segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O Segundo Sexo - 19. Fatos e Mitos: O Espírito superou a Vida

Simone de Beauvoir



19. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


II


 : o Espírito superou a Vida




É, A MEU VER, nessa vontade que se deve buscar a razão profunda do famoso costume da exogamia, tão expandido nas sociedades de filiação uterina. Mesmo quando o homem ignora o papel que desempenha na procriação, o casamento tem para ele grande importância. É com o casamento que conquista a dignidade de adulto e recebe em partilha uma parcela do mundo; pela mãe, ele acha-se ligado ao clã, aos antepassados e a tudo o que constitui sua própria substância. Porém em todas as funções laicas, trabalho, casamento, ele aspira a evadir-se do círculo, a afirmar sua transcendência contra a imanência, a abrir um futuro diferente do passado em que mergulha suas raízes; segundo o tipo de dependência reconhecido nas diferentes sociedades a interdição do incesto assume formas diversas mas conserva, desde as épocas primitivas até os nossos dias, o mesmo sentido: o que o homem deseja possuir é o que ele não é; une-se ao que se lhe afigura Outro. Não deve, portanto, a esposa participar do mana do esposo, precisa ser-lhe estranha, logo estranha ao clã. O casamento primitivo funda-se, por vezes, num rapto real ou simbólico. Isso porque a violência cometida contra outrem é a afirmação mais evidente da alteridade desse outrem. Conquistando a mulher pela força, o guerreiro prova que soube anexar-se uma riqueza alheia e derrubar as barreiras do destino que seu nascimento lhe designara; a compra sob todas as suas formas — tributo pago, prestação de serviços — manifesta com menos evidência a mesma significação (1).


(1) Encontramos, na já citada tese de Lévi-Strauss sob uma forma algo diferente, a confirmação desta ideia. Ressalta de seu estudo que a proibição do incesto não é, em absoluto, o fato primitivo de que decorre a exogamia; mas ela reflete de modo negativo uma vontade positiva de exogamia. Não existe nenhuma razão imediata para que uma mulher seja imprópria ao comércio sexual com os homens de seu clã, mas é socialmente útil que ela faça parte das prestações mediante as quais cada clã, ao invés de se fechar sobre si, estabelece com outro uma relação de reciprocidade: "A exogamia tem um valor menos negativo do que positivo. . . ela proíbe o casamento endógamo.. . não, sem dúvida, porque um perigo biológico ameaça o casamento sanguíneo, mas porque um benefício social resulta do casamento exógamo". É preciso que o grupo não consuma, a título privado, as mulheres que constituem um de seus bens e sim que faça delas um instrumento de comunicação; se o casamento com uma mulher do clã é proibido "a única razão está em que ela é o mesmo quando deve (e portanto pode) tornar-se o outro... As mulheres vendidas como escravas podem ser as mesmas anteriormente oferecidas. Só se exige de umas e outras o sinal de alteridade que é consequência de certa posição dentro de uma estrutura e não de um caráter inato".


