mulheres descalças
escutou, eurásia?
Ensaio 115B – 2ª edição 1ª reimpressão
baitasar
o guri entrô na casa do siô joão manoel, sargento-mor da pulícia pública da villa, chamando pela mãe, ele era pura alegria e contentamento, nehum sofrimento humano em sua voz ou pensamento desanimadô. parecia tê sido tocado pelo espritu da conquista qui tráis felicidade, num queria ficá em silêncio nem ia conseguí calá a boca
Mãe! Mãe!
ele tava com as calça pra cima dos joêio, carregava garrada na cintura uma atiradêra feita com um gáio de goiabêra forquilhado em forma de forcado e um saco piquinino de pano abarrotado com as pedra pra usá na atiradêra
Mãe! Vem ver o que achei na rua! Perdido e sem dono!
o casarão da família barros ficava no beco do fanha, na metade da subida, pelo menos, era assim qui o piá achava meió dizê onde morava, No casarão mais bonito do Beco do Fanha, feito com tijolos e as telhas redondas mais bonitas da Villa, ele apreciava pacientemente a miséria das casa na volta, gostava de tê mais, ter dinheiro não é consolo, é a chance de colocar as coisas no seu devido lugar, a riqueza põe ordem nas coisas, quem tem dinheiro mora da metade para cima do Fanha, pra ele a otra metade é pra descida dos miserávi, gente qui vive sem precisá de muntu, inté parece qui vive pruqui num tem nada, vive do nada
Mãe!
a preta mina de batismo eurásia apareceu, ela tava na cozinha onde preparava uma limonada fresquinha, bem açucarada, como gosta a dona da casa, siá joana barros
Cruz e credo, siôinho!
a mina arregalô bem o branco dos óio e abriu muntu a boca, precisô fazê força pra num deixá caí a jarra de vidro, num respingá a jarra e a limonada pelo chão de tábua do casarão. abraçô a jarra no peito com o braço e a mão esquerda enquanto fazia o desenho da cruiz com a otra mão
rezô pedindo bondade, compaixão e caridade, pelo menos, era assim qui achava meió rezá e tratá da vida. num rezava pra pedí consolo próprio ou oferecê arrependimento praquela vida sem candura, sem coisa boa, mais rezava pedindo esperança pra toda vida qui sofre da vida qui sustenta a fartura e a riqueza dos dono de tudo, Deus, nosso Pai, que tendes poder e bondade, dai a força àquele que passa pela provação da maldade, dai a luz àquele que procura a verdade e ponha no coração de homens e mulheres a compaixão, a caridade e a justiça. Saravá Zambi! Saravá Oxalá! Suplicamos de Iemanjá, Oxum e Iansã a purificação dos nossos sentimentos. Suplicamos a Xangô um raio de luz. Suplicamos a Ogum sua sagrada e invencível lança. Suplicamos a Oxóssi que nos dê vigor, coragem e força. Suplicamos a Ibeiji a graça e a doçura do sorriso das crianças. Suplicamos a Omulu que as almas benditas vigiem os nossos passos. Em nome de Zambi e Oxalá que assim seja!
a preta mina era uma bela e elegante muié qui acompanhava dona joana desde piquininina nascida. duas muriquinha ajuntada pela vida, mais crescida com provação diferente. caduma tendo qui superá com as própria força o tamanho qui a vida na villa espera e exige das duas muié: uma vida sem poema cujo propósito é serví
eurásia, na casa dos barros, tá escondida das diversão na villa, mais pronta pra atendê as vontade da dona joana, qui na sua veiz, tá pronta pra atendê as vontade do siô joão manoel. a preta mina entrô no negócio do casamento como o dote qui foi oferecido pelo pai da dona joana, tudo acertado entre o pai da moça e o sargento. ela foi carregada pra dentro do casamento como um pedaço bruto da natureza escravizada
uma preta mina qui nasceu no tumbêro e deixô mãe falecida no nascimento. a fia das água qui garrô a vida nas têta do porão imundo e desumano do tumbêro, pelo menos, é a história contada, mais tem quem juramente, em nome da vida sem medo da morte, qui a moça carregada pra dentro do casamento é metade irmã da siá joana, nascida antes da siazinha tê feito o primêro aninho, mais isso num tem como se prová, e ficô assim, otra história do dito e num dito, o visto qui num foi visto, a verdade qui pode sê mentira ou pode num sê verdade e num sê mentira
se chegô nascida ou foi trazida, quem sabia num disse e já se foi, o certo é qui ficô otra muié escravizada naquele lugá de munta mataria e água qui no inverno recebia munta chuva, abundância do frio e a borrasca do minuano: trêis dias seguido, no mínimo, com vento gelado e céu nevoento. os arroio subindo inté derramá suas água qui num parava de chegá do alto pra formá os atolêro, os alagado, tudo qui num tinha cuidado ficava entupido, desbarrancando ou derramando
no inverno a villa risonha ficava carrancuda, fria e moiada, mais os trabáio num parava, muntu menos, os desejo dos dono de tudo ficava mais menó. a exaustão dos pretu no trabáio num fazia diminuí a gula das alta-roda villêra, os pretu continuava com os pé descalço enfiado nos atolêro; muntas veiz, se enterrava inté as canela preta, junto com a cachorrada
o andamento dos trabáio num podia decaí
a eurásia continuava com a jarra apertada nos braço, num queria dá chance pru azá; rezá é bão, mais tumbém é bão se cuidá e num deixá a jarra com a limonada caí no chão. ela sabe qui o siô joão manoel é pelo certo, mais ele pra castigá precisa muntu menó esforço qui pra perdoá, coisa qui puxando pela memória nunca viu contecê. dos lado do sargento-mor num tem negociação: ordem dada precisa sê cumprida, Negrinha, Sim, siô João Manoel, Não me quebre nada, bem entendido?
sim, ela tinha tudo bem entendido, num podia passá dos limite. num importava se tava cansada, com raiva, num tinha o direito de vivê como queria, num tinha o direito de pruguntá nem de gritá: Eu quero sê livre! Alguém me compreende?
