Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1
1
Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Ao "Chat-Qui-Pelote"
Dedicado a mlle. Marie de Montheau
(Parte 1)
No meio da rue Saint-Denis, quase na esquina da rue du Petit-Lion, existia outrora uma dessas preciosas casas que facilitam aos historiadores a reconstrução, por analogia, da antiga Paris. Os muros ameaçadores daquele pardieiro pareciam pintalgados de hieróglifos. Que outro nome poderia dar o transeunte aos xx e vv traçados na fachada pelos caibros transversais ou diagonais delineados no reboco por pequenas rachas paralelas? Evidentemente cada carro ao passar fazia que aquelas vigas dançassem nas suas mortagens. O venerável edifício tinha um telhado triangular, cujo modelo em breve não mais se verá em Paris. Abaulado pelas intempéries do clima parisiense, esse telhado sobressaía, mais ou menos, três pés sobre a rua, tanto para proteger da chuva a soleira da porta como para abrigar a parede das águas-furtadas e seu olho-de-boi sem rebordo. Esse último andar era construído com tábuas pregadas umas sobre as outras, como ardósias, decerto para não sobrecarregar aquele frágil edifício.
Por uma manhã chuvosa do mês de março, um rapaz, cuidadosamente envolto na sua capa, estava sob o telheiro da loja fronteira àquela velha habitação e parecia examiná-la com o entusiasmo de um arqueólogo. Realmente, aquele remanescente da burguesia do século xvi podia oferecer a um observador mais de um problema para resolver. Cada andar apresentava sua singularidade. No primeiro, quatro janelas altas, estreitas, próximas umas das outras, tinham painéis de madeira na parte inferior, a fim de condicionar essa luz dúbia, graças à qual um hábil negociante empresta aos tecidos a cor desejada pelo freguês. O rapaz aparentava completo desdém por essa parte essencial da casa; seus olhos nem uma vez nela se detiveram. As janelas do segundo andar, cujos postigos abertos deixavam ver através dos grandes cristais de Boêmia das vidraças pequenas cortinas de musselina ruça, tampouco o interessavam. Sua atenção dirigia-se particularmente ao terceiro andar, a humildes janelas, cujo madeiramento, grosseiramente trabalhado, teria merecido um lugar no Conservatório de Artes e Ofícios, a fim de mostrar os primeiros esforços da carpintaria francesa. Essas janelas tinham pequenas vidraças de coloração tão verde que, se não fosse a sua excelente vista, o rapaz não poderia vislumbrar as cortinas de xadrez azul que ocultavam os mistérios daquele apartamento aos olhares dos profanos. Por vezes, aquele observador, contrariado com a sua contemplação sem resultado ou com o silêncio em que a casa estava mergulhada, assim como todo o bairro, baixava os olhos para as regiões inferiores. Esboçava-se então em seus lábios um sorriso involuntário, quando tornava a ver a loja onde, de fato, se encontravam coisas bastante risíveis. Uma formidável viga de madeira, horizontalmente apoiada sobre quatro pilares, que pareciam curvados ao peso daquela casa decrépita, tinha sido realçada com tantas camadas de pintura, como de ruge as faces de uma velha duquesa. No meio dessa larga viga pretensiosamente esculpida via-se um antigo quadro que representava um gato jogando pelota. Essa tela provocava a hilaridade do rapaz. Mas é preciso dizer que o mais espirituoso dos pintores modernos não seria capaz de idear uma caricatura tão cômica. O animal segurava com uma das patas dianteiras uma raquete tão grande quanto ele e erguia-se sobre as patas traseiras a fim de aparar uma enorme bola que lhe atirava um gentil-homem agaloado de ouro. Desenho, cores, acessórios, tudo fora executado de modo a fazer crer que o artista pretendera divertir-se à custa do negociante e dos transeuntes. A ação do tempo, alterando a ingênua pintura, tornara-a ainda mais grotesca por algumas dubiedades que deviam inquietar os passantes conscienciosos. Por exemplo, a cauda mosqueada do gato ficara recortada de tal forma que se podia tomá-la por um espectador, tão grande e basta era a cauda dos gatos de nossos antepassados. À direita do quadro, sobre um campo celeste que mal encobria a podridão da madeira, os transeuntes liam: guillaume; e à esquerda: successeur