sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Liniker: Desmonta o desamor Remonta o amor

Manos e Minas





Desmonta o desamor Remonta o amor










aqui já se mata em nome de Deus!





o Baile da negada com mais de 120 anos! começou nos quilombos porque tinha outro baile em que os pretos não podiam entrar. uma semana de baile. 120 anos de resistência






Lina X


A personalidade dela era um tanto dividida
Parece poliana
Querendo um "quê" de frida
Queria a parte outra da metade
O todo, o tudo, a casualidade
Iih, iih

A personalidade dela era um tanto dividida
Parece poliana
Querendo um "quê" de frida
Queria a parte outra da metade
O todo, o tudo, a casualidade
Iih, iih

A personalidade dela era um tanto dividida
Parece poliana
Querendo um "quê" de frida
Queria a parte outra da metade
O todo, o tudo, a casualidade
Iih, iih

Onde é que tá
Aquela estante amarela
Onde foi parar
Rimei
Versos pra depois
Pra levar, na rua lá do boulevard

Onde é que tá
Aquela estante amarela
Onde foi parar
Rimei
Versos pra depois
Pra levar, na rua lá do boulevard

Até pensa em vir
Mas se calhar
É só parar pra, vir
E mais de mim
Tem mais aqui
(uuhh...)

Oohh





Gente Pobre - 04. Não tem vergonha - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


04.




9 de abril


Prezado Makar Alexeievitch


Não tem vergonha, meu bom amigo e protetor, de albergar no seu cérebro tais ideias? Sente-se deveras ofendido? Ai! Sou, por vezes, tão irrefletida nas minhas apreciações! Mas desta, pode crer, nem sequer pensei que o senhor pudesse ver nas minhas palavras tom de zombaria. Fique certo de que nunca seria capaz de brincar com a sua idade ou o seu caráter. A culpada de tudo foi a minha cabecinha oca, ou, para melhor dizer, o facto de me aborrecer horrivelmente... E quando o tédio se apossa de nós, de que não somos capazes para conseguirmos combatê-lo? 

Para lhe falar com franqueza, ao ler a sua carta pareceu-me também ver nela um tonzinho de brincadeira; mas agora sinto-me deveras penalizada ao pensar que o senhor estará zangado comigo. Não, meu leal amigo e protetor, será injusto se me julgar, por um momento que seja, insensível e ingrata. Sei apreciar bem tudo o que fez por mim, protegendo-me do ódio e da perseguição de homens abomináveis. hei de sempre pedir a Deus por si, e se Ele ouvir as minhas orações, o senhor será absolutamente feliz. 

Estou hoje muito doente. Ora sinto arrepios de frio, ora um calor que parece abrasar-me, e Fédora mostra-se inquieta com o meu estado. Quanto aos escrúpulos que demonstra em visitar-me, julgo-os destituídos de fundamento. Que importam os outros? O senhor é nosso amigo, e é quanto basta. 

Adeus, Makar Alexeievitch. Não tenho mais que lhe escrever, e mesmo não me seria possível prosseguir; estou muito doente. Mais uma vez lhe peço que não se zangue comigo e creia no respeito e afeto inalteráveis da sua dedicada e agradecida.



Bárbara Dobresselof





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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.


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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com


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Leia também:

Gente Pobre - 03. Pensar, meu amor, que um dia - Dostoiévski




quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O Brasil nação - v1: § 23 – Moderados: conservadores; exaltados: republicanos... - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 3
o novo malogro






§ 23 – Moderados: conservadores; exaltados: republicanos... 




Os moderados insistiam em que as reformas exigidas pelos revolucionários fossem feitas legalmente... E como procediam?... “Na Câmara dos deputados, uma ou outra voz se ouvia, pedindo reformas imediatas na constituição, para que cessasse o descontentamento público; alguns oradores declararam, porém, que se deviam primeiro que tudo votar as medidas salvadoras contra os facciosos...”106  Aí está: escamotearam a revolução, e atendiam ao descontentamento público, com medidas de garrote contra os exaltados, ao mesmo tempo que os infamavam tratando-os de facciosos e desordeiros. Não tinham coragem de proclamar-se contra as reformas exigidas pela nação, mas limitavam-se a contemporizar, confiantes de que o senado dos marqueses jamais concordaria com elas.107  O projeto de reforma da constituição, adotado pela Câmara dos deputados, consigna as modificações mais reclamadas; foi enviado ao Senado somente em outubro de 1831, e, ali, foi rejeitado em todas as suas disposições substanciais. O projeto preparado (veremos depois) por ocasião do projetado golpe de Estado, de julho de 1832, consigna essas mesmas reformas...108  Mas tudo se frustrou, porque poucos sinceros e liberais, entre os moderados, estavam inteiramente inibidos pelo mesmo moderatismo. Eram os Feijó, Vergueiro, Lino Coutinho, Martiniano de Alencar... tão empenhados em dar à nação as reformas reclamadas, como em apresentarem-se escoimados da pecha de exaltados e radicais... Pretendiam, antes de tudo, a qualidade de homens de governo, mantenedores da ordem... Daí, o tom veemente e os excessos da luta entre eles e os exaltados, quando não os separava, aparentemente, nenhum programa de ideias. Por isso mesmo, na organização dos esforços, uns e outros organizaram-se em sociedades políticas privadas: os moderados, na sua Sociedade Defensora da Independência, os exaltados no seu Club Federal. Apesar do vazio do primeiro dos títulos, são, 


106 Ibidem, caps. I, II, III. 

107 Bernardo de Vasconcelos confessou, em 1839, que era contra as reformas; transigiu porque era preciso... 


108 A reforma preparada para o golpe de Estado trazia como título – Constituição reformada segundo os votos e as necessidades da nação.


ambos, nimiamente expressivos: os moderados, instintivamente conservadores, apegavam-se, assim, ao que estava feito, e que eles defendiam como se fora em proveito próprio; os outros pediam, desde logo, uma reforma radical – a federação, e, tanto vale dizer – a república. 

É indispensável insistir, ainda, nesses pormenores das lutas de então, porque daí vai sair o quebrantamento do espírito público, e a subsequente degradação da política, do Brasil soberano. Uma nação não pode ser contrariada nas suas aspirações mais vivas, como aconteceu ao Brasil de 1831, sofrendo formalmente no desenvolvimento das suas tradições essenciais, sem que se lhe suplantem as suas energias primeiras, gastas em desilusões, sem que se lhe desnature o caráter, abatido, diluído em covardia, indiferença, ceticismo... Contudo, antes de se deixar anular, a fração radical e exaltada, de 1831-34, deu repetidos esforços, sempre empenhada em realizar um regime democraticamente brasileiro. Os seus últimos espasmos, estorcer de membros distantes, vão até 1942... 48... Vimos que a luta contra o Império foi aberta, desde logo, pelos que falavam em nome de ideais republicanos e federalistas. Numa política representada exclusivamente pelos brasileiros de D. João XI, abatidos os Andradas, reduzidos os liberais de Ledo à pura expressão – José Clemente, parecia a nação brasileira abandonada de todo ideal, no sentido das tradições de 1817. É quando, incontinenti, ressurge Pernambuco. Foi vencida a Confederação do Equador, mas estava dado o alarma, e o sangue dos seus vinte e cinco mártires descolou completamente o Império de Pedro I. Assim como o tratado de reconhecimento, a ferocidade contra os patriotas pernambucanos deu as razões para o primeiro ataque, a que se seguiram outros, que não mais cessaram. E quando veio a Assembleia de 1826, já achou a nação acesa contra o bragantismo. Por isso mesmo, encontrando-a com uma ação política encaminhada, ostensiva e vigorosa pelo apoio da opinião nacional, os futuros moderados foram para ela; por isso mesmo, o primeiro golpe desses moderados foi contra os antigos companheiros que lhes tinham dado a vitória, esses exaltados, praticamente propagandistas da eliminação do Império. Apesar disto, em 1831-32, ainda são eles os mais potentes sobre a opinião pública. Tinham, só no Rio de Janeiro, além do seu clube, os jornais: Luz Brasileira, Exaltado, Jurujuba, a Bússola; em Pernambuco: a Sentinela, o Eco da Liberdade; na Bahia, o Observador... Como nomes, destacam-se, constantes na ação: os Franças, da Bahia, May, na imprensa do Rio de Janeiro, Castro Alvares, Paes de Andrade, Borges da Fonseca, Frias de Vasconcelos e o irmão... Essas criaturas, conduzindo as ondas de sinceros revolucionários, levantaram o pendão das reivindicações nacionais, e só o deixaram cair quando já não havia motivo para esperança e ilusões. Desde que reconheceram o logro, de que fora vítima a nação colhida pelos moderados, tentaram obrigá-los a cumprir as promessas de revolução. Note-se bem: os repetidos levantes, dos dois primeiros anos da Regência, não foram, como noutras partes da América Latina, golpes de caudilhagem para galgar o poder, mas movimentos armados para completar a revolução, e dar verdade às palavras com que haviam levado a nação a revoltar-se contra o Império. 