Pouco a pouco, o homem mediatizou sua experiência e, em suas representações como em sua existência prática, triunfou o princípio masculino. O Espírito superou a Vida; a transcendência, a imanência; a técnica, a magia; e a razão, a superstição. A desvalorização da mulher representa uma etapa necessária na história da humanidade, porque não era de seu valor positivo e sim de sua fraqueza que ela tirava seu prestígio; nela encarnavam -se os inquietantes mistérios naturais: o homem escapa de seu domínio quando se liberta da Natureza. Foi a passagem da pedra ao bronze que lhe permitiu realizar, com seu trabalho, a conquista do solo e de si próprio. O agricultor está sujeito aos acasos da terra, das germinações, das estações, é passivo, conjura e espera. Eis por que os espíritos totêmicos povoavam o mundo humano; o camponês sofria os caprichos dessas potências que o assediavam. O operário, ao contrário, molda a ferramenta de acordo com seu objetivo, impõe-lhe com as mãos a forma de seu projeto; em face da Natureza inerte, que lhe resiste, mas que ele vence, afirma-se como vontade soberana; se acelera os golpes sobre a bigorna, acelera o acabamento da ferramenta, ao passo que nada pode apressar o amadurecimento das espigas. Ele apreende sua responsabilidade com a coisa fabricada, um gesto hábil ou desastrado dá-lhe forma ou a destrói. Prudente, hábil, ele a conduz ao ponto de perfeição de que se orgulha: seu êxito não depende de favores dos deuses e sim de si mesmo. Desafia seus companheiros, jacta-se de suas realizações e, se ainda se atem a alguns ritos, as técnicas precisas parecem-lhe bem mais importantes; os valores místicos passam para o segundo plano e os práticos para o primeiro. Não se liberta inteiramente dos deuses, mas separa-os de si separando-se deles; relega-os a seu céu olímpico e guarda para si o domínio terrestre; o grande Pã começa a estiolar-se quando ecoa a primeira martelada, e o reinado do homem inicia-se. Ele descobre seu poder. Na relação entre o braço criador e o objeto fabricado, experimenta a causalidade: o grão semeado germina ou não, ao passo que o metal reage sempre da mesma maneira ao fogo, à tempera, à ação mecânica. Esse mundo de utensílios deixa-se encerrar em conceitos claros: o pensamento racional, a lógica e a matemática podem então aparecer. Toda a imagem do universo acha-se transformada. A religião da mulher estava ligada ao reinado da agricultura, reinado da duração irredutível, da contingência, do acaso, da espera, do mistério; o do homo faber é o reinado do tempo que se pode vencer tal como o espaço, da necessidade, do projeto, da ação, da razão. Mesmo quando enfrenta a terra, o homem a enfrenta desde então como operário; ele descobre que pode enriquecer o solo, que convém deixá-lo descansar, que tal ou qual semente deve ser tratada de tal ou qual maneira; ele é quem faz a safra; abre canais, irriga ou seca o solo, constrói estradas, ergue templos, recria o mundo.

Os povos que permaneceram sob a férula da deusa-mãe, aqueles entre os quais se perpetuou a filiação uterina, detiveram-se também num estádio de civilização primitiva. Isso porque a mulher só era venerada na medida em que o homem se fazia escravo de seus próprios temores, cúmplice de sua própria impotência. Era no terror e não no amor que ele lhe rendia um culto. Só podia realizar-se começando por destroná-la(2). É o princípio masculino de força criadora, de luz, de inteligência, de ordem que ele reconhece então como soberano. Junto da deusa


(2) Bem entendido, essa condição é necessária mas não suficiente: há civilizações patrilineares que pararam num estádio primitivo; outras, como a dos Maias, degradaram-se. Não há uma hierarquia absoluta entre as sociedades de direito materno e as de direito paterno, mas somente estas evoluíram técnica e ideologicamente.



-mãe surge um deus, filho ou amante, que lhe é inferior ainda, mas que se assemelha a ela, traço por traço, e lhe está associado. Ele encarna também um princípio da fecundidade; é um touro, é o Minotauro, é o Nilo fertilizando as planícies do Egito. Morre no outono e renasce na primavera depois de ter a espôsamãe invulnerável, mas banhada em pranto, consagrado suas forças a procurar-lhe o corpo e a reanimá-lo. Vê-se então aparecer em Creta esse casal que se encontra em todas as margens do Mediterrâneo: Isis e Horo no Egito, Astarté e Adônis na Fenícia, Cibele e Átis na Ásia Menor e, na Grécia Helênica, Réia e Zeus. Mais tarde, a Grande-Mãe é destronada. No Egito, onde a condição da mulher permanece excepcionalmente favorável, a deusa Nut, que encarna o céu, e Isis, a terra fecundada, esposa do Nilo, Osíris, continuam deusas de enorme importância. Mas é, entretanto, Rá, o deus-sol, luz e energia viril, que é o rei supremo. Em Babilônia Ichtar fica sendo apenas a esposa de Bel-Marduc; êle é quem cria as coisas e lhes assegura a harmonia. O deus dos semitas é masculino. Quando Zeus reina no céu é preciso que Gea, Réia, Cibele abdiquem: em Deméter, resta apenas uma divindade ainda imponente mas secundária. Os deuses védicos têm esposas mas que não são adoradas como eles. O Júpiter romano não tem rival (3).



