aliás, o diabo os tenha, porque tão logo se reúna a nossa turma, tudo entre nós se organizará naturalmente. Mas por enquanto eu quero que não se minta. É só o que eu quero, porque isto é o essencial. Na Terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o túmulo significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a contar a minha história. Eu, sabei, sou dos sensuais. Lá em cima tudo isso estava preso por cordas podres. Abaixo as cordas, e vivamos esses dois meses na mais desavergonhada verdade! Tiremos a roupa, dispamo-nos! 

— Dispamo-nos, dispamo-nos! — gritaram em coro. 

— Estou com uma terrível, uma terrível vontade de tirar a roupa! — ganiu Avdótia Ignátievna. 

— Ah... ah... Ah, estou vendo que a coisa aqui vai ficar alegre; não quero mais ir a Eckoud. 

— Não, eu ainda gostaria de viver, não, ficai sabendo, eu ainda gostaria de viver! 

— Ih-ih-ih — Kátich dava risadinhas. 

— O principal é que ninguém pode nos proibir, e ainda que Piervoiêdov se zangue, como estou vendo, ele não pode mesmo me alcançar com a mão. Grand-père, o senhor está de acordo? 

— Totalmente, totalmente de acordo e com o maior dos prazeres, mas contanto que Kátich seja a primeira a começar sua bi-o-grafia. 

— Protesto, protesto com todas as forças — pronunciou com firmeza o general Piervoiêdov. 

— Excelência! — balbuciou em voz baixa o canalha do Lebieziátnikov numa inquietação precipitada e em tom persuasivo. — Excelência, será até mais vantajoso para nós se concordarmos. Como sabeis, está em jogo essa menina... e, no fim das contas, todas essas coisinhas várias...

— Suponhamos, a menina, no entanto... 

— Mais vantajoso, Excelência, juro que seria mais vantajoso! Ao menos uma provinha, ao menos experimentemos... 

— Nem no túmulo nos deixam em paz! 

— Em primeiro lugar, general, o senhor joga préférence no túmulo, em segundo, estamos nos li-xan-do para o senhor — escandiu Kliniêvitch. 

— Meu caro senhor, não obstante, peço que não esqueçais as maneiras. 

— O quê? Ora essa, o senhor não me alcança, e daqui eu posso provocá-lo como se faz com um cachorrinho. Em primeiro lugar, senhores, que general é ele aqui? Lá ele era general, mas aqui é um nada! 

— Não, não sou um nada... eu até aqui... 

— Aqui apodrecerá no caixão, e deixará seis botões de cobre. 

— Bravo, Kliniêvitch, quá-quá-quá! — mugiram vozes. 

— Eu servi ao meu soberano... tenho uma espada... 

— Vossa espada serve para espetar ratos, e além do mais o senhor nunca a desembainhou. 

— Não importa; eu era parte de um todo. 

— Sabe-se lá que partes tem um todo. 

— Bravo, Kliniêvitch, bravo, quá-quá-quá! 

— Eu não entendo o que é uma espada — proclamou o engenheiro. 

— Nós vamos fugir dos prussianos como ratos, eles nos reduzirão a pó! — gritou uma voz distante, estranha a mim, mas literalmente sufocada de êxtase.

— A espada, senhor, é honra! — ia gritando o general, mas só eu o ouvi. Ergueu-se uma berraria demorada e frenética, motim e alarido, e só se ouviam os guinchos impacientes e quase histéricos de Avdótia Ignátievna.

— Vamos logo com isso, logo! Ah, quando é que vamos começar a não ter vergonha de nada! 

— Oh-oh-oh! a alma anda verdadeiramente atormentada! — ia-se ouvindo uma voz vinda do povão e... 

E eis que de repente espirrei. Aconteceu de forma súbita e involuntária, mas o efeito foi surpreendente: tudo ficou em silêncio, exatamente como no cemitério, desapareceu como um sonho. Fez-se um silêncio verdadeiramente sepulcral. Não acho que tenham sentido vergonha de mim: haviam resolvido não se envergonhar de nada! Esperei uns cinco minutos e... nem uma palavra, nem um som. Também não dá para supor que tenham temido ser denunciados à polícia; porque, o que a polícia pode fazer neste caso? Concluo involuntariamente que, apesar de tudo, eles devem ter algum segredo desconhecido dos mortais e que eles escondem cuidadosamente de todo mortal. 

