quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Bem dos Pobres

Stendhal - O Vermelho e o Negro



Livro I

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo III

O BEM DOS POBRES


Um cura virtuoso e sem intrigas é uma Providência para a aldeia.
FLEURY 






CONVÉM SABER QUE O CURA DE VERRIÈRES, velho de oitenta anos, mas que devia ao ar puro dessas montanhas uma saúde e um caráter de ferro, tinha o direito de visitar a qualquer hora a prisão, o hospital e mesmo o asilo de mendicidade. Foi precisamente às seis horas da manhã que o sr. Appert, que de Paris era recomendado ao cura, tivera a sabedoria de chegar a uma pequena cidade curiosa, indo imediatamente ao presbitério.

Ao ler a carta que lhe escrevia o sr. marquês de La Mole, par de França e o mais rico proprietário da província, o cura Chélan ficou pensativo.

– Sou velho e amado aqui, disse enfim a meia-voz, eles não ousariam! Virando-se em seguida para o senhor de Paris, com olhos nos quais, apesar da idade, brilhava aquele fogo sagrado que anuncia o prazer de fazer uma bela ação um tanto perigosa:

– Venha comigo, senhor, e, diante do carcereiro e sobretudo dos vigias do asilo de mendicidade, abstenha-se de emitir qualquer opinião sobre as coisas que veremos.

O sr. Appert compreendeu que lidava com um homem corajoso: acompanhou o venerável cura, visitou a prisão, o hospital, o asilo, fez muitas perguntas e, apesar de estranhas respostas, não se permitiu o menor sinal de reprovação.

Essa visita durou várias horas. O cura convidou para almoçar o sr. Appert, que alegou ter cartas a escrever: ele não queria comprometer ainda mais seu generoso companheiro. Por volta das três da tarde, esses senhores foram terminar a inspeção do asilo de mendicidade e voltaram em seguida à prisão. Lá, encontraram à porta o carcereiro, espécie de gigante de quase dois metros de altura e de pernas arqueadas: sua cara ignóbil tornara-se medonha por efeito do terror.

– Ah! senhor, disse ele ao cura assim que o avistou, esse senhor que o acompanha não é o sr. Appert?

– Que importa?, disse o cura.

– É que desde ontem tenho ordens precisas, que o sr. governador enviou por um gendarme que teve de galopar a noite toda, de não admitir a entrada do sr. Appert na prisão.

– Declaro-lhe, senhor Noiroud, disse o cura, que esse viajante que está comigo é o sr. Appert. Acaso reconhece que tenho o direito de entrar na prisão a qualquer hora do dia ou da noite, fazendo-me acompanhar por quem eu quero?

– Sim, sr. cura, disse o carcereiro em voz baixa e bai​xando a cabeça como um buldogue que obedece a contragosto por temor do bastão. Só que tenho mulher e filhos, sr. cura, se eu for denunciado me destituirão, para viver dependo apenas do meu cargo.

– Eu também ficaria bastante aborrecido de perder o meu, retrucou o bom cura, com uma voz cada vez mais irritada.

– Que diferença!, tornou vivamente o carcereiro; todos sabem que o senhor cura tem 800 libras de renda, propriedades imobiliárias...

Tais são os fatos que, comentados, exagerados de vinte formas diferentes, agitavam havia dois dias todas as paixões odiosas da pequena cidade de Verrières. Neste momento, eles serviam de texto à pequena discussão que o sr. de Rênal mantinha com sua mulher. De manhã, acom​panhado do sr. Valenod, diretor do asilo de mendicidade, ele fora à casa do cura para demonstrar-lhe o mais vivo descontentamento. O cura Chélan não era protegido de ninguém e percebeu o alcance das palavras que ouviu.

– Pois bem, senhores! serei o terceiro cura, de oiten​ta anos de idade, que destituirão nesta região. Há cinquenta anos estou aqui; batizei quase todos os habitantes da cidade, que era apenas um burgo quando cheguei. Diariamente faço o casamento de jovens cujos avós foram outrora casados por mim. Verrières é a minha família; mas, ao ver o forasteiro, pensei comigo: “Esse homem veio de Paris, pode ser em rea​lidade um liberal, e já os temos em demasia; mas que mal pode fazer a nossos pobres e a nossos prisioneiros?”.

Diante das reprovações cada vez mais vivas do sr. de Rênal, e sobretudo do sr. Valenod, o diretor do asilo de mendicidade, o velho cura exclamou com uma voz trêmula:

– Pois bem, senhores! mandem destituir-me. Mesmo assim continuarei morando aqui. Todos sabem que há quarenta e oito anos herdei um campo que me rende 800 libras. Viverei com esse rendimento. Eu, senhores, não faço economias à custa de meu cargo e, talvez por isso, não fico tão assustado quando me falam de tirá-lo.

O Sr. de Rênal vivia muito bem com a mulher; mas, não sabendo o que responder a esta ideia que ela lhe repetia timidamente: “Que mal esse senhor de Paris pode fazer aos prisioneiros?”, estava a ponto de zangar-se, quando ela deu um grito. O segundo de seus filhos subira no parapeito do muro do terraço e ali corria, embora esse muro se elevasse a mais de 6 metros sobre o vinhedo que está do outro lado. O temor de assustar o filho e fazê-lo cair impedia a sra. de Rênal de dirigir-lhe a palavra. Por fim o garoto, que ria de sua proeza, olhando para a mãe, viu sua palidez, saltou para o passeio e correu até ela. Foi se​ve​ramente repreendido.

Esse pequeno acontecimento mudou o rumo da conversa.