O primeiro movimento sério dos exaltados é logo a 15 de julho de 1831. Vejamo-lo, nas próprias palavras dos endeusadores dos moderados, quanto era ele lógico e necessário:


... por entre bastas mangas de revoltados se fazia uma representação à assembleia geral dos representantes da nação, exigindo a demissão dos ministros de Estado (que haviam sido ministros de Pedro I), a promulgação imediata de reformas constitucionais no sentido francamente liberal (que Feijó quis fazer com o golpe de Estado de 2 de julho); suspensão dos funcionários de categoria elevada nascidos em Portugal, a deportação de cerca de cem cidadãos, pertencentes ao... e ao senado... e a proibição de emigração portuguesa por espaço de dez anos... A representação fora remetida à Regência para ser presente à assembleia geral, coberta de mais de quinhentas assinaturas.109

Não poderia haver amotinados e desordeiros mais mansos e legalistas que esses. Que é que há de insólito nos seus reclamos? O afastamento dos agentes do lusitanismo? Mas Drumond, genuíno brasileiro de D. João VI, já havia notado: “nas crises reais, o instinto nacional aponta ao brasileiro o português como causa dos seus desastres...” (Anotações). Por isso mesmo, entre 1823 – 1832 – 1848, era esse o motivo constante nas reivindicações nacionais... E continua a história: vai a representação à Câmara:

... Evaristo e Honório Hermeto a estigmatizaram no fundo e na forma, e proclamaram indigna... Os revoltosos tinham que entregar-se ao merecido castigo. Muitos deputados e senadores abundaram em idênticos pensamentos... Aprovou-se uma proposta declarando que se não atendia à representação... um manifesto aos revoltados... que só eram dignos da liberdade os que em paz usavam dos seus direitos, não cometiam perturbações da ordem pública e nem pretendiam violentar os legítimos representantes da nação.110

Tais os sentimentos, tal a linguagem, três meses depois, nos mesmos homens que se apossaram do governo em virtude da desordem suprema – a coação sobre o chefe da nação!... Nesse dia, estava liquidada a revolução: seria preciso refazê-la, precatadamente,


109 Pereira da Silva, De 1831 a 1840 , pág. 24. 

110 Pereira da Silva De 1831 a 1840 , pág. 25.


numa rigorosa triagem de gentes, para evitar futuros desastres. Não o entenderam assim os ingênuos exaltados, e dissiparam todas as forças em repetir tentativas imediatas. Já os adversários ostensivos da liberdade – o senado e mais restauradores – tinham compreendido a situação, e trataram de arregimentar forças, para dar o combate formal aos desfrutadores do poder; manifestam-se os caramurus, e Pinto Madeira, absolutista da escola e da amizade de Andréa, rebela-se francamente. 

Em face dos restauradores em ação, ainda Evaristo tem ênfase para declamar contra as reivindicações populares, vilipendiando-as como – despotismo em mãos de muitos... E como a vitória ficou para esses moderados e oportunistas, os historiadores do segundo Império, que os continuam, cantam-lhes os méritos e consagram-lhes os serviços. Mais indiferente à verdade e ao bom senso do que o Sr. Pereira da Silva, um Sr. Moreira Azevedo retrata nestas palavras a situação pós 7 de abril:

... o partido exaltado, que queria que as mudanças e todos os melhoramentos fossem feitos já e já... mostrava-se tão veemente quanto precipitado. Arrebatado por inspirações ilegais, por paixões violentas, começou a perturbar a ordem pública, a segurança individual, e travou discussão e luta. Hasteou o estandarte da soberania popular, da resistência ao poder. Devotado à república, desejou estabelecer nova organização política, e clamou pela liberdade, mas não pela ordem. Sem aceitar o termo da revolução, julgou ser preciso solapar e destruir tudo, para reorganizar nova ordem de coisas.111

Pobre história!... Pobre Brasil! com tais consagradores!...


111 Op. cit., pág. 16.




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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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Download Acesse:

http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-i-manoel-bonfim/


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Leia também:


O Brasil nação - v1: § 22 – A insânia da sensatez - Manoel Bomfim

O Brasil nação - v1: § 24 – E o malogro dá em confusão... - Manoel Bomfim

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

22.O Livro dos Abraços - A cultura do terror/3 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


22. O Livro dos Abraços



A cultura do terror/3    



Sobre uma menina exemplar: Uma menina brinca com duas bonecas e briga com elas para que fiquem quietas. Ela também parece uma boneca porque é linda e boazinha e porque não incomoda ninguém.

(Do livro Adelante, de J. H. Figueira, que foi livro escolar nas escolas do Uruguai até poucos anos atrás).




A cultura do terror/4


Foi num colégio de padres, em Sevilha. Um menino de nove ou dez anos estava confessando seus pecados pela primeira vez. O menino confessou que tinha roubado caramelos, ou que tinha mentido para a mãe, ou que tinha copiado do colega de classe, ou talvez tenha confessado que tinha se masturbado pensando na prima. Então, da escuridão do confessionário emergiu a mão do padre, que brandia uma cruz de bronze. O padre obrigou o menino a beijar Jesus crucificado, e enquanto batia com a cruz em sua boca, dizia:

Você o matou, você o matou... Júlio Vélez era aquele menino andaluz ajoelhado. Passaram-se muitos anos. Ele nunca pôde arrancar isso da memória.




A cultura do terror/5


Ramona Caraballo foi dada de presente assim que aprendeu a caminhar. Lá por 1950, sendo ainda menina, ela estava como escravazinha numa casa de Montevidéu. Fazia de tudo, a troco de nada. 

Um dia, a avó chegou para visitá-la. Ramona não a conhecia, ou não se lembrava dela. A avó chegou vinda do interior, do campo, muito apressada porque tinha que regressar em seguida. Entrou, deu uma tremenda surra na neta, e foi embora. 

Ramona ficou chorando e sangrando. A avó tinha dito, enquanto erguia o rebenque: — Você não está apanhando por causa do que fez. Está apanhando por causa do que vai fazer.




A cultura do terror/6


Pedro Algorta, advogado, mostrou-me o gordo expediente do assassinato de duas mulheres. O crime duplo tinha sido à faca, no final de 1982, num subúrbio de Montevidéu. 

A acusada, Alma Di Agosto, tinha confessado. Estava presa fazia mais de um ano; e parecia condenada a apodrecer no cárcere o resto da vida. 

Seguindo o costume, os policiais tinham violado e torturado a mulher. Depois de um mês de contínuas surras, tinham arrancado de Alma várias confissões. As confissões não eram muito parecidas entre si, como se ela tivesse cometido o mesmo assassinato de maneiras muito diferentes. Em cada confissão havia personagens diferentes, pitorescos fantasmas sem nome ou domicílio, porque a máquina de dar choques converte qualquer um em fecundo romancista; e em todos os casos a autora demonstrava ter a agilidade de uma atleta olímpica, os músculos de uma forçuda de parque de diversões e a destreza de uma matadora profissional. Mas o que mais surpreendia era a riqueza de detalhes: em cada confissão, a acusada descrevia com precisão milimétrica roupas, gestos, cenários, situações, objetos... 

Alma Di Agosto era cega. 

Seus vizinhos, que a conheciam e gostavam dela, estavam convencidos de que ela era culpada*. 

Por quê? — perguntou o advogado. 

Porque os jornais dizem

Mas os jornais mentem — disse o advogado. 

Mas o rádio também diz— explicaram os vizinhos —. E até a televisão!




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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Leia também:


21.O Livro dos Abraços - Os índios/3  - Eduardo Galeano




Florbela Espanca - A Mensageira das Violetas 13

Florbela Espanca



13 - A Mensageira das Violetas





CREPÚSCULO



Teus olhos, borboletas de ouro, ardentes 
Borboletas de sol, de asas magoadas, 
Pousam nos meus, suaves e cansadas 
Como em dois lírios roxos e dolentes... 

E os lírios fecham... Meu amor não sentes? 
Minha boca tem rosas desmaiadas, 
E a minhas pobres mãos são maceradas 
Como vagas saudades de doentes... 

O silêncio abre as mãos... entorna rosas... 
Andam no ar carícias vaporosas 
Como pálidas sedas, arrastando... 

E a tua boca rubra ao pé da minha 
É na suavidade da tardinha. 
Um coração ardente palpitando...





EXALTAÇÃO



Viver!... Beber o vento e o sol!... Erguer 
Ao céu os corações a palpitar! 
Deus fez os nossos braços pra prender, 
E a boca fez-se sangue pra beijar! 

A chama, sempre rubra, ao alto a arder!... 
Asas sempre perdidas a pairar,
Mais alto para as estrelas desprender!...
A glória!... A fama!... O orgulho de criar!...

Da vida tenho o mel e tenho os travos 
No lago dos meus olhos de violetas, 
Nos meus beijos estáticos, pagãos!...

Trago na boca o coração dos cravos! 
Boêmios, vagabundos, e poetas: 
- Como eu sou vossa irmã, ó meus irmãos!...




RÚSTICA



Ser a moça mais linda do povoado, 
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
Ver descer sobre o ninho aconchegado
A bênção do Senhor em cada filho.

Um vestido de chita bem lavado,
Cheirando a alfazema e a tomilho...
Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de milho...

Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à "terra da verdade"...

Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de princesa,
E todos os meus reinos de ansiedade.



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A Mensageira das Violetas, de Florbela Espanca

Fonte: ESPANCA, Florbela. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999. (Pocket). 

Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. 

Texto-base digitalizado por: 


Luciana Peixoto Silva – Divinópolis/MG
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Leia também:


Florbela Espanca - A Mensageira das Violetas 12

Florbela Espanca - A Mensageira das Violetas 14


O Brasil nação - v1: § 22 – A insânia da sensatez - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 3
o novo malogro






§ 22 – A insânia da sensatez




Mesmo sinceros, os moderados nada compreenderam do momento nacional em que intervieram, nem tiveram consciência dos seus deveres. Prontamente venceu a revolução; entraram para ela os mais ambiciosos dos oposicionistas, que já se achavam na função de dirigentes, e trataram de fruir imediatamente a vitória sem esquecer de confundir a nação com as suas pessoas. Consideraram que tudo se resolvera com a retirada do insignificante imperador, que nem soubera lutar, e reduziram o movimento a uma simples crise de ministério a ser substituído. Ora, as condições eram muito mais graves, e de significação infinitamente mais extensa: havia a premência de motivos que vinham de longe, com força para determinar uma verdadeira revolução. Era já uma avançada que se não podia suspender, ou desviar dos resultados lógicos, sem anular energias essenciais no soerguimento da nação. No entanto, começaram, esses oportunistas, na hora mesma em que alcançaram o poder, com o gesto de suspender o movimento de avançada; então, daí por diante, toda a sua política se fez no esforço de conter a revolução que apenas irrompia. Sentaram-se no governo e, ao Brasil, que fremente pedia a verdadeira realização nacional, eles fecharam todo o horizonte com os reclamos de calma, dando, em vez de um programa de ação, panegíricos da ordem

Quando, a uma nação que pede reformas radicais, a vitória política se anuncia em promessas de ordem, isto equivale a renegar a essência mesma do movimento, e desistir de toda transformação, em troca da posse do poder. Ora, o movimento vitorioso a 7 de abril fazia-se em nome de uma soberania nacional e democrática, que o Brasil pedia desde 1821, e jamais obtivera. Organização nacional decidida a subsistir, esta pátria era explicitamente uma complexidade de interesses solidários; se o momento político foi tal que esses interesses se concentraram, todos, em combater ostensivamente o regime governamental e a respectiva política, é que havia no Império, instituído em 1822-23-24, vícios essenciais em formal oposição com a vida mesma da nação; a crise não podia ficar em terço, ou em décimo, de solução... 