Eurásia, onde está mamãe?
a muié mina continuava parada com a estranheza da aparição e a negociação qui precisava tê com o piquinino sargento infante, pra, no futuro, tê o mínimo de equilíbrio pra dô absurda de sê usada e desbastada da vida inté num restá nada da vida
usava da negociação com o guri, dia sim, otro tumbém. sabia qui carecia conquistá a graça do muriquinhu piá, fazê ele creditá na própria bondade. ela enxergava vê pra tráis e oiá pra frente, sabia escutá e pensá, Dá munta tristeza vê o pai ensiná maldade pru fiu, inté a ruindade se torná costume, pra depois virá mania descontrolada; queria podê dizê, Quero ajudá você, muriquinhu... mais num posso, num tenho força pra mudá nada sozinha.
sabia pensá pra frente, lá adiante, dava conta de vê qui o infante ia tê o seu tempo de mandá. a vida é assim, vai chegá o tempo dele mandá mais qui o siô joão manoel, Vai chegá, isso de mandá mais qui o pai. Vai chegá, ô se vai.
o tempo de cadum mandá passa, uqui num passa é o tempo das dô e gemido dusqui sóbedece enquanto vai perdendo as força do bão trabáio. uqui num passa é a vontade dos dono de tudo sê sustentado pelo trabáio escravizado, Isso nunca vai passá, abicu, Pra essa gente, Eurásia, generosidade é ensinamento de fraqueza, Num é só isso , abicu. É maldade, tumbém. E tem a safadeza de separá trabáio pru pretu e trabáio pru branco, esse é o jeito pra jogá os pretu numa vida sem esperança, inté a dô num sê mais dô, sê a própria vida.
o tempo qui dá vida num dura pra toda vida e os dono de tudo sabe qui num é dono da vida, pru mais qui eles grita e manda a vida é da natureza da vida, mais eles num tá nem aí pras vida qui num é sua vida. eles qué tê pra seu uso trêis mundo, cadum diferente dotro, além do mundo só prus dono de tudo
a bem-aventurança e a glória do mundo é só prus dono de tudo, qui num é munta gente, inté pruqui eles num gosta de gente, eles tá acima da natureza e das pessoa. num é um lugá de alívio, eles num vive atormentado; num é um lugá de amizade, eles num tem apego, num precisa sê bem-aceito, eles usa e joga fora
no paraíso dos dono de tudo num tem como entrá, tem qui nascê lá
o mundo dos livre é o mundo dusqui manda em nome dos dono de tudo, mais num é dono de tudo. eles nem conhece os dono de tudo, mais imagina como eles é, adivinha uqui eles qué e suja as mão prus dono de tudo num sujá. os capitão-dumato abotoa as camisa inté o colarinho alto e magro, usa cabelo bunito e cortado bunito, tem banho cherôso bem tomado, todo dia, sabe usá as palavra bunita e complicada qui eles inventa pra sê mais forte. depois, ensina meió uns qui otro como usá a força das palavra inventada, é ensinamento pruns pôco escoído enquanto otros é ensinado conhecê as palavra pra meió bedecê, meió escutá
prus pretu num ensina as palavra, os dono de tudo grita qui os pretu e os cô de cuia só precisa sabê vivê pra fazê com o mínino de comida o máximo de trabáio escravizado
o mundo escravizado é o mundo dusqui trabáia duro, é castigado, mastiga pedaço de fumo pra enganá a fome, toma gole de cachaça pra enganá a dô sem esperança, sangra um boi depois otro, otro e mais otro, a carne salgada no sol, o fumo na boca, a cusparada marrom no chão, os pé descalço no sangue derramado, o chão pegajoso, o espinho dum osso enterrado no pé pretu, os dois sangue misturado no chão vermêio e gosmento, o faro do suô e da carne salgada depois da matança. o mundo escravizado é uma grande mancha de sofrimento e dô qui golpeia a natureza da vida. o castigo num é da natureza da vida, mais é preciso lutá pra diminuí a dô; às veiz, com calma, respeito e afeto, otras veiz, com alvoroço, destemô e secura
no mundo do medo, os dono de tudo toma emprestado o deus dus branco livre, bunito e caridoso qui se oferece no paraíso das missa: arrependimento e perdão, o mundo escravizadô das boa intenção. os dono de tudo tem munta maldade, primêro eles caça os pensamento em nome do arrependimento e salvação, depois eles tem quem repete qui fala em nome do perdão, inté o meditabundo repetí qui tudo em nome dos dono de tudo é qui salva pruqui o sofrimento, o respeito, a paciência, a submissão, a homenagem e a fé, tudo junto, é a porta do paraíso
a porta da entrada no mundo do paraíso das missa é a mais sossegada pra entrá, só precisa morrê com arrependimento e tê o perdão, mais no paraíso da bem-aventurança dos dono de tudo nem na morte as porta se abre. num tem como entrá, tem qui nascê lá
Escutou, Eurásia? Acorda!
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