du sieur chevrel. Sol e chuva tinham roído a maior parte do pó dourado parcimoniosamente aplicado sobre as letras daquela inscrição, na qual os uu substituíam os vv, e reciprocamente, segundo as regras da nossa antiga ortografia. Para abater o orgulho de quantos pensam que o mundo se torna de dia para dia mais espirituoso e que o moderno charlatanismo sobrepassa tudo, convém aqui observar que essas insígnias, cuja etimologia parece estranha a mais de um negociante parisiense, são os quadros mortos de quadros vivos com auxílio dos quais nossos espertos antepassados haviam conseguido atrair freguesia para as suas casas. Assim a Porca que Fia, o Macaco Verde etc. foram animais engaiolados cuja habilidade maravilhava os passantes e cuja educação provava a paciência do industrial do século xv. Semelhantes curiosidades enriqueciam mais depressa seus felizes proprietários do que a Providência, a Boa-Fé, a Graça-de-Deus e o Degolamento de são João Baptista, que ainda se veem na rue Saint-Denis. Entretanto, o desconhecido não permanecia ali, certamente, para admirar aquele gato, que um momento de atenção bastava para gravar na memória. Aquele rapaz tinha também as sua singularidades. Sua capa, traçada ao gosto das figuras antigas, deixava ver que ele usava um elegante calçado, tanto mais notável no meio da lama parisiense quanto trazia meias de seda branca, cujas manchas lhe atestavam a impaciência. Tinha saído, sem dúvida nenhuma, de alguma festa ou de um baile, pois a essa hora matinal segurava na mão um par de luvas brancas, e as mechas de seus cabelos negros desfrisados, esparsos sobre os ombros, revelavam um penteado à Caracala, posto em moda tanto pela escola de David[25] como por esse entusiasmo pelas formas gregas e romanas que assinalou os primeiros anos do século. Apesar do barulho que faziam alguns verdureiros atrasados ao passar a galope para o mercado central, aquela rua tão agitada estava então numa quietude cuja magia só é conhecida por aqueles que vagaram por Paris deserta, nas horas em que seu ruído, um momento acalmado, renasce, e se ouve ao longe como a grande voz do mar. Aquele estranho jovem devia despertar a curiosidade dos comerciantes do “Chat-qui-pelote”, tanto quanto o “Chat-qui-pelote” despertava a dele. Uma gravata de alvura deslumbrante fazia-lhe o rosto atormentado mais pálido ainda do que realmente era. O fulgor, ora sombrio, ora cintilante, que lançavam seus olhos negros, harmonizava-se-lhe com o contorno estranho do rosto, com a boca larga e sinuosa, que ao sorrir se contraía. A fronte, enrugada por violenta contrariedade, tinha algo de fatal. Não é a fronte o que há de mais profético no homem? Quando a do desconhecido exprimia a paixão, as rugas que nela se formavam chegavam a assustar, tal a força com que se pronunciavam; mas ao readquirir a calma, que tão facilmente perdia, espalhava-se nela uma graça luminosa que tornava atraente aquele semblante, ao qual a alegria, a dor, o amor, a cólera, o desdém afloravam de modo tão comunicativo que o homem mais frio devia ficar impressionado. Aquele desconhecido estava tão enfadado no instante em que precipitadamente abriram a trapeira da água-furtada que não viu aparecerem três risonhas faces rechonchudas, claras, rosadas, mas tão comuns como as imagens do comércio esculpidas em certos monumentos. Aquelas três faces, enquadradas pela lucarna, lembravam as cabeças de anjos gorduchos, semeados nas nuvens que cercam o Padre Eterno. Os aprendizes respiraram as emanações da rua com uma avidez que demonstrava o quanto estava quente e mefítica a atmosfera do sótão. Depois de ter atentado àquela estranha sentinela, o caixeiro que parecia ser o mais jovial dos três sumiu e voltou em seguida, trazendo na mão um instrumento, cujo metal rígido fora recentemente substituído por um couro flexível; depois, todos tiveram uma expressão maliciosa ao olhar o basbaque, que borrifaram com um chuvisco fino e esbranquiçado, cujo perfume demonstrava que os três queixos acabavam de ser barbeados. Esticados na ponta dos pés e refugiados no fundo do sótão para gozar da cólera de sua vítima, os caixeiros deixaram de rir ao ver o despreocupado desdém com que o rapaz sacudiu a capa e o