Esse foi o quarto grande desastre, o maior deles, esforço do Brasil para ser brasileiramente livre: imigração do Estado português, derrota de 1817, independência com o Bragança, revolução de 7 de abril empolgada pelos moderados. A vitória realizadora, numa revolução, depende de serem compreendidas as energias brutais que se desprendem da agitação aparentemente cega, pôr-se a par delas, controlá-las e ajustá-las. Chama-se a isto conduzir a revolução; mas, para tanto, é mister não na temer; deixar que ela se manifeste e se expanda. É o mesmo processo do bom educador, para com a criança cuja índole quer conhecer, para bem aproveitar os seus pendores naturais. Lembremo-nos de que a condição do momento era tal, nesse abril de 1831, que, nota Armitage: “Os insultos dos portugueses a Evaristo da Veiga deram-lhe popularidade acima do que era de esperar...”. É o mesmo historiador que aponta como defeito supremo do imperante deposto – o nunca ter sido brasileiro. Com tudo isso, demonstra-se que havia motivos profundos e desenvolvidos para essa formal oposição – brasileiro-português. O partido português definia-se como conservador e reacionário; o brasileiro, liberal-democrata. O Império era combatido explicitamente por ser expressão do portuguesismo, em vista do partido que ostensivamente o defendia. Aí está a significação concreta dos motivos que opunham – brasileiro e português. 

No Império se fundiam, para os brasileiros, os dois tradicionais inimigos da sua liberdade, e o português era execrado, não tanto pela sua nacionalidade, como por ser o ostensivo sustentáculo do regime imperial. Por isso mesmo, desde os primeiros dias da oposição a Pedro I, houve uma intensa e forte propaganda pela república; houve, mesmo, conspiradores, e dos mais eficientes, que, explicitamente, tramavam a eliminação da monarquia – como condição de liberdade para a nação brasileira. 

Desta sorte, se houvera, nos moderados, qualquer mediana capacidade política, assistida de sinceridade, eles teriam compreendido que a solução da crise estava no sentido das aspirações em que se exaltavam os nacionalistas, e, nunca, em procurar contê-los, dominá-los e anulá-los... Infelizmente, na falta de verdadeiros dons, os oportunistas de 1831 exploraram a sensatez: aproveitaram as posições em que se achavam empoleirados; enfronharam-se cada vez mais em moderação, e dela fizeram o balão em que se mantiveram elevados contra os verdadeiros democratas. É bem de ver que uma reforma legitimamente liberal, em que se remisse o Brasil maculado pelo bragantismo; isto era incompatível com a crosta de sensatez de que os moderados fizeram o seu mérito. Havia, entre eles, democratas de essência, um Ferreira França, que propôs, como deputado, a federação e o estado leigo; havia quem estivesse pronto a apresentar projeto declarando Pedro I incapaz de governar... Mas a crosta da sensatez nula em compostura vazia teve como efeito imediato deixar subsistir o influxo dos José Clemente e Vilela Barbosa, que, completados pelos Araújo Lima, Calmon e Hermeto, conseguiram suplantar todos os avanços do Brasil – para a liberdade e a democracia. Sendo de agitação revolucionária, aqueles dias foram, no entanto, o triunfo do bronquismo estéril, em que a solenidade dos modos e a sensatez das falas encobriam a covardia das atitudes e a nulidade das ideias. 

Armitage enfileira Evaristo com os revolucionários conspiradores, mas o Sr. Pereira da Silva afirma que, mesmo quando a revolução já gritava no Campo de Sant’Ana, “Evaristo, Carneiro Leão e Paim propuseram que se resistisse à revolução, porque da sua vitória resultariam a queda do imperador, a ruína das instituições... Alguns declararam-se resolutamente pelo movimento em marcha iniciado, ansiosos de expelir D. Pedro do solo brasileiro, como português que era, e não tardaram em retirar-se da reunião, dirigindo-se para o Campo de Sant’Ana... Os que se conservaram, assentaram em colocar-se a sua frente, para encaminhá-lo no sentido de salvar as instituições (o Império dos marqueses)... No Campo, uns queriam marchar contra os paços de São Cristóvão, e arrancar a coroa ao imperador, e falavam num império federativo; outros, mais adiantados, apregoavam, já, a necessidade de uma república”. Estas linhas, que resumem o noticiário da época, demonstram que o movimento não foi obra dos parlamentares, em conciliábulo, apenas, quando a revolução popular já estrugia na praça pública; que, mesmo dentre os parlamentares, havia quem fosse pela revolução completa – até a república; que o creme dos moderados – Evaristos, Hermetos e Pains, só vieram para revolução no intuito explícito de salvar o Império, aproveitando-a quanto possível como vantagens pessoais... Armitage, bem informado, confirma esse resumo. Estava indeciso o clube dos conspiradores – Valongo, chácara de França Leite – se, “no caso de cair D. Pedro, deveria instaurar-se a república, se a monarquia constitucional.101  Venceu este último alvitre, e que consistiu em, deposto o imperante, substituído por uma regência, substituir-se o ministério de 5 de abril pelo que havia sido demitido; isto é, transformaram uma convulsão triunfante numa acomodação de sisudos, acovardados em face do futuro, Trinta anos depois, O Constitucional ainda abafa a revolução em sensatez: “Em 31, o Império, prestes a descambar, foi salvo por um milagre, à beira do abismo...”


101 Op. cit., pág. 216.


Os historiadores de profissão, a serviço do Império, foram unânimes em acentuar que senhores do poder, os moderados deram todo o seu melhor esforço em impedir que a revolução fosse ter ao seu desfecho lógico. O partido moderado, diz um Macedo, “não abusou da vitória: com os maiores esforços conseguiu debelar facções e manter o sistema monárquico... A nobre abnegação do primeiro imperador; a gloriosa e nobre dedicação do partido liberal, puderam salvar a monarquia...” À parte glórias e nobrezas, ainda há muito que deduzir desse ativo: o partido liberal dos Hermeto e Evaristo desfrutou a vitória; mas a energia para a conquista dela, essa, foi bem mais dilatada, e profunda, e eficaz, do que o que eles poderiam dar: a batalha foi ganha pela nação. Um Sr. Moreira Azevedo é mais elucidativo, ainda:

... uma revolução tão importante... produziu grande abalo; agitaram-se os espíritos, excitaram-se as paixões e revolucionaram-se os ânimos. Acharam-se, em pouco tempo, divididos os vencedores de 7 de abril, formando dois partidos, o exaltado e o moderado. Assumira este o poder, sustentado pela grande maioria da Câmara dos deputados... Desejava o partido moderado que as reformas fossem operadas lentamente, pelos meios legais...

Em verdade, raramente se encontrará mais profunda injúria ao bom senso que esse programa – da gente que se valorizava pela sensatez... Avançaram e alcançaram o poder na vaga de uma revolução, e, uma vez empoleirados, fortificaram-se – a exigir que os intuitos da revolução se realizassem legalmente... E, por isso, o mesmo Moreira Azevedo não mede elogios aos homens da moderação, ordem, legalidade... Na conjuntura, a política dos moderados se aquilata pelo proceder para com o velho democrata e patriota Cipriano Barata. Logo na primeira proclamação da regência provisória, pela pena emoliente de Evaristo, lá vem o jato flácido e resfriante: “... devemos temer de nós mesmos, do nosso entusiasmo, do amor pela liberdade...” E haja: “... moderação depois da vitória... Sejamos amigos da ordem... a lei começa a reinar... esperem tudo das autoridades que a exercem...” As mais falas que se sucedem são apenas outras tantas glosas dos motivos – moderação, legalidade, ordem, paciência, autoridade... Esse empenho em moderar as aspirações e legalizar a revolução teve, necessariamente, o efeito de provocar censuras... logo seguidas de manifestações impacientes: eram revolucionários vitoriosos, depois de uma longa campanha, que traziam um programa novo – de liberdade, democracia e justiça, e a quem se respondia com sensatez e longas objurgatórias contra essas mesmas aspirações, Os historiadores insuspeitos pelo porfiado bragantismo, canonizando o moderatismo, não acham outros elogios: “... um governo regencial provisório de três varões respeitáveis e uma proclamação dirigida ao povo no sentido de serenar os ânimos, e reprimir as paixões e arrebatamentos exaltados, que deveriam necessariamente derivar-se do evento extraordinário...” Esta é a primeira constatação, da primeira página, do livro do Sr. Pereira da Silva – De 1831 a 1840. Sente-se bem que o intuito do historiante é sublimar o que lhe parece mérito. Por isso acentua a qualidade – varões respeitáveis, pois que pela sua curta visão não passa o reparo de que varões respeitáveis não realizam obra revolucionária. Depois disto, como esperar que o historiador da Fundação compreenda o erro de reprimirem-se “movimentos que necessariamente derivam-se...” E seguem-se duas linhas, que formam o melhor comentário do caso: “Os ministros trataram de publicar, urgentemente, as providências apropriadas para repor a sociedade no seu estado normal, como se um grande choque moral e material não lhe houvesse abalado os alicerces...” Por desgraça do Brasil, os moderados repuseram as coisas, tanto que, antes de dez anos, tudo estava pior do que nos dias de Pedro I. Nem podia ser de outra forma: um ano depois da vitória de 7 de abril, o moderado Bernardo de Vasconcelos perorava: “Convém, sobretudo, dar garantias perfeitas à ordem pública e extinguir o espírito revolucionário...” As garantias foram dadas, o espírito revolucionário se extinguiu, e o mesmo Bernardo de Vasconcelos pôde orgulhar-se de haver feito o regresso... Aos indiferentes, a situação se simbolizará na clássica imagem – patos chocaram ovos de águia, e abafaram os recém-nascidos apenas os reconheceram... facciosos, anárquicos, desordeiros... sob as asas dos patos.102


102 Natural, necessário, popular... aqueles movimentos pós 7 de abril se caracterizavam pela espontaneidade: “Não há direção no movimento, ele sai dos quartéis acendido pela paixão de uma coisa que ferve em muitos corações, mas não é orientado e prevenido...” O general que atacou os farroupilhas foi o mesmo “Manoel de Morais, o mesmo que servira a D. Pedro para fechar a Constituinte de 1823”. (Gonzaga Duque, Revoluções Brasileiras, pág. 150).


