sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

22.O Estrangeiro: O meu coração faria o resto - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 5


22. 



  RECUSEI-ME, pela terceira vez, a receber o capelão. Não tenho nada a dizer-lhe, não me apetece falar, tenho muito tempo para o ver. O que neste momento me interessa, é fugir à engrenagem, saber se o inevitável pode ter uma saída. Mudaram-me de cela. Desta, quando me estendo na cama, vejo o céu, apenas o céu. Os meus dias inteiros, passo-os a olhar na sua face, o declínio das cores que conduz o dia à noite. Deitado, ponho as mãos debaixo da cabeça e espero. Já não sei quantas vezes perguntei a mim próprio se havia exemplos de condenados à morte que tivessem escapado ao mecanismo implacável, desaparecido antes da execução e fugido ao cordão de polícias.

Censurava-me por não ter prestado atenção suficiente às histórias de execuções. Devíamos interessar-nos sempre por estas questões.. Nunca se sabe o que pode acontecer. Lera, como toda a gente, reportagens sobre o assunto. Mas havia com certeza livros especializados, que nunca tivera a curiosidade de consultar. Talvez aí eu pudesse ter achado narrativas de evasões. Poderia ter sabido que, pelo menos num caso, a roda se tinha detido e que, nesta irresistível precipitação, o acaso e a sorte, uma única vez, haviam desempenhado um papel. Uma única vez! Por um lado, creio bem que isto me chegaria. O meu coração faria o resto. Os jornais falam muitas vezes de uma dívida para com a sociedade. Para eles, era preciso pagá-la. Mas isto não diz nada à imaginação. O que contaria, seria uma possibilidade de fuga, um salto para fora do rito implacável, uma louca corrida, com todas as probabilidades da esperança. A esperança, possivelmente, seria ser abatido em plena corrida, por uma bala. Mas, bem vistas as coisas, nada me permitia este luxo, tudo me proibia, a engrenagem reconquistava-me.

Apesar da minha boa vontade, eu não era capaz de aceitar esta certeza insolente. Por que afinal de contas, existia uma ridícula desproporção entre o julgamento que a fundamentara e o seu imperturbável desenvolvimento, a partir do instante em que a sentença fora pronunciada. O facto de a sentença ter sido lida, não às cinco da tarde, mas às oito horas da noite, o facto de que podia ter sido outra completamente diferente, de que fora resolvida por homens que mudam de roupa de baixo e de que fora dada em nome de uma noção tão imprecisa como o povo francês (ou alemão, ou chinês), tudo isto me parecia tirar seriedade a uma decisão tão grave. Era obrigado a reconhecer, no entanto que, a partir do instante em que fora tomada, os seus efeitos se tornavam tão certos, tão sérios como a presença desta parede ao longo da qual eu me estendia.
Lembrei-me nestes momentos de uma história que a mãe costumava contar-me, a respeito do meu pai. Eu nunca o conhecera. Tudo o que sabia de preciso a respeito deste homem, era talvez o que a minha mãe então me dizia: fora assistir á execução de um assassino. A ideia de ir punha-o doente. Mas não deixara de ir, e à volta vomitara durante quase todo o dia. Isto desgostava-me dele. Agora, porém, compreendia-o, a reação era tão natural... Como não percebera eu que não havia nada mais importante do que uma execução capital e que, sob um determinado ponto de vista, era mesmo a única coisa verdadeiramente interessante para um homem?! Se por acaso saísse da prisão, iria assistir a todas as execuções capitais. Fazia mal, julgo eu, em pensar nesta possibilidade. Pois à ideia de me ver livre uma destas manhãs, atrás de um cordão de polícias e do outro lado, à ideia de ser o espectador que veio assistir, uma onda de alegria envenenada me subia ao coração. Mas não era razoável. Andava mal em abandonar-me a estas suposições porque, uns instantes depois, vinha-me um frio tão horrível, que tinha que me encolher debaixo dos cobertores e batia os dentes sem conseguir dominar-me.