desprezo profundo que se desenhou em seu rosto quando ergueu os olhos para a trapeira vazia. Naquele momento, uma mão alva e delicada levantou a parte inferior de uma das grosseiras janelas do terceiro andar, por meio de uma dessas corrediças cujo torniquete deixa cair, muitas vezes, imprevistamente, as pesadas vidraças que deveria sustentar. O rapaz foi então recompensado da sua longa espera. Surgiu a figura de uma moça, viçosa como uma dessas alvas corolas que florescem no seio das águas, toucada com uma capota de musselina franzida, que lhe dava à cabeça um admirável ar de inocência. Embora recobertos por uma fazenda escura, entreviam-se-lhe o pescoço e os ombros, graças ao desarranjo produzido pelos movimentos que fizera durante o sono. Nenhuma expressão de constrangimento alterava a ingenuidade daquele semblante nem a calma daqueles olhos imortalizados por antecipação nas sublimes composições de Rafael: era a mesma graça, a mesma tranquilidade daquelas virgens que se tornaram proverbiais. Havia um contraste encantador entre a mocidade das faces daquele rosto sobre o qual o sono como que pusera em relevo uma superabundância de vida e a velhice daquela janela maciça, de contornos grosseiros e de parapeito negro. Tal como essa flores diurnas que pela manhã ainda não expandiram sua túnica enrolada pelos frios da noite, a moça, apenas despertada, deixou vagar os olhos azuis por sobre os telhados vizinhos e olhou o céu; depois, por uma espécie de hábito, baixou-os para as sombrias regiões da rua, onde encontraram logo os do seu adorador. O coquetismo fê-la sem dúvida sofrer por se deixar ver naquele desalinho; recuou da janela, o torniquete gasto girou, e a vidraça desceu com a rapidez que, nos nossos dias, inspirou um nome odioso[26] para aquela ingênua invenção de nossos antepassados. A visão desapareceu. Ao rapaz afigurou-se-lhe que a mais brilhante estrela da manhã fora subitamente encoberta por uma nuvem.
Enquanto sucediam esses pequenos acontecimentos, os pesados postigos interiores que defendiam os frágeis vidros da loja do “Chat-qui-pelote” haviam sido retirados como por magia. A velha porta de batentes foi dobrada contra a parede interior da casa, por um criado verossimilmente contemporâneo da tabuleta, o qual, com mão trêmula, prendeu naquela o pedaço de pano quadrado em que se via, bordado a seda amarela, o nome de Guillaume, successeur de Chevrel. Bem difícil seria para muitos transeuntes adivinhar a natureza do comércio do sr. Guillaume. Através dos grossos barrotes de ferro que protegiam exteriormente o seu negócio, podiam-se apenas ver pacotes envoltos em tela escura, tão numerosos como arenques quando atravessam o oceano. Não obstante a aparente simplicidade daquela fachada gótica, o sr. Guillaume era, de todos os negociantes de fazendas de Paris, aquele cujos depósitos estavam mais bem sortidos, cujas relações eram mais vastas e cuja probidade comercial era mais impecável. Se alguns de seus confrades tinham fechado negócio com o governo, sem ter a referida quantidade de fazenda, ele sempre se prontificava a ceder-lhes a de que precisassem para satisfazer os compromissos, por mais considerável que fosse o número de peças pedidas. O ardiloso negociante conhecia mil modos de auferir a maior parte dos lucros sem se ver obrigado, como os outros, a correr à casa dos protetores para fazer baixezas ou ricos presentes. Se os colegas só lhe podiam pagar com excelentes letras a longo prazo, ele lhes indicava seu tabelião, como um homem conciliador, e sabia, graças a esse expediente, tirar ainda um segundo proveito, o que fazia que os comerciantes da rue Saint-Denis dissessem proverbialmente: “Deus o livre do tabelião do sr. Guillaume!” — para designar um desconto oneroso. Como por milagre, o velho negociante surgiu de pé à porta da loja no momento em que o criado se retirou. O sr. Guillaume contemplou a rue Saint-Denis, as lojas vizinhas e o tempo, da mesma forma pela qual um homem que desembarca no Havre e revê a França, depois de uma longa viagem. Convencido de que não houvera mudanças durante seu sono, viu então o passante em sentinela, o qual, por sua vez, observava o patriarca das fazendas por atacado, como Humboldt[27] deve