domingo, 18 de fevereiro de 2018

O Segundo Sexo - 18. Fatos e Mitos: Não tem ainda os meios práticos de dominar a Mulher-Terra

Simone de Beauvoir



18. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


II


 : n
ão tem ainda os meios práticos de dominar a Mulher-Terra




ACABAMOS DE VER que na horda primitiva a sorte da mulher era muito dura; entre as fêmeas animais a função reprodutora é naturalmente limitada e, quando se efetua, o indivíduo é dispensado mais ou menos completamente de outras fadigas; somente as fêmeas domésticas são por vezes exploradas por um senhor exigente até o esgotamento de suas forças como reprodutora e de suas capacidades individuais. Foi esse, sem dúvida, o caso da mulher num tempo em que a luta contra um mundo inimigo reclamava o pleno aproveitamento dos recursos da comunidade; às fadigas de uma reprodução incessante e desregrada acrescentavam-se as duras tarefas domésticas. Entretanto, certos historiadores pretendem que é nesse estágio que a superioridade do homem é menos acentuada. O que se deveria dizer é que essa superioridade é, então, imediatamente vivida e não ainda colocada e desejada; ninguém se aplica em compensar as desvantagens cruéis que prejudicam a mulher, mas não se procura tampouco cerceá-la como acontecerá mais tarde em regime paternalista. Nenhuma instituição homologa a desigualdade dos sexos; mesmo porque não há instituições, nem propriedade, nem herança, nem direito. A religião é neutra: adora-se algum totem assexuado. 

E quando os nômades se fixam ao solo e se tornam agricultores que se vê surgirem as instituições e o direito. O homem não se restringe mais a debater-se contra as forças hostis; começa a exprimir-se concretamente através da forma que impõe ao mundo, a pensar esse mundo e a se pensar; nesse momento, a diferenciação sexual reflete-se na estrutura da coletividade; ela assume um caráter singular; nas comunidades agrícolas a mulher adquire muitas vezes extraordinário prestígio. Esse prestígio explica-se essencialmente pela importância recente que assume a criança numa civilização que assenta no trabalho da terra. Instalando-se num território, os homens se apropriam dele; a propriedade aparece sob forma coletiva; exige de seus proprietários uma posteridade; a maternidade torna-se uma função sagrada. Muitas tribos vivem em regime comunitário: isso não significa que as mulheres pertençam a todos os homens da coletividade; não se acredita muito hoje que tenha existido o casamento por promiscuidade, mas homens e mulheres só têm existência religiosa, social e econômica como grupo; sua individualidade permanece um puro fato biológico. O casamento, qualquer que seja a forma, monogamia, poligamia, poliandria, não passa também de um acidente profano que não cria nenhum laço místico. Não é causa de nenhuma servidão para a esposa, ela continua integrada no seu clã. O conjunto do clã reunido sob o mesmo totem possui misticamente um mesmo mana, materialmente o gozo em comum de um mesmo território. De acordo com o processo de alienação a que já nos referimos, o clã se apreende nesse território sob uma forma objetiva e concreta; pela permanência do solo o clã realiza-se, pois, como uma unidade cuja identidade persiste através da dispersão do tempo. Somente essa diligência existencial permite compreender a identificação ou se prorrogar até nossos dias entre o clã, a gens, a família e a propriedade. A concepção das tribos nômades, para as quais não existe senão o instante, a comunidade agrícola substitui a de uma vida arraigada no passado e anexando-se o futuro: venera-se o antepassado totêmico que dá seu nome aos membros do clã e o clã vota um interesse profundo a seus descendentes, pois sobreviverá através do solo que lhe lega e que eles explorarão. A comunidade pensa sua unidade e quer sua existência além do presente: reconhece-se nos filhos, reconhece-os como seus, neles se realiza e se supera. 