(3) É interessante notar segundo Begouen, Journal de Psychologie, 1934, que na era Aurinhacense, se encontram numerosas estatuetas mostrando mulheres com atributos sexuais exageradamente acentuados; são notáveis pelas formas opulentas e pela importância dada à vulva. Demais, encontram-se também nas cavernas vulvas isoladas, grosseiramente desenhadas. Durante o Solutrense e o Madalenense essas efígies desaparecem. No Aurinhacense as estatuetas masculinas são muito raras e não há nunca representação do órgão sexual. No Madalenense encontra-se ainda a figuração de algumas vulvas mas em número reduzido e, ao contrário, descobriu-se grande quantidade de falos.




Assim, o triunfo do patriarcado não foi nem um acaso nem o resultado de uma revolução violenta. Desde a origem da humanidade, o privilégio biológico permitiu aos homens afirmarem-se sozinhos como sujeitos soberanos. Eles nunca abdicaram o privilégio; alienaram parcialmente sua existência na Natureza e na Mulher, mas reconquistaram-na a seguir. Condenada a desempenhar o papel do Outro, a mulher estava também condenada a possuir apenas uma força precária: escrava ou ídolo, nunca é ela que escolhe seu destino. "Os homens fazem os deuses; as mulheres adoram-nos", diz Frazer. São eles que decidem se as divindades supremas devem ser femininas ou masculinas. O lugar da mulher na sociedade é sempre eles que estabelecem. Em nenhuma época ela impôs sua própria lei.

É possível, entretanto, que, se o trabalho produtor tivesse permanecido à altura de suas forças, houvesse a mulher realizado com o homem a conquista da Natureza. A espécie humana ter-se-ia, então, afirmado contra os deuses através dos indivíduos de ambos os sexos. Mas a mulher não soube tornar suas as promessas da ferramenta. Engels só explica incompletamente essa decadência. Não basta dizer que a invenção do bronze e do ferro modificou profundamente o equilíbrio das forças produtoras e que com isso se verificou a inferioridade da mulher; essa inferioridade não é suficiente em si para explicar a opressão que suportou. O que lhe foi nefasto foi o fato de que, não se tornando um companheiro de trabalho para o operário, ela se viu excluída do mitsein humano. O fato de a mulher ser fraca e com capacidade inferior de produção não explica a exclusão. Nela o homem não reconheceu um semelhante porque ela não partilhava sua maneira de trabalhar e de pensar, porque continuava escravizada aos mistérios da vida. Desde que não a adotava, desde que a mulher conservava a seus olhos a dimensão do Outro, o homem só podia tornar-se seu opressor. A vontade masculina de expansão e domínio transformou a incapacidade feminina em maldição. O homem quis esgotar as novas possibilidades oferecidas pelas novas técnicas: apelou para uma mão-de-obra servil, reduziu seu semelhante à escravidão. Sendo o trabalho dos escravos bem mais eficiente que o da mulher, esta perdeu o papel econômico que desempenhava na tribo. E, na sua relação com o escravo, o senhor encontrou uma confirmação de sua soberania mais radical do que na autoridade mitigada que exercia sobre a mulher. Sendo venerada e temida por sua fecundidade, sendo outro que não o homem e participando do caráter inquietante do outro, a mulher mantinha, de certa maneira, o homem na dependência dela no momento mesmo em que dele dependia. A reciprocidade da relação senhor-escravo existia atualmente para ela e com isso escapava à escravidão. O escravo não é protegido por nenhum tabu, não passa de um homem subjugado, não diferente mas inferior; o jogo dialético de sua relação com o senhor levaria séculos para se atualizar. No seio da sociedade patriarcal organizada, o escravo não passa de um animal com figura humana: o senhor exerce sobre ele uma autoridade tirânica. Com isso exalta-se o orgulho do senhor que o projeta contra a mulher. Tudo o que ganha, ganha contra ela; quanto mais poderoso se torna, mais ela decai. Particularmente, quando se torna proprietário do solo (4), é que reivindica também a propriedade da mulher. Antes ele era possuído pelo mana, pela terra; agora ele tem uma alma, terras; liberto da Mulher, quer uma mulher e uma posteridade para si próprio. Quer que o trabalho familiar que utiliza em proveito de seus campos seja totalmente seu e, para isso, é preciso que os trabalhadores lhe pertençam: escraviza a mulher e os filhos. Precisa de herdeiros através dos quais se prolongará sua vida terrestre — pelo fato de lhes legar seus bens — e que lhe renderão, além-túmulo, as honras necessárias ao repouso de sua alma. O culto dos deuses domésticos superpõe-se à constituição da propriedade privada e a função de herdeiro é econômica e mística a um tempo. Assim, a partir do dia em que a agricultura deixa de ser uma operação essencialmente mágica e se torna antes de mais nada um trabalho criador, o homem descobre-se como força geradora; reivindica os filhos ao mesmo tempo que as colheitas (5).