As páginas transcritas, com toda a sua pesada autoridade, patenteiam que, a 7 de abril, os moderados teriam impedido a revolução, se o pudessem, e só entraram nela para frená-la, aproveitar as posições, e reduzir as reformas necessárias ao mínimo, ou a nada. A parte viva da nação, vibrante e intransigente, reclamou vivamente, em repetidas manifestações, bem populares nos históricos farroupilhas, manifestações que foram outras tantas tentativas de realizar a revolução vencedora. A isto, grasnaram os patos, tachando o momento de motim, facção, desordem, anarquia... ao mesmo tempo que tratavam de passar a caudal da revolução para as botijas do parlamentarismo, ainda incerto e já serôdio. Em face à caudal que se derramava, Vasconcelos, já trôpego nas suas pernas de tabético, bradava o monstruoso – É preciso extinguir o espírito revolucionário... Fora possível fazê-lo, sem extinguir, também, na política brasileira, toda a capacidade de orientar-se por princípios, e de mover-se para ideais?... Como falar de legalidade e ordem naquele momento?... Os próprios historiadores votados ao moderatismo no-lo demonstram: “... havia ansiedade por essas reformas – abolição da vitaliciedade do Senado e do conselho de Estado; o regime federativo, a difusão do ensino... até a separação da Igreja do Estado... até a extinção da monarquia...” Tudo isto tinha sido objeto de projetos. Havia “amor febricitante da liberdade”, continua esse historiador: “Apesar da energia do ministro da justiça... para prevenir e refrear sedições e tumultos, havia exasperação demasiada nos espíritos, impaciência rancorosa nas classes mais ínfimas do povo...”. Como não ser assim, se uma das medidas de ordem foi a prisão dos jornalistas radicais, de que resultou fecharem-se os jornais republicanos? É da mesma página:103


103 “Sendo preso (em 1832) um jornalista republicano, o redator da Matraca, os demais órgãos republicanos fecham as oficinas com temor das perseguições”. (Gonzaga Duque, op. cit., pág. 156).


Exasperou-se o partido exaltado... e entendeu que cumpria repetir a revolução de 7 de abril, que mais feito seu fora do que do moderado, que o monopolizara em proveito seu. Não se acalmara o partido exaltado com a adoção de reformas constitucionais pela Câmara dos deputados; considerava traída a causa da liberdade logo que ficara a sua promulgação sujeita definitivamente à legislatura vindoura...


Isto é, as reformas reclamadas ficaram sujeitas à aquiescência do senado dos marqueses, que, sem reservas, as condenou, e anulou, assim, todo o esforço da revolução. Destarte, justificam-se plenamente os movimentos dos radicais, de 1831-32, empenhados em dar realidade ao 7 de Abril. 

Os moderados não deram satisfação aos reclamos da nação; a derrota e o esmagamento dos exaltados reverteu em vitória para o senado dos marqueses, e, sendo o sacrifício da democracia brasileira, foi, ao mesmo tempo, o definitivo aviltamento da atividade parlamentar, convertida em suja politicagem. A coisa vai, de pronto, a um tal estado de degradação, que um pobre de ideais, como o mesmo homem da Fundação, não pode contemplar a política vencedora e dominante nos dias subsequentes, sem lembrar, saudoso de luz, os dias salubres – de 1827, 28, 29, 30, 31, 32. “... em que havia luta de ideais, incitação de amor pela liberdade... em oposição ao – desmantelo dos partidos em 1834... pouco mais de três anos haviam decorrido, e já, todavia, não se viam as mesmas paixões, os mesmos entusiasmos... Lutara-se, na primeira fase, com o ardor juvenil e pujante que incitam as ideias...”104  Foi bem o triunfo dos patos. Era tudo isto, de fato, o que havia; e, à nação, assim exaltada e anelante, apegaram-se as lesmas da moderação, iludindo-a com as promessas de reformas que não podiam, ou não queriam fazer. Iludiam-se a si mesmo, os mais honestos, julgando-se capazes de, numa crise revolucionária, mas em contrário à revolução, com as peias dos processos parlamentares, realizar aquilo mesmo que levara a nação a apelar para a revolução. Anárquicos, facciosos... os radicais de 1831-32: mas, que pretendiam eles? É ainda o Sr. Pereira da Silva quem o assinala: “Pretenderam, os mais saturados de radicalismo, que o povo promovesse por si as reformas das instituições, caso as desejasse alcançar, porque dificilmente, e só incompletas, as decretariam as câmaras, formadas, a do senado de espírito retrógrados, e a dos deputados de membros ainda eleitos sob o regime antecedente... A obra da revolução não se podia cifrar no fato da simples mudança de imperador. Não podia o povo continuar sujeito à constituição outorgada, como presente de senhor a escravo; carecia de proclamar outras, que fossem obra de novos mandatários, eleitos


104 (De 1831 a 1840, págs. 33, 35, 37, 149 e 153).


especialmente fossem fazê-las”. Para exaltados revolucionários não poderia haver linguagem mais justa, nem mais ponderada. Mas os moderados, que já eram, todos – deputados, e estavam no poder, não quiseram abrir mão da posição em que se encontravam, nem correr os riscos de uma eleição, em que se elegeriam muitos dos exaltados, até então propagandistas livres. E opuseram-se aos intuitos dos adversários com todo o peso do respectivo moderatismo: “Sustentavam, os mais prudentes, que tudo se conseguiria, legalmente, das câmaras que funcionavam, independentemente de novas eleições sem ser preciso sair fora da lei...”105 Ora, a Nação sabia, sabiam-no os moderados – que uma dessas câmaras, o senado, nunca daria as reformas pedidas, uma das quais era a extinção da sua vitaliciedade... E foi com esse critério que, através dos Araújo Lima, Hermeto, Rodrigues Torres e Calmons, se resolveu uma crise decisiva na organização do Brasil soberano. O povo que aclamara o imperador, e, numa revolução, depusera a esse soberano, obrigando-o a abdicar, não podia, no mesmo movimento – depor as câmaras declarando-as dissolvidas, a eleger outras, que, na inspiração do momento, viesse realizar concretamente a obra da revolução!... Seria sair fora da lei... como se ele o povo, não houvesse começado – por sair da lei... É tanta a incongruência que a estupidez, só, não basta para justificá-la: devemos contar com a má-fé, também.


105 Pereira da Silva, De 1831 a 1840 . cap. I.




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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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Download Acesse:

http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-i-manoel-bonfim/


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Leia também:


O Brasil nação - v1: § 21 – Revolução deve ser revolução... - Manoel Bomfim





terça-feira, 24 de janeiro de 2017

histórias de avoinha: o gosto do curação na boca

mulheres descalças


o gosto do curação na boca
Ensaio 96B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


tava atucanada com as palavra de defuntu da siá. num sentia pena. ela tumbém num sentia pena do corpo pretu escravizado. num ficava cismada de sabê nada das marca no espritu qui tá no corpo escravizado. podia experimentá os lamento do corpo da siá, mais ela num queria sabê do sabô qui tá sempre na boca da preta. nada importa pra siá, a dô e o gosto da dô só afeta a siá se é a dô qui ela sente, vive e sofre. o mundo precisa sê mundo pra ela vivê. precisa do mundo como ele é. num qué sabê de mais nada qui ela mesma. purisso num adianta dizê do gosto qui sobe do curação, ela num escuta e num faz vontade pra escutá

os pretu chora os desatino dos branco e precisa escorá u espritu nas reza, nas cantoria, nas história de avoinha, nos requebro-requebro e agitação do bailado: só assim us pretu num sucumbe a dô da carne atormentada, difamada e rasgada. num tem onde fazê queixume na villa, os pretu precisa da mata e dos espritu livre onde as mão vaidosa e malvada dos branco num entra. isso num pode sê pra toda vida, preciso fugí. deve tê um lugá bão e solto e vazio de dono esperando sê achado. chega de vivê sem gosto de vida

vô procurá ààbó, abrigo prus pretu

tem veiz qui é tanto gosto do sangue na boca qui a boca num dá conta de engolí, ela se derrama nas costa açoitada, nas mão rasgada, nos pé atravessado dos espinho. na estrada dos branco eles num qué vê além da mentira qui cada um inventa pra num vê tanto do sangue derramado. e pru qui tanto trabáio pra num vê? pra num precisá se perdoá

vai sê preciso muntu tempo e munta vontade pra oiá as corrente e o rabo de tatu sem vontade de usá nos pretu. num sei se vô tê vida pra vê a vida sem corrente, sem rabo de tatu, sem siá , sem siô, pra sempre ninguém mandá em ninguém, aiyé ore

vida e bondade pra tudo qui é vida, pra tudo qui cuida da vida

é só colocá o nariz na janela pra sentí o uso da pedra da infâmia e vê as mancha escura do sangue derramado nas rua. só pelo esquecimento malvado alguém pode querê prus pretu uma vida assim, só pelo esquecimento desalmado alguém pode esquecê a zoada do rabo de tatu esfarelando as costa dos pretu, só pelo esquecimento fingido alguém pode negá ajuda pra voz qui lamenta: aiaiai

os branco num é surdo, eles escuta música, recita os verso, discursa; eles num é cego, gosta das pintura, aprecia a beleza das rôpa, mais num sabe falá com as árvore nem com as mata: gosta de derrubá tudo e abrí roça. num reconhece os chá, só vê milho pela frente. num viu qui as água do sangue entrô no chão da terra e enraizô os baobá na villa pelo tempo qui durá a vida. num tem vento, num tem dilúvio, num tem catacumba qui arranca a boca do baobá do chão e as perna do céu

Agarra! Agarra o negro!