Evidentemente, nem sempre nos podemos manter razoáveis. Outras vezes, por exemplo, fazia projetos de lei. Reformava os castigos a aplicar. Observara já que o essencial era dar ao condenado uma oportunidade. Para as coisas correrem melhor, bastava uma sobre mil. Parecia-me, por conseguinte, que se podia obter um composto químico cuja absorção mataria o paciente nove vezes em dez. Este estaria a par de tal possibilidade. Porque, pensando bem, considerando as coisas com calma, verificava que o que havia de defeituoso na guilhotina era não existir nenhuma possibilidade de salvação, absolutamente nenhuma. A morte do paciente, em suma, era decidida de uma vez para sempre. Era um caso arrumado,. uma combinação que não mais se podia desfazer, um acordo resolvido e sobre o qual não se podia voltar atrás.

Se, por exceção, o maquinismo falhava, recomeçava-se do princípio. Como consequência, o aborrecido é que isto levava o condenado a desejar o bom funcionamento da máquina. Digo que é o lado defeituoso da coisa. O que, num determinado sentido, é verdade. Mas por outro lado, via-me obrigado a reconhecer que residia aí todo o segredo da boa organização. Numa palavra, o condenado sentia-se obrigado a colaborar moralmente. Era do seu interesse que tudo marchasse sem empenos. Via-me também obrigado a verificar que até aqui tinha tido sobre todos estes problemas, ideias que não eram certas.

Julguei durante muito tempo - não sei porquê - que para ir à guilhotina era preciso subir uns degraus. Creio que por causa da Revolução de 1789, quer dizer, por causa de tudo quanto me ensinaram ou me mostraram em semelhante matéria. Mas veio-me à ideia numa destas manhãs, a fotografia de uma execução retumbante, publicada nos jornais da época. Na realidade a máquina estava simplesmente no chão. Era muito mais estreita do que eu julgava. É engraçado como não me lembrei disto há mais tempo. Na fotografia, a máquina impressionara-me como uma obra de precisão, brilhante e acabada. Exageramos sempre as coisas que não conhecemos. Verifiquei, o contrário, que era tudo muito simples: a máquina estava ao mesmo nível do que o homem que para ela se dirige. Vai ter com ela, precisamente como iria ter com uma pessoa. Sob um dado aspecto, também isto era aborrecido. A imaginação poderia agarrar-se à subida ao cadafalso, à ascensão para o céu. Enquanto aqui, o maquinismo mais uma vez esmagava tudo: era-se morto discretamente, talvez com um pouco de vergonha, mas com muita precisão.

Havia duas coisas que nunca me saíam da cabeça: a madrugada da execução e o recurso da sentença. Não deixava, no entanto, de discutir comigo mesmo e de tentar pensar noutras coisas. Estendia-me, olhava através da janela, procurava interessar-me pelo que via. O céu tornava-se verde, a noite chegava. Voltava a fazer um esforço para mudar o curso dos meus pensamentos. Punha-me a escutar o coração. Não era capaz de imaginar que este barulho compassado que me acompanhava há tanto tempo podia um dia cessar. Nunca tive verdadeira imaginação. Mas tentava imaginar, não obstante, o segundo em que o batimento do coração já se me não prolongaria na cabeça. Em vão. A madrugada e o recurso não me abandonavam. Acabava por chegar à conclusão que o mais razoável era ainda não me tentar dominar.

Sabia que vinham de madrugada. Ocupei as minhas noites, em suma, a esperar por esta madrugada. Nunca gostei que me surpreendessem. Quando me acontece alguma coisa, prefiro estar presente: Eis porque, no final, acabei por dormir um pouco de dia, enquanto, durante toda a noite, esperava pacientemente que a luz nascesse no negro do céu.

O mais difícil, era a flora duvidosa em que eles geralmente operavam. Depois da meia-noite, esperava e escutava. Nunca a minha orelha sentiu tantos ruídos e distinguiu sons tão ténues. Aliás posso afirmar que, de certo modo, tive sorte durante todo este período, pois nunca cheguei a ouvir passos. A mãe costumava dizer que nunca se é completamente infeliz. Mesmo na prisão continuava a concordar com ela, quando o céu se coloria e que um novo dia entrava na minha cela. Porque, logo que ouvisse passos, o meu coração era capaz de rebentar. Mesmo se o mínimo som me atirasse de encontro à porta, mesmo se, a orelha colada à madeira, eu esperasse desvairadamente até ouvir a minha própria respiração, assustado por a achar tão rouca, e se, tal a agonia de um cão, ao fim desse período o meu coração rebentasse, tinha ganho ao menos mais vinte e quatro horas.