ter examinado o primeiro gimnoto elétrico que viu na América. O sr. Guillaume vestia calções largos de veludo preto, meias multicores e sapatos de bico quadrado com fivelas de prata. Sua casaca de abas quadradas, de lapelas quadradas, de gola quadrada, envolvia-lhe o corpo, levemente encurvado, de uma fazenda esverdeada, guarnecida de botões de metal prateado, mas enferrujados pelo uso. Seus cabelos grisalhos estavam tão perfeitamente alisados e penteados sobre o crânio amarelo que o faziam assemelhar-se a um campo lavrado. Seus pequenos olhos verdes, que pareciam ter sido feitos com uma verruma, chamejavam sob dois arcos assinalados por uma leve marca avermelhada, na falta das sobrancelhas. As preocupações lhe haviam traçado sobre a testa sulcos horizontais tão numerosos quanto as pregas do seu casaco. Aquele semblante lívido revelava paciência, tino comercial e a espécie de cupidez ardilosa exigida pelos negócios. Naquela época, se viam menos raramente do que hoje essas velhas famílias nas quais se conservavam, como tradições preciosas, os hábitos e usos característicos de suas profissões, e que ficaram no meio da nova civilização como esses fósseis antediluvianos que Cuvier descobriu em suas escavações. O chefe da família Guillaume era um desses notáveis guardiães dos antigos costumes: surpreendiam-no a lamentar a falta do preboste dos mercadores,[28] e nunca falava de um julgamento do Tribunal do Comércio sem chamá-lo sentença dos cônsules. Era sem dúvida em virtude desses hábitos que, sendo o primeiro a levantar-se em casa, esperava a pé firme a chegada dos três caixeiros para passar-lhes um carão no caso de virem atrasados. Aqueles jovens discípulos de Mercúrio[29] não conheciam nada tão atemorizante como a atividade silenciosa com que o patrão lhes escrutava o semblante e os movimentos, na segunda-feira de manhã, para ver se encontrava neles provas ou vestígios de pândegas. Naquele momento, porém, o velho negociante de fazendas não prestou nenhuma atenção aos seus aprendizes. Estava entretido em procurar o motivo pelo qual o rapaz das meias de seda e da capa dirigia alternativamente os olhos ora para a sua tabuleta, ora para as profundidades da loja. O dia, que se tornara mais luminoso, permitia divisar o escritório gradeado, cercado de reposteiros de velha seda verde, onde repousavam os enormes livros, mudos oráculos da casa. Aquele desconhecido excessivamente curioso parecia cobiçar esse pequeno recinto, esquadrinhando a sala de jantar lateral, iluminada por uma claraboia, e de onde a família reunida devia ver, facilmente, durante as refeições, os mais insignificantes acontecimentos que se produzissem na entrada da loja. Tão grande interesse pela sua habitação parecia suspeito para um negociante que suportara o regime do Maximum.[30] O sr. Guillaume pensava, pois, muito naturalmente, que aquela figura sinistra tinha o olho na caixa do “Chat-qui-pelote”. Depois de ter gozado discretamente com o duelo mudo que se estava realizando entre o patrão e o desconhecido, o mais velho dos caixeiros arriscou-se a tomar lugar na calçada, onde se mantinha o sr. Guillaume para ver o rapaz contemplar de soslaio a janela do terceiro andar. Deu dois passos na rua, levantou a cabeça e julgou ter visto a srta. Augustina Guillaume, a qual recuou precipitadamente. Pouco satisfeito com a perspicácia de seu primeiro caixeiro, o negociante atirou-lhe um olhar atravessado; mas, de repente, acalmaram-se os temores mútuos que a presença daquele desconhecido suscitava na alma do comerciante e na do apaixonado caixeiro. O desconhecido chamou um fiacre que se dirigia para uma praça vizinha e nele subiu rapidamente, fingindo uma enganosa indiferença. Essa partida teve o efeito de um bálsamo no coração dos outros caixeiros, que estavam bastante inquietos por terem tornado a encontrar a vítima de sua brincadeira de mau gosto.
— Então, senhores, que têm para estar aí de braços cruzados? — disse o sr. Guillaume aos seus três neófitos. — Antigamente, com os diabos, quando trabalhava com sieur Chevrel, a estas horas já eu tinha examinado duas peças de fazenda!
— É que então amanhecia mais cedo — disse o segundo caixeiro, a quem incumbia essa tarefa.