Onde?

Ali, correndo...

Ele está fugindo!

Coloca a mão no safado!

as rua ficô no maió alvoroço. a siá maria carolina voltô pra janela. eu e ela ficamô pendurada no resguardo qui apara os peito. a villa risonha do povoado de roça tava com os dente arreganhado. cada um com os motivo qui tinha, cada um com os esquecimento qui queria tê

num sabia dizê se aquele povoado era risonho ou búburú

senti vontade de colocá os calcanhá pra direção da cozinha, meu meió lugá de tá. lá é otro jeito: é o meu jeito e o da tiana. ficá na janela num tinha sentido. duas muié sem fortuna na janela

mais a resolvi ficá

escolhi vê pra num escutá mentira

a verdade dos branco é uma invenção qui ele qué qui os pretu escute, otro disfarce pra mandá: uma coisa boa eles faz parecê ruim, assim despista a verdade e faz otra verdade com a mentira, uma máscara pra ajudá o esquecimento

as rua tava nervosa, medrosa e curiosa, É nisso que dá deixar esses negros a Deus dará nas ruas, num oiêi nem de lado, tanta raiva tava subindo. a siá semeava com facilidade a verdade dela. o caminho da siá tinha munta máscara

passô do otro lado da rua, bem atrás da liberata e do tabulêro, indo na direção qui um quiotro apontava, um hôme qui só podia tê saído das imaginação da siá maria carolina. o perseguidô tinha a cabeça dum moringue, parecia a pintura da ruindade

nem precisava vê de perto pra sabê qui andava apressado com o sobrôio carregado e o rabo de tatu na mão. tumbém apressado, ia junto um pretu taludu, mais meia passada atrás; parecia sê a guarda do rabo de tatu. num dava pra sabê se eles queria removê u pretu da vida ou só dá punição e depois acorrentá, mais os passo dado era pra cercá inté u pretu cansá

o moringue, no dizê da siá maria carolina, já sofreu uma qui otra derrota desde qui corre atrás dus pretu qui foge. gosta do ataque da surpresa quando um pretu precisa pará pra respirá meió e lambê as ferida

o pulícia moringue gosta do estilo da emboscada. a siá fez pôco caso dele, mais essa preta num faz. oiando do aparapeito, ele pareceu sê muntu perigoso prus pretu. inda vai matá muntu pretu fazendo uso da emboscada

a vozearia se cruzava

parô tudo

só num parô meu curação, corria disparado junto du pretu. ninguém comprava nem vendia. uns hôme corria atrás du pretu, otros caminhava, e tinha os qui apostava contra ou a favô du pretu fujão

a favô du pretu pagava muntu: ninguém creditava qui ele fugia pra longe da villa. contra u pretu num pagava muntu, mais era retorno garantido. as aposta contra num era tudo a mesma. as contra u pretu qui pagava menó ganho pro apostadô era o moringue trazê u pretu amarrado pra sê humiado e castigado, essa aposta num tinha enguiço, purisso pagava pôco. tinha os qui apostava qui u pretu ia sê morto; otros apostava qui ia sê ferido e num ia pagá o castigo de costume no pelôinho

guerra, peste, escravidão, tudo matava sem a dona morte pedí, mais só tinha aposta e divertimento quando u pretu escapulia das corrente. o cemitério dus pretu foi ficando maió qui o lugá de guardá os defunto branco, Essa Villa não é o berço da vida, é o fim do mundo! Aqui, parece que as pessoas não sabem que existe o mundo que funciona, aqui nada funciona. Não conseguem prender nem um negrinho corredor. Até no porto, se é que se pode chamar assim, os vapores da Capital só nos chegam duas vezes por mês, e levantemos as mãos aos céus.

a villa num tava do seu jeito mais risonho, a siá num tava do seu jeito mais beato, tava com as presa se mostrando. as muié caminhava ligêro pro otro lado da correria, elas num piscava entre os passo miudinho qui dava; de rua em rua, virava pra trás, só pra garantí qui num tinha nehum pretu lhe seguindo

os lerdo e os sonolento tava do seu jeito mais risonho, é o jeito dos desinformado, os pescoço espichado sem sabê bem o qui tava se passando oiava na direção da correria, Esse lugar foi feito para sermos infelizes, a siá mirô no qui viu e acertô no qui num qué vê, nesse lugá é preciso tê chifre e presa aguçada pra vivê no rebanho qui se disfarça de gente beata

gente qui usá falá nas costa e usa as máscara das reza qui num leva à nada mais qui complicá esse deus dos branco escravista, qui ficô refém e cúmplice de tanta maldade, Peguem ele... peguem o negrinho, murmurava a siá. um pretu todo esfarrapado e machucado corria tropeçava e bum: batia as mão no chão – corria tropeçava e bum, procurava as água do rio

eu grudei as mão no aparapeito e murmurei as palavra dos chamamento da cavalaria qui lembrava. naquele nervosismo engolia munta das palavra qui pedia proteção, aya nini, proteção, àwé, amigo, ara ìlú, conterrâneo

os cão da rua, os cacete, as bengala, tudo no alcance do uso, os grito, os latido, a igreja, os badalo qui avisava da morte ou do nascimento ou dos perigo – pretu se chegá sê véio num vai vivê da saudade

num sei duma casa qui num tem escravo pra mostrá qui tem. ai du pretu qui num é amável e leal com os dono da corrente e do rabo de tatu, Nesse fim de mundo não se tem pressa nem para correr atrás dos negrinhos fujões, podia e devia tê escutado as resmungação e penitência da siá sem agitação na língua, mais num consegui escorá a boca fechada e junto perdi a cautela, desapeguei do silêncio

Num fala assim, siá. A Villa é a capital da província.

ela soltô um riso qui num tinha nadinha de alegre, só desespero na vida sem saída daquela vida minguada qui tinha: num fertilizava a terra e num explicava o qui ela mesmo era: uma muié infeliz e entrevada, incapaz de sê diferente; uma muié aparcêrada prum bem e muntu prum mal com o siô pedro francisco

uma muié com regalia, mais sem a lambiscaria do seu siô. essa parte da vida parece qui foi banida da sua cama. ela caminhava pra trás na direção da selvageria bondosa, carente duma razão pra existí – reprova lamenta acusa muntu pra se daná do pôco qui tem, o silêncio, Capital da província mais pobre e marginalizada, isso sim, longe da Côrte Imperial. Lugar de muito calor ou muito frio, ventanias ou mormaço, alagamentos ou poeira, lugar sem alegria, sem cantorias e sem marido... e sempre em guerra com os castelhanos.

Ora iêiêo Oxum

Rainha qui consola

Ora ieieô

qui pelos fio tumbém chora

voltei atenção pra fora da janela. as mãe num conseguia segurá os fio em casa, os piá queria tá na caçada. um chamava otro pra cercá acuá cuspí jogá terra nu pretu. o ódio ensina prus piquininino deixá devargazinho de gostá da vida pra gostá da morte. os maió ensiná os menó a ilusão qui matá vai fazê eles vivê meió. e os menó aprende num se importá com a vida qui num seja a vida pra vivê pra eles

Pegaram!

Onde?

Pegaram!

Onde?

No trapiche...

os grito da rua chacoaiava as parede do quarto

Cadê Xangô... cadê Xangô

o curação piquininino

Amassa teu pão

constroe tua morada
luta, mesmo qui fracassá

a vontade de chorá esfriava as mão

Pretu quando apanha
chora e canta
fazendo do chicote
sua reza
um toque
de libertação

e as água dos óio escorria na ponta dos dedo

Bate asas, manto negro
o mago é Exu Morcego

u pretu era arrastado chutado chicoteado cuspido. vinha enfiado com o pescoço e as mão na canga. sangrava. desabava. os joêio com pedaço pendurado

era muntu pôco pretu pra tanta gente

uma preta véia chegô perto e deu água. ele num tomô. o moringue chutô a preta e a água. otro pretu se chegô perto quando ele desabô otra veiz, e com as mão calejada secô o suó de sangue. o moringue num viu, gritava pra toda villa qui eles precisava passá; mais u pretu taludo viu, se num viu fez qui viu e se viu fez qui num viu

Olha, Milagres! Vão passar com o negrinho safado, bem aqui. Crucifica-o!

num pude mais oiá, voltei os passo pra sombra da janela. o curação piquininino. uma vontade de chorá qui esfriava as mão inté escorrê as água dos óio, a ponta dos dedo pingava o mesmo gosto da boca qui chegava do curação. os pé encrespado, fincado no chão das tábua

o moringue gritava

Não conheço nenhum negro santo! E negro fujão se precisar ataca as mulheres e depois mata!

a siá num oiô duas veiz pra dizê, É perigoso ficar na janela. Esse precisa ficar preso para sempre e trabalhar acorrentado. Nada de ficar deitado esperando o tempo passar.

a villa risonha continuava com as presa arreganhada

É preciso arrancar o mal pela cabeça!

Negro bom é negro morto!

Eu estou com medo, meringue! Segura bem esse negrinho!

era muntu pôco pretu pra tanto ódio. os grito na villa num parava. a siá debruçô no aparapeito depois qui o cortejo passô e gritô, Não precisa matar! Marca e devolve para o dono!

saiu da ponta dos pé, satisfeita com o bão consêio dado, colocô os calcanhá no chão das tábua resmungando, Afinal, o dono do negrinho não pode ficar com o prejuízo.