“Bem, queridos, refleti, ainda hei de visitá-los” — e com essas palavras deixei o cemitério.

Não, isso eu não posso admitir; não, efetivamente não! O bobók não me perturba (vejam em que acabou dando esse tal bobók!). 

Perversão em um lugar como este, perversão das últimas esperanças, perversão de cadáveres flácidos e em decomposição, sem poupar sequer os últimos lampejos de consciência! Deram-lhes, presentearam-nos com esses lampejos e... E o mais grave, o mais grave: num lugar como este! Não, isto eu não posso admitir... 

Circulo em outras classes, escuto em toda parte. O problema é que preciso escutar em toda parte e não só de um lado para fazer uma ideia. Pode ser que eu depare com algo consolador. 

Mas voltarei sem falta àqueles. Prometeram suas biografias e toda sorte de anedotas. Arre! Mas vou procurá-los, vou sem falta; é uma questão de consciência! 

Vou levar ao Grajdanin; lá também reproduziram o retrato de um redator-chefe. Pode ser que publiquem.



Fim




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Dostoiévski, Fiódor, 1821-1881 D724b Bobók / Fiódor Dostoiévski; tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; desenhos de Oswaldo Goeldi; texto de Mikhail Bakhtin. — São Paulo: Editora 34, 2012 (1ª Edição). 96 p. (Coleção Leste)


1. Literatura russa. I. Bezerra, Paulo. II. Goeldi, Oswaldo, 1895-1961. III. Bakhtin, Mikhail, 1895-1975. IV. Título. V. Série.

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BOBÓK*

*Publicado originalmente no semanário Grajdanin (O Cidadão), nº 6, em 5 de fevereiro de 1873, quando Dostoiévski já era seu redator-chefe. Traduzido do original russo Pólnoie sobránie sotchiniénii v tridtsatí tomákh (Obras completas em trinta tomos) de Dostoiévski, tomo XXI, Leningrado, Ed. Naúka, 1980. As notas da edição russa estão assinaladas com (N. da E.); as notas do tradutor, com (N. do T.).

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Leia também:

Bobók - 4. Mas depois começou tal pandemônio - Dostoiévski




O Universo de Bobók

"Dostoiévski publica Bobók em 1873, com a finalidade de ajustar contas com a crítica muitas vezes azeda, ideologicamente raivosa e desrespeitosa ao romance Os demônios, publicado no ano anterior. Escrito à queima roupa, esse conto aproxima narrador e objeto da representação, tempo da ação e tempo da narração, elimina toda distância entre os polos componentes do universo representado e arrasta imediatamente o leitor para dentro do clima de hostilidade da crítica ao romancista, que se seguiu à publicação de Os demônios, em 1872. Acusado de louco, de haver criado um romance que “lembra um hospital povoado de pacientes excêntricos”, de “marionetes e figuras afetadas ao lado de personagens vivas”, um romance que “deixa a impressão extremamente sinistra de um manicômio”, traz uma “enxurrada de asneiras” e apresenta os niilistas como “manequins que se distinguem entre si por essa ou aquela variedade de delírio” que, no fundo, são “delírios do próprio autor” — tudo isso, segundo muitos críticos, revela de modo definitivo “a falência do autor de Gente pobre”. Sensível à crítica pró ou contra, Dostoiévski passa por uma breve crise e faz planos para responder na bucha aos seus críticos. Podia fazê-lo sem nenhuma dificuldade, pois a essa altura era redatorchefe do semanário Grajdanin [O Cidadão], onde, além de editar artigos sobre os mais diversos temas, publicou o famoso Diário de um escritor e várias de suas obras, entre elas o próprio conto Bobók. Contudo, em vez de usar a crítica jornalística, na qual se destacava como um polemista inflamado e contundente, preferiu dar sua resposta no campo onde nenhum de seus oponentes e detratores tinha a mínima condição de ombrearse com ele: no campo da ficção. Foi isto que deu origem a Bobók..."



Paulo Bezerra

 

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