Mas muitos primitivos ignoram a parte do pai na procriação dos filhos; consideram estes a reencarnação das larvas ancestrais que flutuam ao redor de certas árvores, certos rochedos, certos lugares sagrados e que descem no corpo da mulher. Considera-se, por vezes, que esta não deve ser virgem para que a infiltração se torne possível, mas outros povos acreditam também que ela se produz pelas narinas ou pela boca; de qualquer modo, a defloração parece aqui secundária e, por razões de ordem mística, é raramente o apanágio do marido. A mãe é evidentemente necessária ao nascimento do filho. É ela que conserva e nutre o germe em seu seio e é, pois, através dela que no mundo visível a vida do clã se propaga; desempenha assim papel de primordial importância. Muitas vezes os filhos pertencem ao clã da mãe, usam-lhe o nome, participam de seus direitos e, em particular, do gozo da terra que o clã detém. A propriedade comunitária transmite-se, então, pelas mulheres; com elas asseguram-se aos membros do clã os campos e as colheitas e, inversamente, é por suas mães que esses são destinados a tal ou qual propriedade. 

Pode-se, assim, considerar que, misticamente, a terra pertence às mulheres; elas têm um domínio a um tempo religioso e legal sobre a gleba e seus frutos. O laço que os une é mais estreito ainda do que uma pertinência; o regime de direito materno caracteriza-se por uma verdadeira assimilação da mulher à terra; em ambas se cumpre, através dos avatares, a permanência da vida, a vida que é essencialmente geração. Entre os nômades, a procriação parece ser apenas um acidente e as riquezas do solo continuam desconhecidas; mas o agricultor admira o mistério da fecundidade que desabrocha nos sulcos dos arados e no ventre materno; sabe que foi engendrado como a rês e as colheitas, deseja que seu clã engendre outros homens que o perpetuarão perpetuando a fertilidade dos campos. A Natureza na sua totalidade apresenta-se a ele como uma mãe; a terra é mulher, e a mulher é habitada pelas mesmas forças obscuras que habitam a terra
(1).
(1) "Salve, Terra, mãe dos homens, sê fértil sob o abraço de Deus e enche-te de frutos para uso do homem", diz um velho encantamento anglo-saxão.


É, em parte, por essa razão que lhe é confiado o trabalho agrícola; capaz de atrair a seu seio as larvas ancestrais, tem ela também o poder de fazer jorrar dos campos semeados os frutos e as espigas. Trata-se, em ambos os casos, não de uma operação criadora e sim de uma conjuração mágica. Nesse estágio, o homem não se limita mais a coletar os produtos do solo, mas não conhece ainda sua força. Hesita entre as técnicas e a magia; sente-se passivo, dependente da Natureza que distribui ao acaso a existência e a morte. Sem dúvida, reconhece mais ou menos a utilidade do ato sexual e das técnicas que domesticam o solo. Contudo, filhos e searas se lhe afiguram dádivas sobrenaturais e são os misteriosos eflúvios emanando do corpo feminino que atraem para este mundo as riquezas enterradas nas fontes misteriosas da vida. 


Tais crenças são vivas ainda entre numerosas tribos de índios, de australianos, de polinésios (1); e assumem uma importância tanto maior quanto se harmonizam com os interesses práticos da coletividade. A maternidade destina a mulher a uma existência sedentária; é natural que ela permaneça no lar enquanto o homem caça, pesca e guerreia. Mas entre os povos primitivos quase só se cultivam hortas de dimensões modestas e que se encerram dentro dos limites da aldeia: sua exploração é tarefa doméstica; os instrumentos da Idade da Pedra não exigem um esforço intensivo; economia e mística concordam em confiar às mulheres o trabalho agrícola. No seu início, a indústria doméstica é também de competência delas: elas tecem tapetes e cobertas, fabricam os vasilhames. São, muitas vezes, elas que presidem à troca de mercadorias; o comércio está nas suas mãos. É pois, através delas, que se mantém e propaga a vida do clã; de seu trabalho e de suas virtudes mágicas dependem os filhos, os rebanhos, as colheitas, os utensílios, toda prosperidade do grupo de que são a alma. Tanta força inspira aos homens um respeito misturado de terror e que se reflete no culto. Nela é que se resume toda a Natureza estranha.
(1) Em Uganda, entre os Bhanta das Índias, uma mulher estéril é considerada perigosa para a horticultura. Em Nicobar, pensa-se que a colheita será mais abundante se fôr feita por uma mulher grávida. Em Bórneo, são as mulheres que selecionam e conservam as sementes. "Dir-se-ia que sentem nelas uma afinidade natural com as sementes, as quais dizem prenhes. Por vezes, as mulheres vão passar a noite nos campos de paddy na época em que germinam" (Hose e MacDougall). Na Índia anterior, mulheres nuas empurram a charrua à noite ao redor do campo. Os índios do Orinoco confiavam às mulheres o cuidado de semear e plantar, porque "assim como as mulheres sabiam conceber e parir, as sementes e raízes que plantavam davam frutos mais abundantes do que quando plantadas pela mão do homem" (Frazer). No mesmo autor encontram-se muitos exemplos análogos. 