(4) Ver Primeira Parte, cap. III.

(5) Assim como a mulher era assimilada aos sulcos, o falo era comparado à charrua, e inversamente. Em um desenho da época cassita, representando uma charrua, encontram-se desenhados os símbolos do ato reprodutor; mais tarde, a identidade falo-charrua foi muitas vezes reproduzida plasticamente. A palavra Iak em algumas línguas austro-asiáticas designa a um tempo falo e enxada. Existe uma oração assíria a um deus cuja "charrua fecundou a terra".



Não há, nos tempos primitivos, revolução ideológica mais importante do que a que substitui pela agnação a filiação uterina; a partir de então a mãe é relegada à função de ama, de serva, e a soberania do pai é exaltada: ele é que detém os direitos e os transmite. Apoio, na Eumênides de Esquilo, proclama essas novas verdades: "Não é a mãe que engendra o que se chama filho, ela é apenas a nutriente do germe deitado em seu seio: quem engendra é o pai. A mulher, como um depositário alheio, recebe o germe e, aprazendo aos deuses, o conserva". É evidente que essas afirmações não resultam de uma descoberta científica: são uma profissão de fé. Sem dúvida, a experiência da causalidade técnica em que o homem haure a certeza de seu poder criador conduziu-o a reconhecer que ele era tão necessário à procriação quanto a mãe. A ideia guiou a observação, mas esta se restringe a atribuir ao pai um papel igual ao da mãe: leva a supor que, no plano natural, a condição da concepção está no encontro do espermatozoide com os mênstruos. A ideia que exprime Aristóteles: a mulher é unicamente matéria, "o princípio do movimento que é o macho em todos os seres que nascem é melhor e mais divino", essa ideia traduz uma vontade de potência que supera qualquer conhecimento. Atribuindo a si próprio e exclusivamente sua posteridade, o homem desvencilha-se definitivamente do império da feminilidade, conquista o domínio do mundo à mulher. Votada à procriação e às tarefas secundárias, despojada de sua importância prática de seu prestígio místico, a mulher não passa desde então de uma serva.

Essa conquista, os homens figuraram-na como o fim de uma luta violenta. Uma das mais antigas cosmogonias, a dos assírio-babilônios, conta-nos sua vitória em um texto que data do século XVII A.C, mas que reproduz uma lenda muito mais antiga. O Oceano e o Mar(6), Atum e Tamiat, engendraram o mundo celeste, o mundo terrestre e todos os grandes deuses; achando estes, porém, demasiado turbulentos, resolveram aniquilá-los. E foi Tamiat, a mulher-mãe, que comandou a luta contra o mais forte e o mais belo de seus descendentes, Bel-Marduc. Este, tendo-a desafiado para um combate, matou-a após terrível batalha e cortou-lhe o corpo em dois; com uma metade fez a abóbada celeste e com a outra o suporte do mundo terrestre; depois organizou o universo e criou a humanidade. No drama de Eumênides, que ilustra o triunfo do patriarcado sobre o direito materno, Orestes também assassina Clitemnestra. Com essas sangrentas vitórias, a força viril, as potências solares de ordem e de luz dominam o caso feminino. Absolvendo Orestes, o tribunal dos deuses proclama que ele era filho de Agamenon antes de sê-lo de Clitemnestra. O velho direito materno morreu; foi a ousada revolta do macho que o matou. Viu-se que, em verdade, a passagem sobre o direito paterno se realizou através de lentas transições. A conquista masculina foi uma reconquista: o homem não fez mais do que tomar posse do que já possuía; harmonizou o direito com a realidade. Não houve luta, nem vitória, nem derrota. Entretanto, essas lendas têm um sentido profundo. No momento em que o homem se afirma como sujeito e liberdade, a ideia de Outro se mediatiza. A partir desse dia a relação com o Outro é um drama: a existência do Outro é uma ameaça, um perigo. A velha filosofia grega, que nesse