O velho negociante não pôde deixar de sorrir. Conquanto dois daqueles três rapazes, confiados a seus cuidados pelos pais, ricos manufatureiros em Louviers e Sedan, não tivessem mais do que pedir cem mil francos e obtê-los quando estivessem com idade de se estabelecer, Guillaume julgava de seu dever mantê-los sob a férula de antigo despotismo, desconhecido em nossos dias nos elegantes estabelecimentos modernos, cujos caixeiros querem ser ricos aos trinta anos. Faziaos trabalhar como negros. Entre os três, aqueles caixeiros bastavam para realizar um trabalho que teria esfalfado dez desses empregados, cujo sibaritismo avoluma hoje as colunas do orçamento. Nenhum ruído perturbava a paz daquela casa solene, cujos gonzos pareciam estar sempre azeitados, e cujo móvel mais insignificante tinha esse asseio respeitável que denota uma ordem e uma economia severas. Muitas vezes o mais brincalhão dos caixeiros divertira-se em escrever no queijo de Gruyère, que lhes entregava ao almoço e que eles se compraziam em respeitar a data de sua recepção primitiva. Essa malícia e algumas outras do mesmo quilate faziam sorrir a mais moça das duas filhas de Guillaume, a linda virgem que acabava de se mostrar ao desconhecido encantado. Embora cada um dos aprendizes, e até o mais antigo, pagasse uma forte pensão, nenhum deles teria ousadia bastante para ficar na mesa do patrão no momento em que serviam a sobremesa. Quando a sra. Guillaume falava em temperar a salada, os pobres rapazes tremiam ao pensar na parcimônia com que sua prudente mão sabia dosar o azeite. Que nem por sonhos se
lembrassem de passar uma noite fora, sem ter, muito tempo antes, dado um pretexto plausível para essa irregularidade. Cada domingo, e alternadamente, dois caixeiros escoltavam a família Guillaume à missa de Saint-Leu e às vésperas. As srtas. Virgínia e Augustina, modestamente vestidas de chita, tomavam cada uma o braço de um dos caixeiros e caminhavam na frente, sob o olhar observador da mãe, que fechava esse pequeno cortejo doméstico com o marido, a quem acostumara a carregar dois volumosos livros de horas, encadernados de marroquim negro. O segundo caixeiro não tinha ordenado. Quanto àquele que doze anos de perseverança e discrição tinham iniciado nos segredos da casa, recebia oitocentos francos em recompensa de seus trabalhos. Em certas festas da família, gratificavam-no com presentes, cujo valor provinha unicamente de terem passado pelas mãos secas e enrugadas da sra. Guillaume: bolsas de crochê, que ela tinha o cuidado de encher de algodão para realçar o desenho das malhas; suspensórios reforçados ou pares de meias de seda bem pesados. Algumas vezes, mas isso raramente, esse primeiro ministro era admitido a partilhar dos prazeres da família, ou quando esta ia para o campo, ou quando, após meses de espera, se decidia a usar do seu direito de assistir, comprando um camarote, a uma peça na qual Paris já não pensava mais. Em relação aos dois outros caixeiros, a barreira de respeito que separava antigamente um senhor negociante de fazendas dos seus aprendizes estava tão solidamente assentada entre eles e o patrão que mais fácil lhes seria roubar uma peça de pano do que infringir aquela augusta etiqueta. Hoje, isso pode parecer ridículo. Não obstante, essas velhas casas eram escolas de bons costumes e de probidade. Os patrões adotavam seus aprendizes. A roupa deles era cuidada, consertada e algumas vezes renovada pela dona da casa. Se um caixeiro adoecia, tornava-se objeto de cuidados verdadeiramente maternais. Em caso de perigo, o patrão prodigalizava seu dinheiro para chamar os mais célebres médicos, pois não eram responsáveis somente pelos costumes e pelo saber daqueles jovens perante os respectivos pais. Se um deles, respeitável pelo caráter, sofria qualquer desastre, aqueles velhos negociantes sabiam apreciar a inteligência que eles próprios haviam desenvolvido e não hesitavam em confiar a felicidade de suas filhas àqueles a quem durante anos haviam confiado suas fortunas. Guillaume era um desses homens antigos e, se lhes tinha os ridículos, tinha-lhes também todas as qualidades. Por isso José Lebas, seu primeiro caixeiro, órfão e sem fortuna, era, no seu pensamento, o futuro esposo de Virgínia, sua filha mais velha. José, porém, não partilhava os pensamentos simétricos do patrão, o qual nem a troco de um império teria consentido em casar sua segunda filha antes da primeira. O infeliz caixeiro estava apaixonado pela filha mais moça, srta. Augustina. Para justificar essa paixão que crescera secretamente, é necessário penetrar mais fundo na engrenagem do governo absoluto que regia a casa do velho negociante de fazendas.