Já dissemos que o homem só se pensa pensando o Outro: apreende o mundo sob o signo da dualidade; esta não tem, de início, um caráter sexual. Mas, naturalmente, sendo diferente do homem que se põe como o Mesmo é na categoria do Outro que a mulher é incluída; o Outro envolve a mulher; ela não é, a princípio, assaz importante para encarná-lo sozinha, de modo que se desenha no coração do Outro uma subdivisão; nas antigas cosmogonias um mesmo elemento tem amiúde uma encarnação, a um tempo, de macho e de fêmea; assim é que entre os babilônios, o Oceano e o Mar
(1)  são a dupla encarnação do caos cósmico. Quando o papel da mulher se torna mais importante, absorve ela, em quase sua totalidade, a região do Outro. Aparecem, então, as divindades femininas através das quais se adora a ideia da fecundidade. Encontrcu-se, em Susa, a mais antiga imagem da Grande Deusa, da Grande Mãe, de comprida túnica e cabeleira alta que outras estátuas mostram-nos coroada de torres; as escavações de Creta oferecem-nos várias efígies. Ela é ora esteatopígica e acocorada, ora mais esbelta e de pé, por vezes vestida e por vezes nua cruzando os braços sob os seios túmidos. É a rainha do céu; uma pomba representa-a; é também imperatriz do inferno, de onde sai de rasto e uma serpente a simboliza. Manifesta-se nas montanhas, nas florestas, no mar, nas fontes. Por toda parte, ela cria a vida; se mata, ressuscita. Caprichosa, luxuriante, cruel como a Natureza, a um tempo propícia e temível, reina sobre toda a Egeida, a Frígia, a Síria, a Anatólia, sobre toda a Ásia Ocidental. Chama-se Ichtar em Babilônia, Astarté entre os povos semíticos, entre os gregos Réia, Gea ou Cibele; encontramo-la no Egito sob os traços de Ísis; as divindades masculinas são-lhe subordinadas. Ídolo supremo nas regiões longínquas do céu e do inferno, a mulher acha-se, em terra, cercada de tabus como todos os seres sagrados; ela própria é tabu. Em virtude dos poderes que detém olham-na como feiticeira, como mágica; associam-na às preces, torna-se às vezes sacerdotisa como as druidesas entre os antigos celtas; em certos casos, participa do governo da tribo, e acontece até que o exerça sozinha.


(1) L'océan, la mer, masculino e feminino em numerosas línguas (N. do T.) 


Essas épocas remotas não nos legaram nenhuma literatura. Mas as grandes épocas patriarcais conservam em sua mitologia, monumentos e tradições, a lembrança de um tempo em que as mulheres ocupavam uma situação muito elevada. Do ponto de vista feminino a época bramânica é uma regressão relativamente à do Rig-Veda, e esta acha-se no mesmo caso em relação ao estádio primitivo que a precedeu. As beduínas da época pré-islâmica tinham uma condição muito superior ao que lhes determina o Corão. As grandes figuras de Níobe, de Medéia, evocam uma era em que as mães, considerando seus filhos seus bens próprios, se orgulhavam de tê-los. E, nos poemas homéricos, Andrômaca, Hécuba têm uma importância que a Grécia clássica já não outorga mais às mulheres escondidas à sombra do gineceu. 