– Faço questão de trazer para minha casa o Sorel, filho do serrador de tábuas, disse o sr. de Rênal; ele vigia​rá os garotos, que estão se tornando muito endiabrados para nós. É um jovem padre, ou algo parecido, bom latinista, e que fará os garotos progredirem; pois tem um caráter firme, disse o cura. Dar-lhe-ei 300 francos e comida. Eu tinha algumas dúvidas sobre sua moralidade, pois era o preferido daquele velho cirurgião, membro da Legião de Honra, que, sob pretexto de ser primo deles, viera hospedar-se na casa dos Sorel. Aquele homem podia, no fundo, não ser senão um agente secreto dos liberais; dizia que o ar de nossas montanhas fazia bem para sua asma; mas isso não ficou provado. Ele participou de todas as campanhas de Buonaparté na Itália e teria mesmo, dizem, assinado a favor do império naquele momento. Esse liberal ensinou latim ao filho de Sorel e deixou-lhe uma quantidade de livros que trouxera consigo. Sendo assim, eu jamais teria pensado em colocar o filho do carpinteiro junto de nossos filhos; mas o cura, justamente na véspera da cena que acaba de nos indispor para sempre, disse-me que esse Sorel estuda teologia há três anos, com o projeto de entrar para o seminário; portanto não é um liberal, e é latinista.

– Esse arranjo convém por mais de um motivo, continuou o sr. de Rênal, olhando a mulher com um ar diplomático; o Valenod está muito orgulhoso dos dois belos cavalos normandos que acaba de comprar para sua cale​che. Mas ele não tem preceptor para os filhos.

– Ele bem que poderia arrebatar-nos esse.

– Aprovas então meu projeto?, disse o sr. de Rênal, agradecendo à mulher, com um sorriso, pela excelente ideia que ela acabara de ter. Então, está decidido.

– Ah! Meu Deus! como tomas partido depressa, meu caro!

– É que tenho caráter, e o cura viu bem. Não dissimulemos nada, estamos cercados de liberais por aqui. Todos esses negociantes de tecidos me invejam, tenho certeza; dois ou três estão ficando ricaços; pois bem, quero que eles vejam passar os filhos do sr. de Rênal, indo ao passeio sob a conduta de seu preceptor. Isso impressionará. Meu avô contava-nos com frequência que, em sua juventude, tivera um preceptor. São cem escudos que ele poderá me custar, mas é uma despesa que deve ser classificada como necessária para manter nossa posição.

Essa resolução súbita deixou a sra. de Rênal muito pensativa. Era uma mulher alta, esbelta, que havia sido a beldade da região, como se diz nessas montanhas. Tinha um certo ar de simplicidade e uma juventude no andar; aos olhos de um parisiense, essa graça ingênua, cheia de inocência e de vivacidade, teria suscitado ideias de doce volúpia. Se tomasse conhecimento desse gênero de sucesso, a sra. de Rênal ficaria bastante envergonhada. A coqueteria e a afetação nunca haviam se aproximado desse coração. O sr. Valenod, o rico diretor do asilo, a teria cortejado, mas sem sucesso, o que dera um brilho singular à sua virtude; pois esse sr. Valenod, jovem com porte de atleta, de rosto corado e grandes suíças negras, era um desses indivíduos grosseiros, descarados e turbulentos que na província são considerados belos homens.

A sra. de Rênal, muito tímida, e de um caráter aparentemente muito desigual, sentira-se chocada sobretudo com o movimento contínuo e a estridência da voz do sr. Va​lenod. Seu distanciamento em relação ao que em Verriè​res chamam alegria valera-lhe a reputação de ser muito orgulhosa de seu nascimento. Ela nem pensava nisso, mas ficara muito contente de ver os habitantes da cidade virem menos à sua casa. Não dissimularemos que ela era vista como boba aos olhos das outras senhoras, porque, sem nenhuma política em relação ao marido, deixava escapar as mais belas ocasiões de fazer-se comprar belos chapéus de Paris ou de Besançon. Contanto a deixassem sozinha a vagar em seu belo jardim, ela nunca se queixava.

Era uma alma ingênua, que nunca chegara sequer a julgar o marido, e a confessar-se que ele a aborrecia. Supunha, sem dizer a si mesma, que entre marido e mulher não havia relações melhores. Gostava do sr. de Rênal sobretudo quando este lhe falava dos projetos em relação aos filhos, um dos quais destinava às armas, outro à magistratura, e o terceiro à Igreja. Em suma, ela achava o sr. de Rênal muito menos aborrecido que todos os homens de suas relações.

Esse julgamento conjugal era razoável. O prefeito de Verrières devia uma reputação de espírito e principalmente de bom-tom a meia dúzia de gracejos que herdara de um tio. O velho
capitão de Rênal servira, antes da Revolução, no regimento de infantaria do duque de Orléans, e, quando ia a Paris, era admitido nos salões do príncipe. Lá, tinha visto Madame de Montesson, a famosa Madame de Genlis, o sr. Ducrest, o inventor do Palais-Royal. Essas personalidades reapareciam com frequência nas anedotas do sr. de Rênal. Mas, aos poucos, essa lembrança de coisas tão delicadas de narrar tornara-se trabalhosa e, de uns tempos para cá, só nas grandes ocasiões ele repetia suas anedotas relativas à Casa de Orléans. Aliás, como era muito polido, exceto quando falava de dinheiro, consideravam-no, com razão, a personalidade mais aristocrática de Verrières.


_______________________


ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


_______________________


Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.



O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

_______________________

Leia também: 

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma pequena cidade
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Prefeito
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Bem dos Pobres 


Nenhum comentário:

Postar um comentário