Durante todo o dia, podia pensar no recurso da sentença. Julgo que tirei o melhor partido possível desta ideia. Calculava os meus efeitos e obtinha assim destas reflexões o melhor dos rendimentos.

Começava sempre pela suposição mais pessimista: o recurso é rejeitado. "Pois bem, morrerei". Mais cedo do que os outros, mas sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que morrer aos trinta, aos setenta anos tanto faz, pois em qualquer dos casos outros homens e outras mulheres viverão, e isto durante milhares de anos. No fim de contas isto era claro como a água. Hoje ou daqui a vinte anos, era à mesma eu que morria. Neste momento, o que me incomodava um pouco no meu raciocínio era esse frémito terrível que me percorria, ao pensar nesses vinte anos para a frente. O que tinha a fazer, era abafar esta sensação, imaginando o que seriam os meus pensamentos daqui a vinte anos, quando chegasse outra vez à hora da morte. Desde o momento que se morre, é evidente que não importa como e quando. Portanto - e o difícil era não perder de vista o que este "portanto" representava no meu raciocínio - portanto, o melhor era aceitar a rejeição do meu recurso.

Neste momento, apenas neste momento, conquistava, por assim dizer o direito, dava a mim mesmo licença de abordar a segunda hipótese: a de anularem a sentença capital. O maçador, era que tinha de tornar menos fogoso esse impulso do sangue e do corpo que me picava os olhos e me comunicava uma alegria insensata. Era preciso que me aplicasse a reduzir esse grito, a vencê-lo pela lógica. Era preciso que eu estivesse natural, mesmo nesta hipótese, para tornar mais plausível a minha resignação na primeira hipótese. Quando o conseguia, ganhara uma hora de calma. E isto era importante.

Foi num momento assim que mais uma vez me recusei a receber o padre da prisão. Estava estendido e adivinhava a chegada da noite de verão a uma certa tonalidade loira do céu. Acabava de rejeitar o recurso e podia sentir as ondas do sangue circularem regularmente no meu corpo. Não tinha necessidade nenhuma de receber o capelão. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei em Maria. Há muitos dias que não me escrevia. Pus-me a pensar, e disse de mim para mim que ela talvez se tivesse cansado de ser a amante de um condenado à morte. Veio-me à cabeça que ela era capaz de estar doente ou de ter morrido, o que pertencia à ordem das coisas. Como o poderia eu saber, aliás, já que, além dos nossos corpos agora separados, nada nos ligava, nada nos lembrava um ao outro. A partir desse momento, a recordação de maria passaria a ser-me indiferente. Morto, deixava de interessar. Afigurava-se-me normal esta atitude, assim como compreendia muito bem que as pessoas me esquecessem depois da minha morte. Já não tinham nada a fazer comigo. Nem sequer podia dizer que me custava pensar em semelhante possibilidade. Não há, no fundo, nenhuma ideia a que não nos habituemos.

Foi neste instante preciso que o capelão entrou na minha cela. Quando o vi, senti um pequeno estremecimento. Ele deu por isso e disse-me para não ter medo. Redargui que, habitualmente, o capelão vinha noutra altura. Respondeu-me que era uma visita amigável, que nada tinha a ver com o meu recurso, a respeito do qual nada sabia: Sentou-se na minha cama e convidou-me a ir para o pé dele. Recusei-me. Achei que tinha, no entanto, um ar muito doce.

Ficou uns momentos sentado, os cotovelos sobre os joelhos, a cabeça baixa, a olhar para as mãos. Estas eram finas e musculosas, lembravam-me dois animais ágeis: Esfregou-as lentamente: uma contra a outra. Depois assim ficou, sempre de cabeça baixa, durante tanto tempo que, por instantes, tive a impressão de o ter esquecido.



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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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