Esses fatos induzem a supor que existia nos tempos primitivos um verdadeiro reinado das mulheres; foi essa hipótese proposta por Baschoffen que Engels retomou: a passagem do matriarcado para o patriarcado parece-lhe "a grande derrota histórica do sexo feminino". Mas, em verdade, essa idade de ouro da mulher não passa de um mito. Dizer que a mulher era o Outro equivale a dizer que não existia entre os sexos uma relação de reciprocidade: Terra, Mãe, Deusa, não era ela para o homem um semelhante: era além do reino humano que seu domínio se afirmava: estava portanto fora desse reino. A sociedade sempre foi masculina; o poder político sempre esteve nas mãos dos homens. "A autoridade pública ou simplesmente social pertence sempre aos homens", afirma Lévi-Strauss ao fim de seu estudo sobre as sociedades primitivas. O semelhante, o outro, que é também o mesmo, com quem se estabelecem relações recíprocas, é sempre para o homem um indivíduo do sexo masculino. A dualidade que se descobre sob uma forma ou outra no seio das coletividades opõe um grupo de homens a outro grupo de homens, e as mulheres fazem parte dos bens que estes possuem e constituem entre eles um instrumento de troca. O erro proveio de terem confundido dois aspectos da alteridade, que se excluem rigorosamente.

Na medida em que a mulher é considerada o Outro absoluto, isto é — qualquer que seja sua magia — o inessencial, faz-se precisamente impossível encará-la como outro sujeito
(1). As mulheres nunca, portanto, constituíram um grupo separado que se pusesse para si em face do grupo masculino; nunca tiveram uma relação direta e autônoma com os homens. "O lado de reciprocidade que estabelece o casamento não se firma entre homens e mulheres e sim entre homens através de mulheres que são apenas a principal oportunidade dele", diz Lévi-Strauss, em Les Structures elementares de la Parenté. A condição concreta da mulher não é afetada pelo tipo de filiação que prevalece na sociedade a que ela pertence; seja o regime patrilinear, matrilinear, bilateral ou indiferenciado (não sendo nunca rigorosa a indiferenciação), ela se encontra sempre sob a tutela dos homens; a única questão consiste em saber se após o casamento ela fica sujeita à autoridade do pai ou do irmão mais velho — autoridade que se estenderá também aos filhos — ou se ela se submete, a partir de então, à autoridade do marido. Em todo caso: "A mulher não é nunca senão o símbolo de sua linhagem. .. a filiação matrilinear, é a mãe do pai ou do irmão da mulher, que se estende até a aldeia do irmão" (Lévi-Strauss, op. cit.). Ela é apenas a mediadora do direito, não a detentora.
(1) Ver-se-á que essa distinção se perpetuou. As épocas que encaram a mulher como o Outro são as que se recusam mais asperamente a integrá-la na sociedade a título de ser humano. Hoje ela só se torna outro semelhante perdendo sua aura mística. Foi a esse equívoco que sempre se apegaram os antifeministas. De bom grado concordam em exaltar a mulher como o Outro de maneira a constituir sua alteridade como absoluta, irredutível e a recusar-lhe acesso ao mitsein humano.


