segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

O Brasil Nação - v1: § 45 – Centralização, para expansão da ignorância pública - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 5
o acervo do império





§ 45 – Centralização, para expansão da ignorância pública




Não há governo democrático e livre sem inteira franquia de vida municipal. O self-government é, para os povos, como o self-control para os indivíduos: a capacidade de viverem livres e autônomos. A autonomia municipal é a prática do bem comum, ligada ao interesse imediato; é o zelo reconhecível pela coisa pública, como escola de responsabilidade, para funções mais altas. Por isso mesmo, parecem, inóspitos à liberdade e ao progresso político esses países onde as liberdades locais foram suplantadas. Ora, não há nação onde tais franquias fossem mais criminosamente dissipadas do que no Brasil, mais no Império do que na era colonial, mais na República do que no Império... Resultado: fizemo-nos soberanos com uma constituição que garantia a liberdade, entregando a nação a si mesma. E nunca fomos livres, nem o Brasil chegou a ser senhor dos seus destinos; mudamos para a República, inscrevendo-a numa constituição ainda mais livre, dizem os entendidos, eliminando todos os poderes que não fossem emanação imediata da nação, e sentimo-nos cada vez mais ausentes da legítima liberdade política e da realidade democrática. Capacitemo-nos disto: uma sociedade nacional cujos grupos concretos não sabem organizar e conduzir os seus negócios em ajustada solidariedade política; que não sabem governar-se, nunca será própria para o regime democrático. A vida pública local define-se na atividade urbana. Ao menos por isso, deviam os nossos políticos zelar a autonomia dos municípios. A cidade cresce e prospera na medida em que tem vida própria. Os políticos, qualquer que seja a sua mentalidade, têm esse ideal de grandeza nacional – a riqueza material. Ora, não pode haver riqueza sem atividade urbana, em plena autonomia, mesmo nos casos de produção rural. Finanças como capital utilizável e potencial de crédito, acúmulo de riqueza, circulação de valores, distribuição e transformação de produtos... tudo está ligado à estrutura das cidades, e depende da sua atividade. Não seria preciso invocar o exemplo, já cediço, do municipalismo inglês. Acentuemo-lo, no entanto, porque ele, esse municipalismo, levado com a colonização, foi a base mesma da organização norte-americana. Muitos outros fatores terão concorrido para dar ao Inglês a sua especial capacidade de povo livre, com organização política maleável, em que a disciplina não chega a prejudicar a iniciativa do indivíduo; vários motivos terão concorrido para aquele zelo geral pelos direitos pessoais, e o respeito pela opinião; mas nenhum fator, nenhum motivo, terá significação mais nítida do que a tradição de self-government, mais constante aspecto na formação e no desenvolvimento do povo britânico. 

Colônia que fez o seu início, e o mais eficaz do seu desenvolvimento, quando ainda subsistiam as tradições do primeiro municipalismo português, o Brasil teve, nos dois primeiros séculos, uma vida comunal bem acentuada. Assim o exigia a condição de povoações disseminadas, e que deviam contar, em primeiro lugar, com os próprios recursos. Foi uma autonomia imposta pela situação da colônia, e que, por sua vez, se impôs à metrópole. Por todos aqueles tempos, até o primeiro quarteirão do século XVIII, eram as câmaras municipais valores políticos com quem o Estado-metrópole tinha de contar, aproveitando-as para as suas necessidades fiscais. Tal acontece na arrecadação dos quintos, entregue, mais de uma vez, às câmaras – que por eles se responsabilizavam, encarregando-se de fazer o respectivo rateio entre os mineiros. Houve municipalidades, no Norte, como no Sul, que chegaram a depor, prender e recambiar para Lisboa autoridades despóticas, ou concussionárias; e o governo dali tinha de aceitar o fato consumado (Pernambuco, 1660). Os bons do povo – pessoas representativas na população urbana, os juízes do povo, surgidos espontaneamente do espírito comunal, foram praticamente aceitos na vida pública da colônia. O absolutismo pretensioso e radical de Carvalho e Melo retirou às câmaras municipais do Brasil direitos essenciais, e que lhe eram influxo de vida, sem que de todo se extinguissem as suas manifestações de boa atividade. E quando o príncipe embusteiro planejou aqui ficar, para burlar a inevitável independência, valeu-se do tradicional prestígio da instituição municipal – que o convidasse a ficar... Southey, a melhor visão da nossa história colonial, dá a nota justa, desse municipalismo de antanho: 