(6) Tamiat, o mar, é feminino (N. do T.).


ponto Platão não desmente, mostrou que a alteridade é a mesma coisa que a negação e, portanto, o Mal. Pôr o Outro é definir um maniqueísmo. Eis por que todas as religiões e os códigos tratam a mulher com tanta hostilidade. Na época em que o gênero humano se eleva até a redação escrita de suas mitologias e de suas leis, o patriarcado se acha definitivamente estabelecido: são os homens que compõem os códigos. É natural que deem à mulher uma situação subordinada. Mas poder-se-ia imaginar que a considerassem com a mesma benevolência com que encaravam as reses e as crianças. Não é o que ocorre. Organizando a opressão da mulher, os legisladores têm medo dela. Das virtudes ambivalentes de que ela se revestia retém-se principalmente o aspecto nefasto: de sagrada, ela se torna impura. Eva entregue a Adão para ser sua companheira perde o gênero humano; quando querem vingar-se dos homens, os deuses pagãos inventam a mulher e é a primeiras dessas criaturas, Pandora, que desencadeia todos os males de que sofre a humanidade. O Outro é a passividade em face da atividade, a diversidade que quebra a unidade, a matéria oposta à forma, a desordem que resiste à ordem. A mulher é, assim, votada ao Mal. "Há um princípio bom que criou a ordem, a luz, o homem; e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher", diz Pitágoras. As leis de Manu definem-na como um ser vil que convém manter escravizado. O Levítico assimila-a aos animais de carga que o patriarca possui. As leis de Sólon não lhe conferem nenhum direito. O código romano coloca-a sob tutela e proclama-lhe a "imbecilidade". O direito canônico considera-a a "porta do Diabo". O Corão trata-a com o mais absoluto desprezo.

E, no entanto, o Mal é necessário ao Bem, a matéria à ideia, a noite à luz, O homem sabe que para saciar seus desejos, para perpetuar sua existência, a mulher lhe é indispensável. É preciso integrá-la na sociedade: na medida em que ela se submete à ordem estabelecida pelos homens, ela se purifica de sua mácula original. Essa ideia é fortemente expressa nas leis de Manu: "Uma mulher mediante um casamento legítimo adquire as mesmas qualidades de seu esposo, como o rio que se perde no oceano, e é admitida depois da morte no mesmo paraíso celeste". Assim traça a Bíblia, com elogios, o retrato da "mulher forte". O cristianismo, apesar de seu ódio à carne, respeita a virgem consagrada e a esposa casta e dócil. Associada ao culto, pode a mulher chegar a ter um papel religioso importante: a brâmane nas índias, a flamínia em Roma são tão santas quanto seus maridos; é o homem que domina no casal, mas a união dos princípios masculino e feminino permanece necessária ao mecanismo da fecundidade, à vida e à ordem da sociedade.

É essa ambivalência do Outro, da Mulher, que irá refletir-se na sua história; permanecerá até os nossos dias submetida à vontade dos homens. Mas essa vontade é ambígua: através de uma anexação total, a mulher seria rebaixada ao nível de um coisa; ora, o homem pretende revestir-se de sua própria dignidade o que conquista e possui; o Outro conserva, a seus olhos, um pouco de sua magia primitiva; como fazer da esposa ao mesmo tempo uma serva e uma companheira, eis um dos problemas que procurará resolver; sua atitude evoluirá através dos séculos, o que acarretará também uma evolução no destino feminino (7).


(7) Examinaremos essa evolução no Ocidente. A história da mulher no Oriente, nas Índias, na China foi, com efeito, a de uma longa e imutável escravidão. Da Idade Média aos nossos dias, focalizaremos o estudo na França, que é um caso típico.





__________________



O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



______________________




Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



________________________



Leia também:













Nenhum comentário:

Postar um comentário