Em verdade, são as relações dos dois grupos masculinos que se definem pelo regime de filiação e não a relação dos dois sexos. Praticamente, a condição concreta da mulher não está ligada de maneira estável a tal ou qual tipo de direito. Acontece-lhe mesmo ocupar uma posição muito elevada em regime matrilinear; mas cumpre atentar para o fato de que a presença de uma mulher-chefe, de uma rainha à frente de uma tribo não significa, em absoluto, que as mulheres sejam nesta soberanas; o advento de Catarina da Rússia em nada melhorou a sorte das camponesas russas; e não é menos frequente que ela viva na abjeção. De resto, os casos em que a mulher permanece em seu clã e o marido só tem direito de lhe fazer rápidas ou mesmo clandestinas visitas são muito raros. Quase sempre ela vai residir com o esposo, o que basta para demonstrar a primazia do macho. "Por trás das oscilações do modo de filiação, diz Lévi-Strauss, a permanência da residência patrilocal atesta a relação fundamental de assimetria entre os sexos que caracteriza a sociedade humana." Como ela conserva os filhos com ela, tem-se como resultado que a organização territorial da tribo não se ajusta à sua organização totêmica: esta é rigorosamente fundada, aquela contingente; mas praticamente é a primeira que tem mais importância, pois o lugar onde as pessoas trabalham e vivem conta mais do que sua dependência mística. Nos regimes de transição que são os mais comuns, há duas espécies de direitos que se interpenetram: um religioso, outro baseado na ocupação e no trabalho da terra. Conquanto não passe de uma instituição laica, o casamento tem grande importância social e a família conjugai, embora despojada de significação religiosa, existe fortemente no plano humano. Masmo nas coletividades em que se depara com grande liberdade sexual, convém que a mulher que põe um filho no mundo seja casada; sozinha com sua progenitura, ela não consegue constituir um grupo autônomo; não lhe bastando a proteção religiosa do irmão, a presença de um esposo é exigida. Este tem amiúde grandes responsabilidades para com os filhos. Eles não pertencem a seu clã, mas é, entretanto, o pai que os alimenta e educa; cria-se entre o marido e a mulher, pai e filhos, laços de coabitação, de trabalho, de interesses comuns, de ternura. Entre essa família laica e o clã totêmico as relações são muito complexas como o testemunha a diversidade de ritos do casamento. Primitivamente, o marido compra uma mulher de outro clã ou, pelo menos, há entre um clã e outro troca de serviços, entregando o primeiro um de seus membros e cedendo o segundo animais, produtos da terra, trabalho. Mas, como o marido toma a seu cargo a mulher e os filhos dela, ocorre-lhe receber também dos irmãos da esposa uma retribuição. Entre as realidades místicas e econômicas o equilíbrio é instável. O homem tem, muitas vezes, muito mais apego a seus filhos do que aos sobrinhos; é como pai que ele procura afirmar-se quando essa afirmação se torna possível. E é por isso que toda sociedade tende para uma forma patriarcal quando sua evolução conduz o homem a tomar consciência de si e a impor sua vontade. Mas é importante sublinhar que mesmo nas épocas em que ainda se sentia confundido ante os mistérios da Vida, da Natureza, da Mulher, nunca abdicou seu poder; quando, assustado ante a perigosa magia da mulher, ele a põe como o essencial, é ele quem a põe e assim se realiza como o essencial nessa alienação em que consente; apesar das fecundas virtudes que a penetram, o homem permanece o senhor, como é o senhor da terra fértil; ela destina-se a ser dominada, possuída, explorada, como o é também a Natureza, cuja mágica fertilidade ela encarna. O prestígio de que goza aos olhos dos homens, é deles que o recebe; eles se ajoelham diante do Outro, adoram a Deusa-Mãe. Mas, por poderosa que seja, é através de noções criadas pela consciência masculina que ela é apreendida. Todos os ídolos inventados pelo homem, por terrificantes que os tenha forjado, acham-se, em verdade, sob a dependência dele e eis por que lhe será possível destruí-los. Nas sociedades primitivas essa dependência não é reconhecida e posta, mas existe imediatamente, em si; e ela é facilmente mediatizada logo que o homem vem a ter mais clara consciência de si mesmo, logo que ousa afirmar-se e opor-se. E, em verdade, mesmo quando se apreende como dado, passivo, suportando os acasos das chuvas e do sol, o homem realiza-se também como transcendência, como projeto; nele já o espírito, a vontade se afirmam contra a confusão e a contingência da vida. O antepassado totêmico de que a mulher assume as múltiplas encarnações é mais ou menos nitidamente, sob o nome de animal ou árvore, um princípio masculino; a mulher perpetua-lhes a existência carnal, mas seu papel é unicamente nutriente, não criador; em nenhum domínio ela cria: mantém a vida da tribo dando-lhe filhos e pão, nada mais; permanece votada à imanência; encarna somente o aspecto estático da sociedade, fechado sobre si. Ao passo que o homem continua a açambarcar as funções que abrem essa sociedade para a Natureza e o conjunto da coletividade humana. Os únicos trabalhos dignos dele são a guerra, a caça, a pesca; ele conquista presas estrangeiras e anexa-as à tribo; guerra, caça, pesca representam uma expansão da existência, sua superação para o mundo; o homem permanece a única encarnação da transcendência. Não tem ainda os meios práticos de dominar a Mulher-Terra, não ousa ainda erguer-se contra ela: mas já procura desprender-se.





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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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Leia também:

O Segundo Sexo - 12. Fatos e Mitos: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea


O Segundo Sexo - 13. Fatos e Mitos: quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais


O Segundo Sexo - 14. Fatos e Mitos: o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai


O Segundo Sexo - 15. Fatos e Mitos: A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica


O Segundo Sexo - 16. Fatos e Mitos: as categorias impotentes para encerrar uma mulher concreta


O Segundo Sexo - 17. Fatos e Mitos: Temos aqui a chave de todo o mistério


O Segundo Sexo - 19. Fatos e Mitos: O Espírito superou a Vida


O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?



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