Mais u qui u pretu fez, siá?

Não sei... isso interessa?

queria fazê ela fechá a boca, tava no ponto de mandá ela calá a boca. oiava pra siá maria carolina, ela num se oiava, parecia otra muié: forte, ruidosa, berrante, afiada, corpulenta, agitada. mexia a garupa dum jeito qui parecia tá no mexe-remexe-mexe da cama com o siô pedro – qui as mania desse eu conheço –, provei o ciúme de pensá aquela branca com o meu hôme. provei o sabô – mesmo contragosto – de pensá o pedro mais hôme meu qui dessa siá

dei dois passo e empurrei ela do meu quarto, deu uma volta nela mesma enquanto tentava segurá na ventania pra num caí. oiô pra mim e puruguntô pru qui ela precisô morrê, se eu nunca ia sê uma baronesa, Você nunca vai ser eu, vai ser sempre uma negra descalça!

Ouviu, Milagres? Pegaram o negrinho fujão.

Num fala assim siá...

ela recuô da janela, lá fora as rua continuava nervosa, os grito os choro os aiaiai, as pessoa caminhava nos entido contrário do curação. a siá procurava serená o espritu. fechô a janela pra abafá os aiaiai

Vou para o meu quarto rezar.


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quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

histórias de avoinha: cada pretu é um baobá

mulheres descalças


cada pretu é um baobá
Ensaio 95B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


a siá dona de quase tudo e qui durumiu apartada do marido continuava vazia e parada no mesmo lugá da porta aberta. no quarto do siô pedro francisco num se rezava, mais munta veiz se blasfemô. a boca da siá maria carolina tava rachada na vontade de blasfemá ou rezá. os óio odiava, mais fingia qui num odiava. num podia odiá de frente, aprendeu odiá de lado ou pelas costa. uma muié na posição qui ela queria tê num diz o qui pensa nem o qui sente. os ouvido espera as resposta pra purugunta qui nunca faz. parecia uma cobra toda enroscada esperando um descuido pra fazê alguém pagá sua danação e desapontamento

oiava oiava e oiava, a cabeça erguida, a respiração toda retesada, parecia querê tê mais certeza das desconfiança. queria atá as ponta dos pensamento cismado: oiô a trôxa branca com as rôpa usada da cama qui ela quis usá e num usô, e qui ninguém se atreva dizê qui foi falta de capricho ou animação de querê menos da siá. ele fez gosto e se preparô pra experimentá o gosto. ficô com a vontade qui num foi comida

a trôxa branca toda embolotada feito um caroço. era só desatá o nó pra vê o qui foi feito na cama do siô pedro, mais precisava tê atrevimento, birra e valentia pra desatá a trôxa branca e atá as ponta dos nó das desconfiança. suportá vê e sentí o faro. falá em fazê é fácil – falá sempre é mais fácil qui fazê. fungô fundo, preparô uma cara feia pra despachá tudo qui precisava despachá, soltô a ventania presa nos peito redondo e piquininino, ventos proféticos no jeito de vê da siá, Este quarto está catinguento! Abra bem a janela!

e foi isso

é verdade, o quarto num tava com os chêro da flô do campo, chêrava baobá: o suô e o gozo da vida qui esparrama os nome e as crença da terra com as raiz livre do otro lado da estrada das água. cada baobá é as semente qui veio trazida sem querê – à força – pra saciá a sede da maldade, egoísmo e preguiça do lado de cá

os baobá no começo num queria tá aqui, num queria sê daqui, num queria espaiá as semente e os sabê dos pretu livre: cada pretu é um baobá, cada preta é uma baobá, qui insina as dança, bafeja as cantoria, inspira as reza, festeja a vida com as contação das história dos véiu prus piquininino

as gente qui qué aprendê as história do baobá precisa colocá atenção de escutá com os ouvido no chão purqui o baobá tem a boca na terra e os pé no céu, mais isso é otra história e se o baobá querê ele mesmo conta. ele nunca faz os pretu esquecê – só esquece quem num qué lembrá – ele faz os pretu durá

eu sô uma baobá qui vai durá

as parede do quarto ainda parecia tá amarrotada com os aperto das mão nas carne das coxa preta. a sobrecama ainda tava arrepiada com as mordida no pescoço. o colchão das pena de ganso ainda tava moiado do suô e das chupada do trepadô dono de tudo. afobação, tremura e descuido obrigava o quarto do siô pedro gozá muntu ligêro, Não descola o rabo... não descola... negra do diabo... não descola o rabo.

ainda sentia as dô da força maió qui a necessidade. muntu mais força qui vontade

desapertei os braço e desagarrei da rôparia nova sobre a cama. fui inté a janela e abri toda qui dava. lá fora, tava a povoação de roça, o trapiche dos barço, oiêi prus lado da arsenal, depois pru portão, as ponte sobre os arroio piquinino qui cortava a villa levava e voltava de gente. os lampião com azeite de peixe apagado. uma qui otra carreta de boi já cruzava as rua. nehuma cadêra piquinina de carregá gente rica da villa – a povoação é de roça, mais tem gente rica qui vive das desgraça dos pobre. aproveitadô num falta em todo lugá. os salcêro na beirada do rio, os maricá e as unha de gato. as rua suja. ninguém se importava em limpá ou num sujá. o calô muntu forte nos tempo de calô, faz ocê se derramá em suô; o frio muntu gelado e moiado nos tempo do frio, faz ocê se rachá e adoecê de tosse

a preta com o tabulêro nos raro calçamento do lado de cá da villa. o piquininino sentado nos degrau da pedra da infâmia. as pessoa num parava de saí e chegá pelo chão da terra qui escorava o peso de tudo

Ocê viu quando o siô meu marido chegou?

Antes do toque do silêncio...

Graças à Deus, deu um suspiro de alívio comovido, Ele já saiu? Tomou o café da manhã?

continuei oiando pra fora da janela, ela oiando pra dentro do quarto. cada uma com os seus engenho de agitação, agonia e sofrimento

ainda num tinha visto a preta do tabulêro, já pronta pro serviço de ajudá, tão antes do dia acordá todo. já tava o lugá de muntu vai e vem. as pessoa passava oiando e num puruguntava nada. as veiz, de quando em veiz, uma qui otra parava e pegava nas mão os chá. depois puruguntava e escutava as palavra da ajuda: u qui fazê, u qui rezá, é bão pra isso, é bão praquilo

ó, veja só isso, milagres... falei pra mim mesma com surpresa e respeito, eu conheço essa visita qui se chegô no tabulêro, essa preta eu conheço: a baronesa! a muié sem casá do barão das arma. essa num é nehuma sombra, essa num deixa sombra, tem mais luz qui as sombra pode escorá

a visita toda de branco dobrô os joêio inté a muié sentada no seu banco. quando chegô perto pra podê falá piquininino, falô e escutô. as duas riu pra cima, pru alto como todo riso da vida deve sê feito, espaiado no vento. parecia qui elas ria aqui da janela. quando parô os riso, a visita inclinô otra veiz pra frente, parecia soprá bem devagá as palavra na dona do tabulêro. quando parô fez siná com a mão prum hôme branco se chegá

o hôme branco parado na distância do resguardo e consideração se aproximô da mesa dos chá e reza. apertei e soltei os óio pra tê certeza do qui tava vendo; era o barão em carne e osso. óia só, uma visitação com muntu valô e reputação pru tabulêro da preta liberata. isso é pra dá inveja nas sombra dos quatro canto da villa

vai tê branco se erguendo dos mausoléu dos cemitério, fedendo gente morta, qui vai dizê bosta do barão. esse num é um lugá pra vivê sem chorá, nesse povoado o qui mais se vê é inveja. num acho qui o barão se importa com o gosto de bosta seca dos mexerico, Escutô, Milagres?

Sim... o siô Pedro saiu cedo. Tomô café na cama junto com o nascimento do dia. Teve um sono muntu agitado, parei as sobra do palavreado na boca. falei mais, muntu mais qui devia. então, depois do leite derramado, coloquei mais cautela e cuidado no silêncio. amaldiçoei eu mesma pruqui falei com descuido

a siá podia tê feito qui num tinha escutado o meu palavrório descuidado, podia tê ficado o dito pelo num dito, mais num fez cara de oiá de cima do morro encantada com a paisagem. puruguntô desconfiada, Sono agitado? Café na cama?

a siá dona de quase tudo durumiu apartada do marido e oiava pru quarto com munta mistura de vontade no coração. as rôpa da cama qui ela num usô embaraçava as duas. queria podê murmurá da minha tristeza. queria podê lembrá qui tava ali sem querê tá, num tava pruqui tinha gosto de tá. queria podê animá essa otra sombra, Siá Maria Carolina... essa rôpa nova qui tá nos meus braço – que já vô colocá na cama – pode tê serventia de uso pra siá

mais num disse nada qui tinha pensado dizê. achei mais meió num cutucá aquela muié com a minha vara piquininina, mais o palavreado qui saiu num tinha mais u qui fazê

u qui eu fiz? o certo. fiz qui num escutei. eu num tinha explicação pra dá nem a siá ia querê sabê das explicação qui num podia explicá. ela acha qui qué sabê, mais num qué. fui pra janela e coloquei as dobra dos braço no apara peito

O siô barão das arma!

O que foi isso, Milagres?

O barão...