lembrassem de passar uma noite fora, sem ter, muito tempo antes, dado um pretexto plausível para essa irregularidade. Cada domingo, e alternadamente, dois caixeiros escoltavam a família Guillaume à missa de Saint-Leu e às vésperas. As srtas. Virgínia e Augustina, modestamente vestidas de chita, tomavam cada uma o braço de um dos caixeiros e caminhavam na frente, sob o olhar observador da mãe, que fechava esse pequeno cortejo doméstico com o marido, a quem acostumara a carregar dois volumosos livros de horas, encadernados de marroquim negro. O segundo caixeiro não tinha ordenado. Quanto àquele que doze anos de perseverança e discrição tinham iniciado nos segredos da casa, recebia oitocentos francos em recompensa de seus trabalhos. Em certas festas da família, gratificavam-no com presentes, cujo valor provinha unicamente de terem passado pelas mãos secas e enrugadas da sra. Guillaume: bolsas de crochê, que ela tinha o cuidado de encher de algodão para realçar o desenho das malhas; suspensórios reforçados ou pares de meias de seda bem pesados. Algumas vezes, mas isso raramente, esse primeiro ministro era admitido a partilhar dos prazeres da família, ou quando esta ia para o campo, ou quando, após meses de espera, se decidia a usar do seu direito de assistir, comprando um camarote, a uma peça na qual Paris já não pensava mais. Em relação aos dois outros caixeiros, a barreira de respeito que separava antigamente um senhor negociante de fazendas dos seus aprendizes estava tão solidamente assentada entre eles e o patrão que mais fácil lhes seria roubar uma peça de pano do que infringir aquela augusta etiqueta. Hoje, isso pode parecer ridículo. Não obstante, essas velhas casas eram escolas de bons costumes e de probidade. Os patrões adotavam seus aprendizes. A roupa deles era cuidada, consertada e algumas vezes renovada pela dona da casa. Se um caixeiro adoecia, tornava-se objeto de cuidados verdadeiramente maternais. Em caso de perigo, o patrão prodigalizava seu dinheiro para chamar os mais célebres médicos, pois não eram responsáveis somente pelos costumes e pelo saber daqueles jovens perante os respectivos pais. Se um deles, respeitável pelo caráter, sofria qualquer desastre, aqueles velhos negociantes sabiam apreciar a inteligência que eles próprios haviam desenvolvido e não hesitavam em confiar a felicidade de suas filhas àqueles a quem durante anos haviam confiado suas fortunas. Guillaume era um desses homens antigos e, se lhes tinha os ridículos, tinha-lhes também todas as qualidades. Por isso José Lebas, seu primeiro caixeiro, órfão e sem fortuna, era, no seu pensamento, o futuro esposo de Virgínia, sua filha mais velha. José, porém, não partilhava os pensamentos simétricos do patrão, o qual nem a troco de um império teria consentido em casar sua segunda filha antes da primeira. O infeliz caixeiro estava apaixonado pela filha mais moça, srta. Augustina. Para justificar essa paixão que crescera secretamente, é necessário penetrar mais fundo na engrenagem do governo absoluto que regia a casa do velho negociante de fazendas.
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
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[23] Os prodígios da eletricidade: refere-se às experiências de Mesmer relativas aos fenômenos de magnetismo animal ou, como se diria hoje, de espiritismo, pelos quais Balzac sempre se interessou vivamente.
[24] Franz Josef Gall (1758 -1828), fisiologista e filósofo alemão, fundador da ciência da frenologia. Segundo sua doutrina, hoje abandonada, as protuberâncias do crânio permitem tirar conclusões acerca das disposições psíquicas do indivíduo. Balzac foi um adepto entusiasta desta teoria, que aplicou em grande número de retratos de suas personagens, tão bem como as ideias do filósofo protestante e rousseauísta Johann Kaspar Lavater (1741-1801), inventor da fisiognomonia, isto é, da ciência de julgar o caráter de uma pessoa pelas feições de seu rosto.
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