Nos tempos antigos, quando o serviço do Estado exigia alguma contribuição nova, era isto proposto pelo governador ao senado da Câmara, e resolvido com o assentimento do povo; este direito continuou a ser exercido, pelas câmaras e o povo, até que em Portugal se apagaram os vestígios de bom governo... e as câmaras eram convidadas não a consultar, mas a obedecer... a câmara de Vila Boa tentou opor-se a algumas medidas do governador de Goiás e foi asperamente repreendida... Mas, se foi ineficaz a oposição, com ela se prova serem ainda lembrados os antigos direitos das câmaras... Onde boas leis e bons costumes antigos apenas caíram em desuso, restabelecê-los e restaurá-los é possível, é praticável, é coisa que deve ser feita.(168)


168 Hist. do Brasil, conclusão.

Se o Brasil de 1822 houvesse feito independência a valer, o conselho de Southey teria tido plena aplicação; mas, também a constituição finalmente adotada não seria aquele modelo de asfixiante centralização. Por isso mesmo, foi esse um dos motivos explícitos da reação de 1826-31; e porque era patente a necessidade de favorecer a vida local com uma política própria, vitoriosos em tudo mais, quase, nisto tiveram de ceder os reacionários vitalícios do Senado: a legislação de 1832, ao mesmo tempo que libertou as províncias, deu vida e expressão aos municípios. Então, se a obra de Feijó não fosse sistematicamente destruída pelos que abriram o segundo Império, o municipalismo que se instituíra teria alimentado o Brasil dos indispensáveis elementos – de um governo nacional, realmente livre, na indispensável solidariedade dos interesses regionais. E temos, assim, a explicação – da sequência reatora da legislação de 1840 a 1849. Para anular as franquias provinciais do ato adicional, os Hermeto e Araújo Lima faziam-se defensores da união do Brasil. Não tanto por estupidez, como por má-fé; eles confundiam, bacharelescamente – unidade nacional com centralização, não só política, como administrativa. Mas, liberticidas de essência, eles logo patentearam os verdadeiros intuitos da sua política, com a célebre lei de 19 de agosto de 1846, que tornou impossível qualquer veleidade de autonomia municipal no Império do Brasil. No entanto, esta seria a válvula possível, num vastíssimo país, cuja união nacional era ameaçada por esse mesmo excesso de centralização.(169)  Desde cedo, os que se manifestavam realmente liberais acusavam a centralização, e mostravam que ela era, justamente, um perigo para a unidade nacional. “A centralização é fonte de todos os nossos males... as províncias, espoliadas das suas franquezas... clamam contra a centralização... as franquias provinciais, consagradas no ato adicional, salvaram a unidade do Império... o sistema centralizado, que é indubitavelmente fatal à união nacional...” Para fundamentar os seus conceitos, Landulfo Medrado mostra o governo imperial “a fomentar entre as províncias rivalidades funestas... Se o Norte descontente clama, ameaçam-no com o Sul...” Tavares Bastos, por sua vez, acentuou a unidade essencial da nação brasileira, e que só por isso resiste, apesar dos motivos de desunião: “Se não houvesse nas províncias uma convicção profunda de que, ainda assim, sempre é melhor viverem unidas no seio da paz interna do que desunidas, eu não sei o que sustentaria a integridade do Império... As províncias são governadas com o mesmo espírito do bárbaro sistema colonial...” Assim instituído e realizado – na ausência da legítima liberdade, o sistema imperial podia ostentar liberalismos e derramar garantias vazias pela sua constituição; o despotismo substancial não seria atingido. Dessa profunda perversão da política brasileira resulta o triste e lastimável anacronismo das nossas campanhas liberais, e, mesmo, revolucionárias. Chega a ser ridículo, quando não se conta com a desenvolvida involução ligada ao segundo Império, que todo o nosso radicalismo revolucionário, já nos fins do século das luzes, tenha de gastar-se em proclamar as vantagens da descentralização administrativa, a necessidade de vida local, e a pedir verdade eleitoral. E assim se explica que a nossa inefável República tenha tão cuidadosamente anulado os municípios e evitado a verdade eleitoral. 