O que ocê olha tão interessada desta janela?

dei mais um passo na direção dos fingimento, Ali, ó... no tabulêro da preta Liberata, chegô gente da maió importância.

dona maria carolina desviô da trôxa branca sem oiá, sabia u qui ela carregava, Onde, Milagres?

ela queria um jeito pra não sabê, um motivo pra num vê e continuá o croché ao lado do marido. eu achei o jeito, Ali, ó... a siá tá oiando? apontei pru tabulêro da liberata – qualqué dia desses, quinda num nasceu, eu desço pra pedí abrigo e aconseiamento, ela deve de sabê algum refúgio só dos pretu – e pru barão das arma

Quem?

mirei na liberata e depois na otra muié qui é preta, mais num parece sê preta pruqui tem no vestí as rôpa das muié branca, os sapato chic de usá combinava com o vestido todo branco com renda azul, Tá vendo, siá?

ela espreitava pru todo lado. oia só, o barão tirô o chapéu e se dobrô pra preta

Ali... olhe, atendi sem sabê o qui era pra oiá, Todas as manhãs ela vai e vem nas ruas. Vai até a praça e volta. Cuidando de vigiar tudo. Gente vagabunda e preguiçosa. Aposto que não quer o teu lugar. Trabalhar não querem, coloquei toda atenção no vê da siá, inté qui vi

Num tinha reparado.

Viu? Ali estão as três: a bugra e as indiazinhas... coitadinhas... tão magrinhas... tão sujinhas... espionando por tudo. Escolhendo onde é mais fácil fazer alguma maldade. Viu, agora?

num a respondi, quis argumentá mais num disse um ai, num arrisquei dizê nem mesmo qualqué coisa boba. queria sabê um jeito de provocá o esquecimento. deve sê meió vivê esquecendo todo dia o dia qui se deitô pra durumí. todo dia, um dia novo sem as lembrança do qui passô. quando se tem só coisa ruim pra lembrá o meió é num lembrá pra consegui vivê com as coisa ruim nova

Estão observando as pessoas e as casas. Isso não me cheira bem. Já avisei o sinhô Pedro Francisco...

fez silêncio, num fiz ruído tumbém

acho qui ficô esperando eu puruguntá, E u qui u siô Pedro Francisco falô desse perigo todo, mais num puruguntei, continuei com a atenção fora da janela. num queria chamá o dono de tudo pra assuntação do nosso palavreado. continuamô a encenação das palavra escondida

eu resistia, ela acusava. tudo sem as palavra sê dita pra fora dos pensamento. uma perseguia os passo da otra. uma imaginava, a otra se agitava. uma delirava de raiva, a otra disfarçava... inté qui a siá virô as costa e desistiu da janela, Ele respondeu que vai tomar as providências necessárias.

fiquei assustada com as precaução urgente do siô pedro francisco e a destinação das três bugra pro sossego da siá maria carolina. tava acostumada com o jeito da siá fazê certeza de desconfiança das pessoa qui tá na casa, mais num pensava nas coisa qui vinha depois da desconfiança

voltei as vista pra fora da janela. oiêi na direção do tabulêro. num sabia como terminá aquela visita das duas no quarto do siô pedro. fechei os óio e pedi ajuda pra mãinha, Prometo, mãinha qui faço um ebó bem bunitu nas água do rio, ajuda essa preta saí desse quarto qui num quero tá, juntei as mão e cantei

Aieieu, aieieu balá Oxum...
aieieu balá Oxum,
aieieu Oxum marê!

O que foi isso, Milagres?

a purugunta da siá me tirô do mundo dos encantamento, Nada... siá...

Ocê tava parada, olhando para o teto, em silêncio. Como ocê pode ficar tanto tempo sem dizer nada?

A siá viu?

O quê?

A preta e o tabulêro...

A feiticeira negra?

Não, siá Maria Carolina... uma muié curandêra e rezadêra. Ela cuida da saúde, procura protegê as pessoa das doença do corpo e do espritu. Conhece as erva qui cura e dá conforto pras dô do amô e do desamô.

voltô na janela e grudô as vista na liberata, Se conhece para o bem, conhece para o mal, falô justo no momento qui o siô barão voltô tirá o chapéu pra se dobrá pra preta, Mas que horror! O que foi isto? Fazendo cumprimento que só se faz para uma dama, tirando o chapéu para uma macumbeira! Isso não vai ficar assim...

Óia, siá! Óia, siá!

O quê foi, negra abelhuda? Quase me mata de susto!

É o barão das arma que tá de consulta.

investigô longe com as vista, Esse barão não me merece respeito. Imagine que vive com uma negra. Isso é coisa que o sinhô Pedro Francisco nunca há de fazer.

lá se voltô a siá com a cisma de trazê o siô pedro pro palavreado. desta veiz, num fugí do palavrório dela. oiêi de lado, U qui tem isso, siá? A baronesa Catita num é escravizada. É uma muié libertada.

num virô de lado, continuô oiando na frente, num mexeu nada, só a língua, Ocês nunca serão livres! Jamais serão como as mulheres brancas! Eu juro pelo Nosso Senhor!

podia sentí o seu oiá de munta frieza, Ocês não merecem e não precisam da liberdade. Não sabem fazer nada, precisam serem mandadas... obrigadas! Negro ou negra é tudo vagabundo, se não caga na entrada, pode ter certeza que irá cagar na saída.

acho qui a siá tava gritando com us pretu pruqui tava sem valentia de mexê nos assunto da trôxa branca. os ódio do curação pra uma coisa se espaiava pra tudo, inté qui despertô a boca dum defunto qui dorme, mais sempre volta pra assombrá

mãinha aquietô minha boca com a sabedoria do curação qui ela tem imenso. a muié tava com muntu sofrimento, muntu encosto ruim, se tinha razão pra isso? pode qui sim, se pensá dum jeito; pode qui num tem razão, se pensá dotro jeito

ela dava as ordem, mais num mandava

eu obedecia... inté quando num sabia





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segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

40 Anos Depois da Primeira Aula

Por que eu sou professor?



Em janeiro de 1977 recebi a minha primeira turma de alunos e alunas, 8 e 9 anos, Colônia de Férias da SEC, em Torres, praia do litoral gaúcho. Naqueles dias, não me fiz – se fiz, não lembro – nenhuma pergunta além de querer saber se gostaria de ser professor de educação física.

Bem, quarenta anos depois estou aqui, e me pergunto: Por que eu sou professor? Achei que para encontrar a resposta precisaria de muitas conversas comigo mesmo, aprofundar teorias, realentar outras, reatualizar-me, ressuscitar... mas foi fácil, assustadoramente fácil. Por que eu sou professor? Porque escolhi a esperança. A profissão que escolhi não salva, não cura, não prende, não reza, tem coceiras psicoanalíticas – acredita na proximidade consanguínea com a psicologia –, é a carreira da esperança.

Hoje, eu sei que lá atrás, no tempo, acreditava na esperança para todos e todas; por isso escolhi ser professor na Escola Pública. Acolhi todos e todas, mas o coração sempre esteve junto aos vileiros e vileiras. Ninguém foge do que é sem descozer as próprias carnes. Decidi continuar um vileiro, um professor vileiro: conservei minhas carnes.

Saí da faculdade em julho de 1980 com muitas receitas, chás, panelas vazias – que usei para encher com a Pedagogia do Oprimido, jamais as usei para bater, nunca estiveram vazias de amorosidade – e a determinação de ser outro professor, diferente do professor cardápio e sobremesa, que fui ensinado.

Uma caminhada difícl e que só se constrói na vontade de mudar a si mesmo, antes de querer qualquer mudança no outro. Não se faz esse movimento de arredar e deslocar ideias e práticas sozinho. Precisei da dialética, o confronto das minhas convicções com alguns dos mais intransigentes professores e professoras da rede municipal de educação de porto alegre que lutam na defesa da educação de qualidade, criativa e emancipadora da consciência na Educação Popular.

Precisei aprender a ler o mundo com suas intolerâncias, indiferenças e hipocrisias – e maldades – que tenta de muitas maneiras afastar o mundo das amorosidades batendo panelas, vestindo luto e repetindo mantras egoístas e covardes.

Precisei aprender a ler os livros que nos mudam porque não têm dó nem fingem uma auto-ajuda corporativa e elitista. Precisei largar as martas, os davids, os jabores, esses não entendem os vileiros e as vileiras, e, se entendem, não escrevem para esta parte do mundo que não quer chorar em volta do próprio umbigo - e não podem chorar em volta do próprio umbigo.

Precisei aprender a ler Paulo Freire e a Pedagogia do Oprimido para minha libertação, Gramsci e a teoria da hegemonia cultural para entender o novo sócio do Estado, os meios de comunicação e os seus golpes.

Precisei ser apresentado para conhecer e aprender Antônio Lobo Antunes, Saramago, Pepetela, Agualusa, Machado de Assis, Mayakovski, Galeano, Dostoiévski, Garcia Marquez, Garcia Lorca, Neruda, Bukowski, Lídia Jorge, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Cortázar, Juan Rulfo, Makarenko, Victor Jara, Patativa, Rubén Dario, Paco de Lucia, Mercedes, Gabriela Mistral, Sor Juana Inés de la Cruz, Julia de Brugos a todos e todas “seguirei para sempre, calado e fugitivo, por entre ruas escuras molhadas de nostalgia”.

Precisei aprender parar de chorar. Não foi fácil reconhecer como minhas a realidade dos meus alunos e alunas expostos à indiferença, à burocracia, à violência, à morte estúpida e prematura do sonho.

Não, esses alunos e alunas não precisam da meritocracia – muito útil para quem fica escondido atrás dos conteúdos programáticos, avaliações classificatórias, trabalhos compensatórios e a famosa entrega ditatorial do boletim: Aprovado! Reprovado! Aprovada! Reprovada! – precisam de uma outra escola que não esta, uma escola com esperança.

Mas calma, não comecemos a vender a esperança como um produto televisivo, como qualquer marqueteiro do lucro e do custo benefício. Quero ser, luto para ser um dos professores da esperança em uma humanidade solidária, amorosa, construída com todos e todas incluídas num mundo menos elitista, preconceituoso, autoritário e desigual, por la vida de todos e todas... siempre.

Esse não é um texto de despedida nem carta testamento, muito pelo contrário, é um texto de reencontros com todos e todas com quem partilhei esse caminho de quarenta anos. Pretende ser um grito contra a escola burra, sem imaginação, conformada, militar – os militares têm seu lugar que não é na escola nem em golpes. A Educação Popular não é o jeito da escola decorada: sempre foi assim, somos como nossos pais. A Educação Popular está na sala de aula, mas também, na rua: na pintura de rua, na filosofia das ruas, nas praças, nos parques. O mundo não pode se esconder da vila. A escola que quer ensinar o mundo precisa aprender a vila.

Continuo na luta!


Mauro Marques

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XII

Júlio Verne



Viagem ao Centro da Terra/XII





Partimos com o tempo encoberto mas estável. Não teríamos de nos preocupar nem com calores cansativos nem com chuvas desastrosas. Um tempo próprio para o turismo. 

O prazer de galopar por um país desconhecido deixava-me de bom humor naquele início de aventura. Sentia toda a felicidade, todo o prazer e liberdade de um excursionista. Começava a gostar da viagem.

"Afinal, o que estou arriscando?", dizia-me. "Viajar por um país dos mais curiosos, escalar uma montanha bastante notável, na pior das hipóteses, descer ao fundo de uma cratera extinta! É evidente que Saknussemm só fez isso. Quanto à existência de uma galeria que acaba no centro do globo, pura imaginação! Pura impossibilidade! Vou tratar, então, de aproveitar o que a expedição tem de bom sem maiores problemas".

Quando concluí esse raciocínio, já havíamos saído de Reykjavik. Hans caminhava à frente num passo rápido, igual e constante. Os dois cavalos carregados com nossas bagagens seguiam-no sem que fosse necessário conduzi-los. Eu e meu tio íamos atrás sem nos sairmos muito mal em nossos animais pequenos mas vigorosos.

A Islândia é uma das maiores ilhas da Europa. Estende-se por mil e quatrocentas milhas e só conta com sessenta mil habitantes. Os geógrafos dividiram-na em quatro quartos, e tínhamos de atravessar quase obliquamente o que tem o nome de região de quarto do Sudvesterfjordhur.

Ao deixarmos Reykjavik, Hans seguira imediatamente para a beira do mar. Atravessávamos magras pastagens que faziam o maior esforço para ser verdes; tinham maior facilidade em ser amarelas. Os cimos rugosos das massas traquíticas apareciam no horizonte entre as brumas do leste, e por momentos algumas placas de neve, concentrando a luz difusa, resplandeciam nas inclinações dos cumes afastados. Alguns picos, mais ousados, perfuravam as nuvens cinzentas e reapareciam acima dos vapores moventes como escolhos que emergiam em pleno céu.

Muitas vezes essas cadeias de rochas áridas lançavam uma de suas pontas ao mar e cortavam as pastagens; mas sempre havia lugar suficiente para passar. Além disso, nossos cavalos escolhiam instintivamente os lugares propícios sem nunca diminuir a marcha. Meu tio nem tinha o consolo de excitar sua montaria com a voz ou com o chicote; não lhe era permitido ser impaciente. Não podia evitar sorrir ao vê-lo tão alto em seu cavalinho, e, como suas pernas compridas roçavam o chão, parecia um centauro de seis pés.

- Que ótimo animal, que ótimo animal! - dizia. – Você vai ver, Axel, nenhum animal é mais inteligente que o cavalo islandês. Nada o detém, nem neves, nem tempestades, nem caminhos impraticáveis, nem rochedos, nem geleiras, nada. É corajoso, comedido, seguro. Nunca dá um passo em falso, nunca tem reações inesperadas. Diante de qualquer rio, qualquer fiorde, lança-se sem hesitar na água como um anfíbio e alcança a margem oposta! Não devemos apressá-lo, deixemolo agir, e, estimulando-nos uns aos outros, faremos dez léguas por dia.

- Nós com certeza - respondi -, mas e o guia?

- Ele não me preocupa. Essa gente caminha sem perceber.

Esse daí mexe-se tão pouco que não deve se cansar. Além disso, se houver necessidade, poderei ceder-lhe minha montaria. Logo terei câimbras se não me movimentar. Os braços vão bem, mas tenho de pensar nas pernas. Avançávamos num passo rápido. A região já era quase deserta. Aqui e ali, algum "boër" solitário de madeira, barro e pedaços de lava aparecia como um mendigo à beira de uma trilha vazia.

Aquelas cabanas danificadas pareciam implorar a caridade dos viajantes, e mais um pouco pensaríamos em oferecer-lhes esmola. Naquela região não havia estradas nem mesmo trilhas, e a vegetação, apesar de lenta, logo apagava o rastro dos raros viajantes. Entretanto, aquela parte interior, bem próxima da capital, é uma das porções habitadas e cultivadas da Islândia. Como seriam as áreas mais desertas que aquele deserto? Já havíamos percorrido meia milha e ainda não encontráramos nem um lavrador à porta de sua choupana, nem um pastor selvagem tomando conta de um rebanho menos selvagem que ele; apenas algumas vacas e carneiros abandonados à sua própria sorte. Como seriam então as regiões convulsas, abaladas pelos fenômenos eruptivos, nascidas das explosões vulcânicas e das comoções subterrâneas?

Deveríamos conhecê-las depois; ao consultar, porém, o mapa de Olsen, percebi que as evitávamos costeando as bordas sinuosas do litoral. De fato, o grande movimento plutônico concentrou-se sobretudo no interior da ilha; ali as camadas horizontais de rochas sobrepostas, chamadas trapps em língua escandinava, as faixas traquíticas, as erupções de basalto, os tufos, todos os conglomerados vulcânicos, as correntes de lava e pórfiro em fusão construíram uma região de horror sobrenatural. Já desconfiava do espetáculo que nos aguardava na península do Sneffels, onde os desgastes de uma natureza fogosa formam um caos formidável.

Duas horas depois de termos deixado Reykjavik, chegávamos ao burgo de Gufunes, chamado Aoalkirkja, ou igreja principal.

Nada tinha de notável. Apenas algumas casas, que formariam uma aldeola na Alemanha. Hans parou ali por uma meia hora; compartilhou nosso almoço frugal, respondeu por sim e não às questões de meu tio sobre a natureza da estrada, e quando perguntamos onde contava passar a noite: Gardcir - foi tudo o que disse. Consultei o mapa para saber o que era Gardcir. Vi um vilarejo com esse nome às margens do Hvalfjõrd, a quatro milhas de Reykjavik. Mostrei-o a meu tio.

- Só quatro milhas! - disse. - Quatro milhas em vez de vinte e duas. Que belo passeio!

Ele quis fazer uma observação ao guia, que, sem responder-lhe passou à frente dos cavalos e recomeçou a andar.

Três horas depois, sempre calcando a relva descolorida, foi necessário contornar o Kollafjörd, desvio mais fácil e mais curto do que a travessia desse golfo. Logo entrávamos num pingstaoer, sítio de jurisdição comunal chamado Ejulberg, e cujo campanário soaria meio-dia se as igrejas islandesas tivessem dinheiro suficiente para possuir um relógio. Mas elas se parecem muito com seus paroquianos, que não têm relógios e se dão muito bem sem eles.

Ali os cavalos descansaram. Depois, um caminho entre uma cadeia de colinas e o mar conduziu-nos de uma só vez à aoalkirkja de Brantör e, uma milha depois, a Saurböer Annexia, igreja anexa situada na margem meridional do Hvalfjörd. Eram quatro da tarde e percorrêramos quatro milhas.

Naquele local, o fiorde tinha pelo menos meia milha de comprimento; as ondas batiam ruidosamente contra rochas agudas; o golfo abria-se entre muralhas de rochedos, espécie de escarpa pontiaguda de três mil pés e notável por suas camadas marrons que separavam leitos de tufos avermelhados. Por mais que acreditasse na inteligência de nossos cavalos, não conseguia imaginar a travessia de um braço de mar montado num quadrúpede.

- Se são mesmo inteligentes - eu disse -, não tentarão atravessar. Em todo caso, vou tratar de ser inteligente por eles.

Mas meu tio não queria esperar. Correu à rédea solta para a margem. Sua montaria farejou a última ondulação das vagas e parou. Meu tio, que tinha instintos peculiares, voltou a esporeá-lo.

Outra recusa do animal, que sacudiu a cabeça. Palavrões e chicotadas, mas coices do animal, que começaram a desacorçoar o cavaleiro. Finalmente, inclinando-se, o cavalinho libertou-se das pernas do professor e deixou-o plantado sobre duas pedras da margem, como o Colosso de Rodes.

- Ah, maldito animal! - exclamou o cavaleiro, subitamente transformado em pedestre, e envergonhado como um oficial de cavalaria rebaixado a soldado de infantaria.

Sua montaria foi farejar a última ondulação das ondas. - fuja - murmurou o guia, tocando em seu ombro.

- Como? Uma balsa?

- Der - respondeu Hans, apontando para um barco.

- Sim - exclamei -, uma balsa.

- Por que não me disse antes? Vamos!

- Tidvatten - continuou o guia.

- O que ele disse?

- Disse "maré" - respondeu meu tio, traduzindo o termo dinamarquês.

- Com certeza temos de esperar a maré...

- Förbida? - perguntou meu tio.

- Já - respondeu Hans.

Meu tio bateu o pé, enquanto os cavalos se dirigiam para a balsa. Compreendi perfeitamente a necessidade de esperar a maré por um certo tempo para atravessar o fiorde, quando o mar, chegando à sua altura máxima, estaciona. Então o fluxo e o refluxo deixam de ser sensíveis, e a balsa não se arrisca a ser arrastada para o fundo do golfo ou para o oceano.

O momento oportuno só chegou às seis da tarde; meu tio, eu, o guia, os quatro cavalos e mais duas pessoas acomodamo-nos numa espécie de barcaça chata bastante frágil. Habituado como estava aos barcos a vapor do Elba, achei os remos dos barqueiros um triste engenho mecânico. Levamos mais de uma hora para atravessar o fiorde, mas, finalmente, não houve qualquer incidente durante a travessia. Meia hora depois chegávamos à aoalkirkja de Gardör.






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