169 Em maio de 1859, Saraiva apresentou um projeto à Câmara dos deputados, com o fim de atenuar os exageros da centralização, e argumentava mostrando que a prática corrente, da centralização – “podia resfriar o sentimento santo e profundo que todos nutrimos a respeito da verdadeira unidade nacional”.


A infecção bragantina, fazendo inclinar os destinos desta pátria, deixou-a em indefinida servidão política. Colônia, Império, ou República, o Brasil tem sido o repetido espojadouro de mandões. Substituem-se as designações, para mais inveterada conservação da miséria, pois que capitães-generais, capitães-mores, governadores e presidentes, são, em essência, a mesma coisa. Trinta e sete anos de mentida República tem sido, apenas, a acentuação da injustiça e do despotismo, agravados em prevaricações e mais torpezas de dinheiro. Tem-se a impressão de que, já agora, é impossível organizar legítima democracia com tais dirigentes, feitos numa tradição política definitivamente pervertida. Não há realidade de autonomia local, como não há compreensão do que seja a liberdade. Sucedem-se os homens, mudam-se as rubricas, e eles não saem do arcaísmo político –governo-domínio-usufruto-privilégio-opressão e espoliação... Pouco importa que o mundo se refaça, eles não passam do megaterismo em que se fizeram, para compreender e sentir o Estado no que ele deve ser, em correspondência com a vida moderna; um grande organismo regulador da vida geral da nação, sobre o princípio da conciliação dos interesses parciais. Tire-se-lhes a função de mandar, e a política lhes aparece sem objetivo. Por isso mesmo, numa legislação exaustivamente reformada, com institutos constantemente remontados, eles ainda não acharam as linhas em que hão de eficazmente organizar a nação brasileira, nem mesmo como hão de conduzir o preparo das respectivas populações. 

O simples bom senso, mesmo em dose elementar, o diz muito claramente; para dar valor a uma nação, é indispensável uma cultura geral, inspirada nas condições da terra, ao influxo das suas tradições essenciais – o preparo do homem, para o meio que lhe é dado, no sentido da vida que ele vem trazendo. Os políticos brasileiros nunca atingiram a singeleza desta verdade, e quando se ocupam do assunto é para acumular desazos mal copiados, em forma de legislações de antemão condenadas, por impróprias, ou desde cedo abandonadas, por ineficazes. O melhor exemplo disto é dado pelo serviço da instrução pública, remontando-o aos dias do Império. Nunca se compreendeu, (nem então, nem hoje) que o valor do Estado – é o valor da nação, nele representada, nem, tampouco, que a Nação é o homem, elemento essencial dela. Pretenderam sempre, os nossos estadistas – ter às suas ordens um estado poderoso e rico: força e riqueza... Nunca chegaram a compreender que isto não faz a verdadeira superioridade de uma nação; que o Estado é, apenas, o órgão da nação constituída, e que seu poder, sua grandeza devem ser a expressão mesma – do valor efetivo da nação; que o valor da nação é o homem, elemento essencial dela. Intentavam, então, que o sonhado poder e a almejada riqueza se formassem e existissem como fins próprios, indiferentemente às condições da vida geral, e que o Estado se elevasse e se engrandecesse, quando as respectivas populações permaneciam na miséria dos seus piores dias. Os homens de 1831-32, imaginando desenvolver com isto a vida comunal, deixaram aos municípios os encargos da instrução primária; vem o segundo Império, e, na sua inexorável reação, anulou completamente a vida municipal; mas, ao passo que reservou para os poderes centrais o direito de regular os outros serviços de instrução, deixou todo o peso da primária, e de quase toda a secundária, a cargo das finanças locais. Resultado: por todo o longo transcorrer do longo reinado, as populações brasileiras ficaram na ignorância de sempre, agravada pela circunstância de que a diferença de nível, relativamente aos povos cultos, se tornava cada vez mais acentuada.




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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-i-manoel-bonfim/


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O Brasil Nação - v1: § 39 – A choldra dos partidos – sobre a nação abandonada - Manoel Bomfim 


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